Em 2024, Contagem viveu uma eleição singular. Não houve propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão. A ausência desse espaço tradicional de comunicação direcionou campanhas a reconfigurarem suas estratégias, levando a disputa política eleitoral diretamente para as plataformas digitais, para um campo de batalha onde se moldam percepções, se constroem narrativas e se disputam votos em um ambiente onde candidato e eleitor se digladiam por atenção simultaneamente.
Foi dentro desse bucho mecânico, conectado em redes, que a reeleição de Marília Campos foi disputada. E vencida, no primeiro turno.
Boa parte da campanha se deu nesse universo que costumo chamar de barriga do monstro. Para explicar esse conceito, recorro a uma referência que me atravessa: o Manifesto Ciborgue, da bióloga e filósofa Donna Haraway. Publicado em 1985, o texto propõe uma leitura poderosa sobre como humanos e máquinas se entrelaçam em sistemas de poder que operam por comando, controle, comunicação e inteligência (o famoso C³I). Segundo Haraway, esses híbridos humano-máquina estão todos dentro da barriga desse monstro, que é também uma grade de dominação e mapeamento. Continuando a explorar o conceito com as minhas lentes, atualmente esse bucho se reconfigura em um espaço fechado, controlado, onde somos nutridos por conteúdos escolhidos por algoritmos, onde nossas emoções viram dados e esses dados, mercadoria.
É a partir desse referencial que proponho entender as plataformas digitais como a barriga do monstro, aqui o nosso bucho mecânico conectado em redes, um ambiente fechado, controlado, que captura nossa atenção, nossos dados e, cada vez mais, nossas decisões políticas.
A barriga do monstro é o lugar onde circulam nossos hábitos, desejos e medos. O que curtimos, ignoramos, compramos, pensamos. Os algoritmos decidem o que vemos na tela e, em boa medida, o que achamos que sabemos sobre o mundo. Esse espaço não é neutro. É moldado pela lógica de mercado, em que a atenção é o ativo mais valioso. O que viraliza não é o que importa, mas o que atrai. E quanto mais atenção, mais dados. Quanto mais dados, mais controle.
É aí que entra a política contemporânea, como disputa de atenção, de narrativa, de confiança em redes sociais. A eleição de 2024 aconteceu em um ambiente que não é democrático por natureza, mas profundamente condicionado por plataformas privadas que operam com seus próprios interesses. Foi nesse terreno que o jogo foi jogado. Para dar nome a essa realidade, a metáfora da barriga do monstro ajuda. Trata-se do ventre de uma máquina de guerra tecnológica, onde cliques se tornam perfis e perfis, alvos. Nesse espaço, tudo é calculado, o que você vê, quando vê e o que é escondido de você.
As redes sociais foram vendidas como espaços de liberdade e igualdade. Hoje, sabemos que operam com filtros invisíveis, regras ocultas e interesses muitas vezes contrários ao bem comum. É por isso que campanhas como a de 2024 merecem atenção, mostram que, mesmo num ambiente enviesado, é possível disputar.
A lição que fica vai além de Contagem. Figuras como Rodrigo Manga ou Pablo Marçal podem até dominar a estética digital do like a qualquer custo, viralizar e se transformar em memes. Mas, quando a performance perde o sentido e a realidade se impõe, tudo isso se revela superficial. Em contrapartida, Marília Campos construiu uma campanha em que o digital serve ao real. Onde a rede não substitui o encontro, mas o amplia.
A vitória foi construída na urdidura entre o digital e o físico. Entre o território e a tela. Basta lembrar o primeiro dia oficial de campanha, Marília, de madrugada, na entrada do metrô Eldorado, entregando panfletos, escutando trabalhadores e trabalhadoras de olho no olho. Me lembro que Moara disse que havia gostado muito daquele primeiro vídeo, daquele primeiro ato, porque era Marília ali, sem efeitos, sem filtros, sem uma mega produção. Era ela e o povo. Ambos haviam acordado cedo e estavam indo para a labuta do dia a dia.
Essa imagem resume a essência de uma caminhada que cruzou a cidade inteira. Teve presença em cada regional, conversa em feira, escuta nas esquinas. Teve carreata, visita a comércio, militância ativa e uma base aliada que levou a mensagem a cada canto de Contagem. Uma campanha com as ferramentas do presente, mas com os gestos da tradição que não perderam valor, corpo a corpo, confiança e construção coletiva.
Essa experiência nos ensina algo poderoso, reconhecer que estamos dentro da barriga do monstro não é se render. É entender o campo onde estamos lutando. É disputar esse espaço, sem abandonar o chão firme da cidade. Haraway nos diz que ser ciborgue é uma forma de resistência. E ela está certa. Lutar por dentro das tecnologias, por dentro da barriga do monstro, ou numa forma mais nossa de dizer, dentro desse bucho mecânico conectado em redes, mas sempre com consciência política, com projeto e com coerência.
Marília é diferente do Manga, ainda bem. Ela não está a serviço do engajamento a qualquer custo. Está a serviço do povo. E sua rede é consequência direta desse trabalho corpo a corpo. Manga é refém da lacração, incoerente na forma e no conteúdo, muitas vezes desrespeitoso. Marília está a serviço da cidade, com coerência entre o que comunica e o que constrói.
A disputa pela democracia, pela verdade e pelo futuro também passa pelas entranhas da máquina. E como diz o Manifesto Ciborgue, não se trata de fugir das tecnologias, se trata de lutar com elas, por dentro, com consciência política e projeto coletivo.
A lição que fica é esta, figuras como Rodrigo Manga ou Pablo Marçal podem até se destacar dentro do bucho mecânico, virarem referências em comunicação digital e viralizar tendências, mas tudo isso perde força quando a performance revela sua superficialidade e as pessoas percebem que aquilo não é real. Em contrapartida, o estilo de Marília Campos combina a potência do virtual com a solidez do encontro presencial. Ela não se vale de memes vazios nem do espetáculo fácil. Mantém coerência entre o que diz nas redes e o que faz nas ruas, provando que o corpo a corpo tem o poder de disputar com algoritmos vazios. E, como toda ação humana é política, é nele, no encontro, na escuta, na presença, que a democracia segue sendo construída em Contagem e servindo de exemplo para a esquerda mundo a fora.
Cleber Couto é mestre em Estado, Governo e Políticas Públicas. Assessor da Vereadora Moara Saboia.