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Kaka Menezes: O perigo da desumanização e a hipocrisia da comoção seletiva

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Nos últimos dias, a morte de Charlie Kirk, jovem ativista norte-americano, fundador do Turning Point USA, gerou grande comoção internacional. Ele foi assassinado em um evento público nos Estados Unidos, e rapidamente passou a ser lembrado por muitos como um “mártir cristão”, alguém que teria dado a vida pela fé.

No Brasil, figuras públicas reagiram com intensidade. O deputado federal Nicolas Ferreira publicou um vídeo afirmando que o crime contra Kirk era fruto de um processo de desumanização — quando o discurso de ódio reduz o outro a menos que humano e justifica sua eliminação. Para mim, é um assombro ouvir esse tipo de fala, porque não consigo compreender como se pode comparar Charlie Kirk a Martin Luther King, a Dietrich Bonhoeffer, ou a outros personagens da história da humanidade que se tornaram vozes proféticas contra o preconceito racial, contra a injustiça, contra a alienação religiosa que sustentou Adolf Hitler e a Segunda Guerra Mundial. Como pode hoje tanta gente não perceber a diferença gritante entre um discurso de ódio e uma voz de libertação?

Na mesma linha, a pastora Ana Paula Valadão, ao lado de seu esposo Gustavo Bessa, gravou um vídeo emocionado, chorando, e declarou que o sangue de Kirk seria o estopim de um grande avivamento que viria sobre os Estados Unidos e sobre o mundo. No meu ponto de vista, essa fala ecoa exatamente o que Jesus disse em Mateus 11:15-16 — uma geração alienada, como crianças brincando na praça, sem perceber o lamento nem a música, vivendo em um mundo paralelo, desconectado da verdade e da dor real das pessoas.

O verdadeiro avivamento não nasce de discursos ideológicos nem da morte de líderes que defenderam conservadorismo sectário e exclusão. O avivamento, para mim, é quando Deus desce à sarça ardente e diz a Moisés: “Tenho visto a opressão do meu povo, e o seu clamor chegou até mim. Por isso desci para libertá-los” (Êxodo 3:7-8). O avivamento é Deus se mover porque a dor de um povo subiu até Ele.

E então eu pergunto: qual foi a dor que Charlie Kirk representava? Qual causa ele carregava? A dor dos pobres, dos oprimidos, dos marginalizados? Ou a agenda de um conservadorismo fundamentalista, marcado por preconceito racial, homofobia, misoginia e xenofobia? Como, em pleno século XXI, podemos chamá-lo de um mártir cristão?

Essas análises partem de uma verdade parcial. O ódio que desumaniza é real. Sempre que alguém deixa de ser reconhecido como pessoa, a violência se torna legitimada. Mas a hipocrisia da nossa sociedade — e, infelizmente, também de parte da igreja — está em escolher de quem choramos a morte, de quem exaltamos a vida, e de quem simplesmente ignoramos a dor.

Enquanto a morte de um homem branco, rico, norte-americano mobiliza discursos inflamados, lágrimas públicas e até profecias de avivamento, no Brasil milhares de vidas são ceifadas todos os anos sem qualquer comoção. São jovens negros da periferia assassinados pela violência estrutural, são pessoas LGBT que se suicidam sob o peso do preconceito e da exclusão religiosa, são mulheres violentadas todos os dias. Onde estão as lágrimas, os discursos e as campanhas quando essas vidas são destruídas?

O mártir cristão, na tradição da fé, é aquele que entrega a vida por causa do Evangelho — o Evangelho de Jesus, que é boa notícia para os pobres, liberdade para os oprimidos, vista para os cegos, dignidade para os excluídos (Lucas 4). O mártir cristão é aquele que, como Estêvão, não apenas morre pela fé, mas morre amando seus inimigos, testemunhando a vida de Cristo até o fim.

O que está em jogo não é apenas a memória de um homem, mas a forma como escolhemos enxergar e valorizar vidas humanas. Se choramos apenas por aqueles que se parecem conosco, nosso luto é sectário. Se chamamos de mártir alguém que negou dignidade a tantos outros, nosso discurso é hipócrita.

Precisamos resgatar a essência do Evangelho: toda vida humana tem valor, porque todo ser humano carrega a imagem e semelhança de Deus. Não há vidas descartáveis. Não há dores invisíveis. Não há morte que mereça menos lágrimas.

Enquanto continuarmos escolhendo a quem reconhecer como humano, estaremos alimentando a mesma cegueira que Jesus denunciou em Mateus 11: uma geração incapaz de perceber o lamento e incapaz de dançar com a alegria.

Kaká Menezes é ex-jogador de basquete profissional, pastor, teólogo e cientista político.

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