Jornal O Tempo, 01/07/2003
Em 1979, Alceu Valença saiu do Brasil pela porta dos fundos do mercado fonográfico. “Ninguém queria contratá-lo na época. Teve até um diretor de gravadora que disse que, “em termos de maluco, já tinham Raul Seixas””, recorda Julio Moura, autor do livro “Pelas Ruas que Andei: Uma Biografia de Alceu Valença”, lançado na última terça-feira, em Recife, na semana em que o cantor pernambucano faz aniversário -77 anos neste sábado.
Há pouco mais de quatro décadas, quando ainda era um nome ligado à cena underground, compositor de canções metafóricas e sem gravadora após deixar a Som Livre de maneira atribulada, Valença pegou as malas e passou seis meses numa espécie de autoexílio em Paris, na França, ladeado pelo guitarrista Paulo Rafael e pela empresária Ana Elisa Cesário Alvim. Foi nesse intervalo que um “clique” aconteceu na vida do artista.
“Ele ficou hospedado na casa de um sociólogo, tendo à disposição uma biblioteca inteira com as obras completas de Gilberto Freyre, além de discos de Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga. Foi um mergulho na própria raiz nordestina”, assinala Moura. Era pouco tempo, Valença compõe “Coração Bobo”, que viria a ser o seu primeiro grande sucesso comercial, título também do álbum lançado cm 1980 pela Ariola.
Para o biógrafo, esse momento de descida ao fundo do poço e subida meteórica é a síntese da carreira do filho ilustre de São Bento do Una, localizada no Planalto de Borborema, de onde saiu para virar advogado e jornalista na capital pernambucana. “Ura traço muito forte dele é que jamais fez concessões ao mercado. Isso só reafirmou a identidade dele, mas também trouxe muita controvérsia”.
A relação de Alceu Valença com o mercado fonográfico foi vitoriosa, mas sempre atribulada, analisa Moura. Tanto é assim que seus primeiros discos não foram sucessos de vendas. A primeira década de sua trajetória musical foi marcada pelo fato de nunca ter vencido um Festival da Canção sequer, embora tenha participado de vários durante toda a década de 70.
No Festival Internacional da Canção de 1969, no Maracanãzinho, ele defendeu a musica “Acalanto para Isabela” e sofreu a primeira derrota. Depois veio a edição de 1972, em que marcou presença no palco com Jackson do Pandeiro e Geraldo Azevedo. Com problemas de som durante a apresentação de “Papagaio do Futuro”, foram desclassificados.
Nova tentativa no Festival Abertura, em 1975, desta vez acompanhado de um grupo que tinha, entre outros, Zé Ramalho e Lula Cortês. “Aqueles cabeludos incríveis, cangaceiros elétricos, provocaram impacto com a apresentação de Vou Danado pra Catende”. Não ganharam, mas deram para eles uma espécie de prêmio de consolação”, recorda o biógrafo.
“Alceu lida muito com esses reveses. Foram dez anos até chegar a um patamar de artista de sucesso. Fonograficamente, viveu o seu apogeu na primeira metade da década de 80, com quatro discos lançados pela Ariola – “Coração Bobo”, “Cinco Sentidos”, “Cavalo de Pau” e “Anjo do Avesso”. Mas, depois, mudou de gravadora e passou a lidar com questões mercadológicas, sendo escanteando”, registra.
fôlego. Entre altos e baixos, ele pôs no mercado “7 Desejos” (1991), também um dos pilares de sua trajetória. Concebido de forma mais artesanal, na gravadora Odeon, o disco não foi um sucesso instantâneo, “ganhando fôlego com o tempo”. Ginções hoje indissociáveis ao repertório de Valença, como “La Belle de Jour”, estavam entre as suas faixas.
A música, que é mais um fruto da rápida passagem do cantor pela França, virou sinônimo de Carnaval e da energia valenciana. Uma versão tocada juntamente com Paulo Rafael, disponível na plataforma YouTube, já conta com 250 milhões de visualizações. “É um número impressionante, do tamanho da população brasileira”, destaca Moura.
Assessor de imprensa de Valença desde 2009, após ter trabalhado em gravadoras e selos musicais, Moura afirma que “Pelas Ruas que Andei” está longe de ser um livro de memórias. “Não descarto um dia relatar essa experiência pessoal com Alceu, mas a intenção dessa publicação é outra, buscando traçar um panorama autobiográfico da carreira”, explica.
O biógrafo assinala que, nesses 14 anos, teve acesse a “todos os Valença”, viajando com ele de Norte a Sul do país, nunca deixando de visitar o Brasil profundo – mas o Alceu Paiva Valença que buscou enaltecer é o “pensador da coisa brasileira, do Nordeste, mais do que o showman que ele evidentemente é, o “bicho maluco beleza” do Carnaval”.