As reflexões que se seguem me vieram durante a reunião do Setorial do Trabalho e Economia Solidária do PT/Contagem, no último dia 14/03. Ouvindo as pessoas, confirmei o que tenho escutado e lido em outras ocasiões quanto a ser, a Economia Solidária, uma política pública pra ajudar as pessoas a “ganhar a vida”, ou, mais exatamente, um meio para auferir renda e conseguir a subsistência.
Fosse apenas isso, já seria uma política pública de enorme importância social. Afinal, difícil imaginar algo mais básico para alguém que “ganhar a vida”, inda mais nesses tempos bicudos.
Entretanto, como registrou Daniela Tifany em fala muito pertinente, é necessário pensar a Economia Solidária além deste limite, sob pena de estarmos apenas alimentando o processo de reprodução das desigualdades sociais à medida que alguns empreendimentos prosperem e se transformem em um negócio rentável.
Como qualquer processo sistêmico, a produção capitalista estabelece diretivas lógicas que se impõem ao conjunto do sistema ditando comportamentos e estabelecendo padrões de excelência que passam a ser perseguidos pelos atores sociais em sua busca por sucesso, distinção, reconhecimento, prestigio e poder.
No caso do capitalismo, a busca do máximo lucro individual como diretriz dominante, produz uma racionalidade articulada pelo princípio da competição total. Neste cenário, a máxima eficiência, os constantes aumentos da produtividade, a aceleração contínua da velocidade de inovação, a redução permanente dos custos de produção, entre outros parâmetros de gestão empresarial, são recursos perseguidos pelos concorrentes e diretrizes que se impõem sobre considerações de outras naturezas, tais como a cooperação e a solidariedade – dinâmicas que se encontram na base dos projetos de economia solidária.
Obviamente que, por estarem subsumidos à lógica das relações capitalistas de produção que – repito – é uma lógica sistêmica, cada empreendedor individual da economia solidária flerta com a possibilidade de maximizar os próprios lucros, seja para aumentar seu acesso às oportunidades, facilidades, confortos e seguranças que a melhoria de seu poder de compra permitirá, seja para aumentar sua capacidade de concorrência no sistema geral de competição, expectativa que tende a aumentar com a estabilização e sucesso do empreendimento, e consequente acumulo de capital.
Assim, embora pareça, este não é um problema individual nem tem a ver, necessariamente, com ganância ou ambição. A meta do enriquecimento pessoal é um fenômeno social e uma característica estruturante do sistema. Operando no interior do sistema, a economia solidária é tensionada pelo conflito entre seus valores e dinâmicas de solidariedade e os requerimentos de eficiência, sustentabilidade, rentabilidade, etc., que condicionam a concorrência no mercado. Essa tensão tende a ser determinante na escolha das soluções e, com frequência, as necessidades do negócio se sobrepõem às preferências do negociante.
Duas conclusões se impõe a partir destes raciocínios:
1) a permanência dos empreendedores individuais nos projetos de economia solidária está condicionada à capacidade do projeto ultrapassar o patamar da simples reprodução das condições materiais de vida dos proponentes para sinalizar com a possibilidade de um nível superior de subsistência mediante determinadas formas de acumulação e melhoria da qualidade de vida dos indivíduos e suas famílias. Seria ingenuidade preconizar algum tipo de altruísmo capaz de suprimir o utilitarismo e o egoismo das relações sociais;
2) embora sua finalidade não seja gerar lucro pelo lucro, um empreendimento solidário precisa ser organizado de maneira a gerar resultados positivos e criar as condições necessárias a seu próprio crescimento sustentável, sob pena de sucumbir ante a concorrência no mercado. Esta é uma conditio sine qua non para a satisfação da primeira condição.
Ora, do ponto de vista do reformismo social, pensar a gestão dos empreendimentos de economia solidária significa lidar com a tensão antes referida entre competição e cooperação de modo a resolvê-la pelo lado que preza a solidariedade, os valores democráticos, a participação e a inclusão de pessoas. A gestão dos empreendimentos solidários é uma luta contínua e sistemática para a superação do individualismo e da cultura do lucro máximo e, por isso mesmo, guarda consigo uma dupla dimensão: é tanto uma forma de intervenção política quanto econômica na sociedade.
Numa das dimensões, ela busca apoiar os empreendimentos com recursos que os tornem viáveis do ponto de vista negocial, investindo na qualificação das organizações e dos bens que produzem e serviços que prestam; ofertando crédito e juros subsidiados a longo prazo via bancos comunitários, fundos públicos e cooperativas de crédito; incentivando as resdes de cooperação; fornecendo assistência técnica; criando sistemas de geração e difusão de conhecimento e implementando políticas públicas para o desenvolvimento tecnológico e o marketing de produtos, dentre inúmeras outras iniciativas possíveis de suporte e assistência.
Na outra, opera pra constranger o individualismo e o egoismo, reduzindo as oportunidades para seu fortalecimento. Sim, trata-se de melhorar as condições de vida de cada um dos empreendedores, mas num processo de melhoria das condições de vida de todos os empreendedores. Nesta perspectiva, o sucesso dos empreendimentos econômico-solidários está condicionado a uma dimensão coletiva. Além disso, a definição de”melhoria das condições de vida” precisa passar pela adoção de critérios que superem os parâmetros mercantis orientados pela busca de lucro e incorporem o acesso aos direitos de cidadania como sinal evidente de prosperidade. A luta pela oferta de serviços públicos de saúde, educação e transporte público de qualidade, bem como o envolvimento nos debates sobre o desenvolvimento local, por exemplo, são inseparáveis da luta pela viabilidade dos empreendimentos solidários.
Em acréscimo, é o caso de se adotar um modo de organização e funcionamento que promova a democracia interna. A adoção de formas horizontais de gestão, a transparência e regularidade na prestação de contas; a destinação de excedentes para fundos comuns de investimento; a ampliação da oferta de oportunidades associativas visando, inclusive, estimular a auto-organização de públicos mais vulneráveis; a adoção de preceitos como o de “comércio justo”, “preço justo” e “moedas sociais” e outras formas de comércio não-monetário e não-mercantil e a aproximação e formação de alianças estratégicas com outros setores da economia popular e com os trabalhadores informais, são formas de estimular a vivência e o enraizamento dos princípios e valores da economia solidária.
Temos bons exemplos de experiências associativas que se notabilizaram como poderosas respostas populares a situações difíceis vividas por uma comunidade.
No Peru, a Villa el Salvador, bairro de 350.000 habitantes na proximidades de Lima, é uma coletividade autogerida que criou, em 1987, um parque industrial em conjunto com os representantes do governo nacional. Tornou-se um pólo de desenvolvimento da economia popular, englobando financiamentos, formação, ajuda à comercialização e assistência técnica gerando cerca de 30.000 postos de trabalho em 8.000 pequenas empresas.
No Brasil, o Movimento dos Sem Terra (MST), nascido em 1984, organiza atualmente 450 mil famílias em 24 estados nas cinco regiões do país. O movimento reúne cerca de 160 cooperativas e 190 associações, as quais possuem 120 agroindústrias de pequeno e médio porte que atuam da produção e agroindustrialização até a comercialização de alimentos. De acordo com o setor de educação do movimento, em 2019, o MST possuia cerca de 120 escolas de ensino médio, 200 escolas de ensino fundamental completo e mais de 1 mil escolas de ensino fundamental para os anos iniciais, espalhadas em 24 estados. Recentemente, o MST anunciou que 25 de seus militantes vão se formar em medicina em Cuba.
O fato de ser popular não significa que tenha que ser pequeno ou modesto. Formas de solidariedade e cooperação que, muitas vezes são apenas um prolongamento da solidariedade e da cooperação presente no interior dos grupos primários podem transbordar em experiências importantes na preservação ou revitalização de relações sociais não-capitalistas.
Finalizando, a Economia Solidária não pode ser vista como um fim em si mesma, mas como meio para a realização de outros propósitos: sociais, políticos, culturais, ambientais, etc. A Ecosol é, por isso mesmo, mais que uma política pública: é um movimento social que fomenta a cooperação na vida cotidiana, nos bairros e comunidades e chama os cidadãos à ação.
Deu grande desafio está em convencer as pessoas que nem o sucesso empresarial medido pelo lucro máximo, nem o emprego assalariado, são as únicas formas de ganhar a vida. Existem outras opções, entre as quais se destacam aquelas baseadas na cooperação como forma de luta por uma outra sociabilidade, mais inclusiva, menos concentradora de renda e mais humanista.
Ivanir Corgosinho é sociólogo.
REFERENCIAS
1º Plano Nacional de Economia Solidária (2015- 2019). Brasil. Conselho Nacional de Economia Solidária, 2015
LAVILLE, Jean-Louis. A economia solidária: Um movimento internacional. Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 84, 2009.
MST. https://mst.org.br