O julgamento iniciado em 2 de setembro de 2025 pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), que coloca o ex-presidente Jair Bolsonaro e sete aliados no banco dos réus por tentativa de golpe de Estado após as eleições de 2022, é um evento sem precedentes na história nacional. Pela primeira vez, um ex-presidente da República e militares de alta patente são julgados pela Corte por tentar romper com o Estado Democrático de Direito.
A condenação de Bolsonaro e seus aliados é considerada por muitos como inevitável. Ainda assim, forças democráticas e progressistas precisam permanecer vigilantes. O golpismo segue ativo e o bolsonarismo trava uma guerra desesperada contra as instituições, disposto a tudo para vergar o STF.
Frente à fatalidade da condenação, a grande meta dos golpistas é uma anistia ampla que não somente absolva Bolsonaro de todos os crimes dos quais é acusado, desde o inquérito das fake news, mas, mais ainda, restaure seus direitos políticos, revertendo a inelegibilidade. O projeto também prevê perdão a crimes contra a soberania nacional, livrando a cara de Eduardo Bolsonaro (CNN Brasil, 04/09/2025).
Para isso, contam com o “fator Trump”: a eventual condenação pode intensificar pressões dos Estados Unidos sobre o país e, em especial, sobre produtores brasileiros. Esta escalada está em andamento. Na semana passada, por exemplo, o visto americano de dois brasileiros que participaram da criação do Mais Médicos foi suspenso por suposta ligação com Cuba (BBC News Brasil).
O fato é que Trump se aproveita do julgamento para avançar no projeto de hegemonia da direita nas Américas, e enfraquecer o governo Lula é, neste sentido, estratégico. Daí a importância de que o setor produtivo brasileiro se mantenha em apoio à política de afirmação da soberania nacional conduzida pelo presidente Lula e pelo STF, e isso dependerá da eficiência do suporte que receberem.
No campo estritamente político, a aprovação de uma anistia “ampla, geral e irrestrita” é algo difícil, embora não seja impossível. Em primeiro lugar, porque enfrenta uma rejeição popular significativa. Pesquisas recentes, como a do Datafolha (55%) e da Genial/Quaest (56%), indicam maioria contrária à anistia (O Globo, 04/09/2025 a). Assim, embora o PL se mantenha inflexível e o Centrão se declare a favor, os deputados individualmente tendem a avaliar os custos políticos da anistia em pleno ano pré-eleitoral. Por isso, uma anistia radical é considerada inviável na Câmara. Já no Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP) trabalha uma alternativa mais restrita, que não devolva os direitos políticos a Bolsonaro como meio para viabilizar um grande acordo envolvendo o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), virtual candidato à Presidência da República.
No campo jurídico, juristas e ministros do STF avaliam que qualquer proposta de anistia, se for aprovada no Congresso, será, fatalmente, declarada inconstitucional pelo Supremo (Jornal do Brasil, 2025). Em sua coluna na Folha de S.Paulo, Mônica Bergamo observa que “(…) caso seja aprovada pelo Congresso depois do julgamento, como querem Tarcísio e o Centrão, ela deve ser barrada na mesma hora no STF, com o voto de pelo menos seis de seus 11 ministros” (Folha de São Paulo, 2025 a).
O mesmo raciocínio vale para um eventual indulto. Pré-candidatos da direita em 2026, como Romeu Zema e Tarcísio de Freitas, já defenderam essa possibilidade. Mas o precedente do ex-deputado Daniel Silveira é esclarecedor: condenado em 2022 por incitação contra o Estado de Direito, recebeu indulto de Bolsonaro, posteriormente anulado pelo STF.
Finalmente, é importante observar que a movimentação em defesa de Bolsonaro restringe-se ao campo institucional. Ao contrário do período anterior ao 8 de janeiro, o julgamento não é acompanhado por mobilizações de massa. Ressalvados os resultados dos atos previstos para o 7 de setembro (este texto foi escrito dias antes), até o momento não há manifestações significativas em apoio a Bolsonaro, e mesmo parte do empresariado que financiava atos golpistas se afastou, pressionado pelo efeito reverso do tarifaço — a busca de saídas que não signifiquem atrelar seus interesses ao destino do clã Bolsonaro num momento em que direita busca articular uma candidatura competitiva para 2026.
Estes cenários demonstram que a probabilidade de uma anistia radical é baixa. Todavia, a meta é barrar qualquer proposta de anista, por mais branda que seja. Não estamos diante de uma mera disputa jurídica: está em jogo o próprio pacto democrático e o modo como o país lida com atentados contra suas bases constitucionais.
Essa luta enfrenta grandes desafios. Entre eles, o peso político da articulação golpista no Congresso e a narrativa conservadora que busca apresentar a anistia como um gesto de pacificação nacional, quando, na verdade, ela significará um endosso aos ataques ao Estado democrático de direito. Essa narrativa pode alcançar audiência entre uma população cansada do discurso radicalista que aposta na polarização. Dois dados apurados por pesquisas recentes apontam nesta direção. Segundo a Genial/Quaest, a maioria do eleitorado deseja eleger um presidente independente, sem alinhamento com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ou com o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Em Minas Gerais, este percentual é de 58% (O Globo, 2025 b). Já a taxa de brasileiros contrários à anistia, que está em 56%, recuou em comparação à pesquisa anterior, de dezembro de 2024, conforme o Datafolha (Folha de São Paulo, 2025 b).
Diante disso, não se pode depositar todas as esperanças exclusivamente no STF. A condenação dos envolvidos nos atos golpistas seria um marco na história democrática do país, mas não suficiente para evitar novas tentativas de desestabilização. O risco persiste, especialmente com a possibilidade de um presidente de direita ou extrema-direita em 2026, que poderia reavivar narrativas conspiratórias contra o sistema eleitoral e insuflar setores radicais.
Assim, a resistência à anistia é crucial. Trata-se de uma luta jurídica, política e social que exige articulação, pressão constante sobre o Congresso, apoio ao STF e clareza estratégica. A sociedade civil, em suas diversas formas de organização, deve se tornar protagonista desta batalha, traduzindo indignação em ação concreta, conscientização e mobilização permanente. Como disse o historiador e deputado na Assembleia da República de Portugal, Rui Tavares, “a democracia tem de se defender a si mesma” (Folha de São Paulo, 2025 c).
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O Brasil possui uma longa tradição de resolver crises políticas por meio de acordos conciliatórios. São exemplos a Proclamação da República (1889), o Estado Novo (1937–1945), a crise de 1961 e na redemocratização pós-ditadura militar (1964–1985), marcada pela ausência de punições a responsáveis por rupturas institucionais ou violações de direitos humanos. Essa abordagem criou um ambiente permissivo para desafios à ordem democrática.
Desta vez, porém, o STF assumiu uma postura mais direta contra o bolsonarismo. Desde os inquéritos sobre fake news até atos antidemocráticos, tivemos a inelegibilidade de Jair Bolsonaro e a rápida condenação de mais de 638 envolvidos nos atos de 8 de janeiro (Carta Capital, 2025) , além do início do julgamento do “núcleo crucial” em menos de três anos. Apesar de críticas por suposto ativismo judicial, essa postura representa uma ruptura com esse padrão histórico, indicando uma mudança em direção à responsabilização e à defesa do Estado de Direito.
O julgamento coloca o país na vanguarda da luta em defesa da democracia em âmbito global. Ao mostrar que líderes políticos podem ser responsabilizados por ações que ameaçam instituições democráticas, o país envia uma mensagem clara sobre a importância da autonomia judicial e do respeito às regras do Estado de Direito, servindo de exemplo para democracias em todo o mundo. Demonstra que instituições democráticas podem exercer sua função de controle e fiscalização sem se submeter a pressões externas, mesmo quando essas pressões vêm de figuras altamente influentes no cenário global, como Donald Trump, Steve Bannon ou Elon Musk.
Estamos, portanto, num “ponto de inflexão”, como destacou a revista The Economist, com a oportunidade para, não apenas, superar a tradição de impunidade em casos de ataque à democracia, como deixar para trás o pior do recente processo de polarização do país (The Economist, 28/08/2025). Disso depende o futuro da democracia brasileira.
Ivanir Corgosinho é sociólogo.
Referências
BBC News Brasil. EUA revogam visto de brasileiros que participaram da criação do programa Mais Médicos. BBC News Brasil, 14 ago. 2025. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese. Acesso em: 6 set. 2025.
Carta Capital. STF divulga novo balanço de condenados e presos pelo 8 de Janeiro. 13 ago. 2025. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/justica/stf-divulga-novo-balanco-de-condenados-e-presos-pelo-8-de-janeiro-confira
CNN Brasil. Texto da oposição garante Bolsonaro elegível e anistia a partir de 2019. CNN Brasil, 04 set. 2025. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/texto-da-oposicao-garante-bolsonaro-elegivel-e-anistia-a-partir-de-2019/. Acesso em: 6 set. 2025.
Folha de São Paulo a. STF reage a Tarcísio e já tem maioria para barrar indulto ou anistia prometidos a Bolsonaro. Folha de São Paulo, 03 set. 2025. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2025/09/stf-reage-a-tarcisio-e-ja-tem-maioria-para-barrar-indulto-ou-anistia-prometidos-a-bolsonaro.shtml. Acesso em: 6 set. 2025.
Folha de São Paulo b. Taxa de brasileiros contrários à anistia recua de 62%, em dezembro, para 56%. Folha de São Paulo, 15 abr. 2025. Disponível em: https://datafolha.folha.uol.com.br/opiniao-e-sociedade/2025/04/taxa-de-brasileiros-contrarios-a-anistia-recua-de-62-em-dezembro-para-56.shtml. Acesso em: 6 set. 2025.
Folha de São Paulo c. Ao julgar Bolsonaro, Brasil vira estudo de caso para o mundo. 2 set. 2025. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/rui-tavares/2025/09/ao-julgar-bolsonaro-brasil-vira-estudo-de-caso-para-o-mundo.shtml. Acesso em: 6 set. 2025.
Jornal do Brasil. Chance de anistia a Bolsonaro no Congresso ter validade é nula, dizem juristas. Jornal do Brasil, 03 set. 2025. Disponível em: https://www.jb.com.br/brasil/politica/2025/09/1056781-chance-de-anistia-a-bolsonaro-no-congresso-ter-validade-e-nula-dizem-juristas.html. Acesso em: 6 set. 2025.
O Globo a. Trama golpista: pesquisas recentes mostram resistência da população à anistia. O Globo, 04 set. 2025. Disponível em: https://oglobo.globo.com/blogs/pulso/post/2025/09/trama-golpista-pesquisas-recentes-mostram-resistencia-da-populacao-a-anistia.ghtml?utm_source=Whatsapp&utm_medium=Social&utm_campaign=compartilhar. Acesso em: 6 set. 2025.
O Globo b. Nem Lula, nem Bolsonaro: maioria quer próximo governador independente, aponta pesquisa Genial/Quaest. O Globo, 22 ago. 2025. Disponível em: https://oglobo.globo.com/blogs/pulso/post/2025/08/nem-lula-nem-bolsonaro-maioria-quer-proximo-governador-independente-aponta-pesquisa-genialquaest.ghtml. Acesso em: 6 set. 2025.
The Economist. Jair Bolsonaro’s trial shows Brazil a way out from polarisation and stagnation. The Economist, 28 ago. 2025. Disponível em: https://www.economist.com/briefing/2025/08/28/jair-bolsonaros-trial-shows-brazil-a-way-out-from-polarisation-and-stagnation. Acesso em: 6 set. 2025.