A eleição de Zohran Mamdani para a prefeitura de Nova York, confirmada em 5 de novembro último, representa um marco político de alcance internacional e oferece lições relevantes para o conjunto das forças democráticas e de esquerda. Não se trata, é claro, de comparar as condições da luta política em Nova York com outras realidades, mas é possível reconhecer aspectos generalizáveis na experiência de Mamdani.
O sucesso da campanha se apoiou na combinação de uma plataforma centrada em soluções concretas para os problemas das pessoas, mobilização de base ampla nos territórios, uso estratégico de ferramentas digitais modernas e transparência, especialmente no âmbito financeiro. Essa articulação, acredito, cria condições robustas para formar maiorias políticas e engajar eleitores de maneira eficaz.
A vida material precede ontologicamente a consciência — Negro e muçulmano nascido em Uganda, África, filho de um cientista político e de uma cineasta, Zohran Mamdani trilhou um caminho comum entre ativistas da esquerda intelectualizada: estudou em escolas progressistas, envolveu-se com o movimento estudantil e com o ativismo popular, aventurou-se na cultura pop como rapper e, por fim, filiou-se ao Partido Democrata. Tal biografia poderia justificar a adoção de uma plataforma “woke” — termo em uso nos EUA para pautas de reconhecimento identitário e justiça social. No entanto, Mamdani optou por um programa político universalista, centrado nas condições concretas de vida dos nova-iorquinos, especialmente jovens negros, imigrantes e trabalhadores, com uma proposta clara: “uma Nova York onde caiba todo mundo”.
Esta escolha parte da percepção, inspirada no marxismo, de que as condições materiais da vida antecedem as ideias que dela surgem, moldando percepções e prioridades políticas. Com essa estratégia, Mamdani evitou a polarização em uma disputa puramente identitária e ampliou sua capacidade de formar maiorias políticas. Embora reconhecesse questões identitárias (negros, imigrantes, LGBT), não permitiu que fossem o eixo central da campanha, integrando a diversidade a uma agenda transformadora e inclusiva.
Entre as principais medidas defendidas por Mamdani — congelamento de aluguéis, tarifas reduzidas ou gratuitas no transporte público, creches universais e elevação do salário mínimo municipal até 2030 — há um denominador comum: redistribuição de recursos e poder de decisão econômica em favor das classes trabalhadoras e dos inquilinos. Trata-se de uma plataforma que se aproxima do populismo fiscal, mas que é compreensível diante do absurdo custo de vida na cidade.
As redes sociais e a interação presencial não são opostos, mas complementos — Plataformas digitais permitem espalhar informações rapidamente, mobilizar pessoas e criar comunidades virtuais, mas não substituem o contato humano direto. Pesquisas, como a Genial/Quaest de setembro, indicam que 57% dos entrevistados não confiam nas informações obtidas via redes sociais, percebendo nelas desinformação, manipulação e polarização.
Em contrapartida, a interação presencial consolida laços de confiança, permitindo observar nuances de comportamento, gestos e entonações — elementos essenciais para avaliar lideranças. É nesse contexto que se formam juízos mais profundos e que as pessoas se identificam de maneira genuína com referências políticas. Assim, enquanto as redes ampliam alcance e conexão, a presença cara a cara permanece insubstituível para construir relações sólidas e compreensão confiável sobre os outros.
O êxito da campanha se deu pela combinação de mobilização territorial em bairros-chave e engajamento digital intenso. De um lado, a operação de rua mobilizou mais de 50 mil voluntários inscritos, dos quais mais de 30 mil atuaram como cabos eleitorais (canvassers), batendo cerca de 1,6 milhão de portas — números confirmados pela field director Tascha van Auken. A capilaridade territorial por bairros (neighborhood-based), com ênfase em coordenação local via comitês comunitários, foi decisiva para converter simpatia em votos, especialmente em áreas como Jackson Heights e Sunset Park, núcleos da Nova York multicultural, trabalhadora e imigrante.
Em complemento, Mamdani utilizou presença digital estratégica. Plataformas de vídeos curtos (TikTok), múltiplas redes, segmentação e mobilização de influenciadores ampliaram mensagens simples e performativas. A conta de Mamdani no TikTok atingiu 1,7 milhão de seguidores, com vídeos virais gerando mais de 50 milhões de visualizações durante a campanha, fator decisivo para engajar jovens.
A combinação inteligente e dinâmica entre campanha de rua e presença digital que marcou a vitória de Mamdani é, justamente, a marca da prefeita Marília Campos em Contagem. Como sintetizou o professor Lincoln Mitchell, da Universidade Columbia, segundo matéria de Carta Capital, a campanha de Mamdani foi “uma espécie de híbrido entre uma campanha tradicional dos anos 1970 e uma campanha moderna de 2025”. Essa descrição ressoa diretamente com o que o companheiro José Prata sempre destacou sobre a comunicação da prefeita: um misto de práticas antigas do sindicalismo — como o corpo a corpo, a confiança construída no território — com ferramentas modernas de mobilização.
Participação popular e autonomia frente ao “sistema” — A cereja do bolo na vitória de Mamdani foi ter vencido as primárias democratas, derrotando o candidato preferido do establishment, Andrew Cuomo. Derrotado, o veterano abandonou o partido e se lançou como candidato independente, garantindo, na reta final da eleição, o apoio de Donald Trump — que, inclusive, abandonou o candidato republicano, Curtis Sliwa.
De fato, a elite nova-iorquina jogou todas as fichas para tentar impedir o resultado, injetando milhões de dólares em anúncios na TV e na internet. Dados da Junta de Financiamento de Campanhas da Cidade de Nova York (NYCCFB) indicam que os recursos em campanhas negativas pró-Cuomo somaram cerca de US$15 milhões. Trump, aliás, ameaçou restringir fundos federais à cidade caso Mamdani vencesse, chamando-o de “comunista” em postagens no Truth Social.
Frente a esse esquema, a campanha se apoiou fortemente em doações de pequeno valor e no sistema público de financiamento municipal, consolidando o discurso de independência em relação às elites empresariais. Registros públicos da NYCCFB confirmam: a campanha angariou mais de US$8 milhões, com 92% de pequenos doadores individuais (média de US$121 por doação) e milhares de contribuições de base popular — validando a narrativa de uma candidatura sustentada por base popular e financiamento transparente, uma exceção em um cenário político dominado por grandes contribuições corporativas.
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Mamdani venceu ao captou a insatisfação popular com a economia e as condições de vida, traduziu essa insatisfação em uma ideia de cidade mais acessível, com serviços públicos ampliados, e reuniu pessoas em torno dessa meta. Assim, sua experiência oferece um modelo e um método para a atuação política contemporânea.
Resta observar se Mamdani conseguirá transformar sua estratégia inovadora em resultados concretos enquanto ocupa a cadeira mais cobiçada de Nova York — e, possivelmente, do cenário político global.
Ivanir Corgosinho é sociólogo.
REFERÊNCIAS
CAMBRIA, Duda. Quaest: 57% dos brasileiros dizem não confiar nas redes sociais. CNN Brasil, [S. l.], 8 set. 2025. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/quaest-57-dos-brasileiros-dizem-nao-confiar-nas-redes-sociais/. Acesso em: 7 nov. 2025.
CITY & STATE NY. Here’s how Zohran Mamdani’s 50K-strong volunteer army pulled it off: entrevista com Tascha Van Auken, field director da campanha de Zohran Mamdani. City & State NY, Nova York, 1 jul. 2025. Disponível em: <https://www.cityandstateny.com/personality/2025/07/heres-how-zohran-mamdanis-50k-strong-volunteer-army-pulled-it/406464/>. Acesso em: 7 nov. 2025.
NEW YORK CITY CAMPAIGN FINANCE BOARD. Individual contributions to participating 2025 candidates: Zohran K. Mamdani. NYCCFB, Nova York, 2025. Disponível em: <https://www.nyccfb.info/follow-the-money/individual-contributions-to-participating-2025-candidates?candidate=MamdaniZK>. Acesso em: 7 nov. 2025.
OPEN SECRETS. Outside spending in 2025 New York City mayoral race. Center for Responsive Politics, Washington, 2025. Disponível em: <https://www.opensecrets.org/outside-spending/2025-nyc-mayor>. Acesso em: 7 nov. 2025.
REUTERS. Trump backs Cuomo, threatens to cut funds for New York City if Mamdani wins mayoral race. Reuters, Washington, 3 nov. 2025. Disponível em: <https://www.reuters.com/world/us/trump-threatens-restrict-federal-funds-new-york-city-if-mamdani-wins-2025-11-03/>. Acesso em: 7 nov. 2025.
ZOHRAN Mamdani, o ‘socialista’ muçulmano eleito prefeito de Nova York. Carta Capital, São Paulo, 2025. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/mundo/zohran-mamdani-o-socialista-muculmano-eleito-prefeito-de-nova-york>. Acesso em: 7 nov. 2025.