“…Corre a lua porque longe vai
Sobe o dia tão vertical
O horizonte anuncia com o seu vitral
Que eu trocaria a eternidade por esta noite…”
(Relicário – Nando Reis)
O anúncio da apresentação de Chico Chico pelo célebre Minas ao Luar em Contagem despertou diversas sensações e nostalgias de um tempo em que as canções reverberadas por sua genitora faziam parte da trilha sonora de nossas vidas. Das paixonites arrebatadoras ginasiais que davam o tom das confusões e irresponsabilidades da adolescência trazendo os traços acentuados da puberdade.
Cássia Rejane Eller se foi em dezembro de 2001, na véspera de ano novo. Como tudo que recordamos em minúcias tende a ser marcante, nesse dia estava em Trancoso, sul da Bahia- com 17 anos de idade, um paradeiro que ainda era bastante rústico e que estive durante 5 anos subsequentes em que ficava dias e mais dias sem mensurar qualquer finitude. Acabei criando uma pequena conexão com a paraibana Elba Ramalho e seus agregados que desfrutavam da casa de veraneio e das deslumbrantes praias. Lembro-me bem que no fatídico dia estava usando a camisa do alvinegro das alterosas e um deles disse: “Cássia era Galo”.
Cássia Eller, mesmo nascida no Rio de Janeiro, tornou-se ferrenhamente atleticana dos tempos em que viveu grande parte de infância em Belo Horizonte estudando no Colégio Batista e frequentando o Mineirão. Era vidrada em Éder, Dario e Reinaldo. Chegou a ser convidada para gravar o hino do clube; fato este que a deixou em êxtase; no entanto, não houve tempo hábil pela doação de sua voz para a ode alvinegra de Vicente Motta. Além de Rio e BH, viveu em Santarém, Brasília e São Paulo, tendo-se em vista que seu pai era um militar do exército.
Dessas experiências, forjou-se sua bagagem cultural e musical. Com uma voz potente e aveludada conseguiu romper com sua timidez visceral que exalava de maneira explícita nas entrevistas e nas declarações públicas. Oswaldo Montenegro a dirigiu em um musical na cidade de Brasília e ficou um tanto quanto impressionado com sua verve “única e revolucionária”; e ainda declarou que ali estava a marca, ali estava o talento, era alguém que não parecia com nada, que já nasceu com aquilo e que tinha uma dimensão que não conseguiria explicar.
Cássia transformava-se no palco e conseguia sacar as características de sua persona arredia para se rebelar contra as causas perdidas. Mostrava seu corpo no tablado e se exibia sem filtros pudicos. Assumia suas mazelas e angústias.
Fez da sua arte uma válvula de escape para que pudesse se expressar da maneira mais irreverente e autêntica quanto possível sem contudo perder sua essência de uma delicadeza e até mesmo ingenuidade estampada em seus olhos.
A intérprete marcou época profundamente com sua marca de voz melancólica e rouca dando vida a canções catárticas como “Por Enquanto”, “Relicário”, “Palavras ao Vento” e “Queremos Saber”. Cantou magistralmente “All Star” consolidando definitivamente sua relação visceral de amor fraterno e criatividade e sem deixar quaisquer rastros de dúvida por uma das maiores parcerias da música brasileira com Nando Reis.
E o show na Praça da Gloria, em Contagem, nos trouxe todo esse sentimento nostálgico daquilo que vivemos e até mesmo do que imaginaríamos viver e não conseguimos. Inconscientemente, acabamos por projetar Cássia em Chico Chico. Parecíamos estar diante de sua aura. Seu timbre de voz e irreverência na representação indelevelmente denunciava seu DNA. Mesmo que Chicão pareça fazer um esforço para desvincular essa força genética que está transparecida e que certamente e gradativamente conseguirá enriquecer e incrementar seu trabalho autoral em sua marca e individualidade.
Fato é que a Cidade das Abóboras nos proporcionou uma noite com uma atmosfera absolutamente inebriante. Uma noite decisivamente agradável e sem igual. E há quem maldiga a força da cultura confundindo alhos com bugalhos. Quanta bobagem e tolice. Espero verdadeiramente que seja tão somente ignorância.
Lucas Corrêa Fidelis é advogado e servidor público.