Escrevo estas linhas de São João del-Rei, local que minha mãe mora e local da minha alma mater, a melhor universidade do planeta Terra, a Universidade Federal de São João del-Rei.
Brincadeiras a parte, é também a terra de Tancredo Neves — onde as montanhas de Minas ainda ressoam a memória de uma política que buscava, antes de tudo, o diálogo. São João del-Rei sempre foi conhecida pela terra de quem gosta de fazer política. No centro da cidade existem jornais do poste que informam os acontecimentos da política local. Além disso, há aqui um sentimento dúbio sobre o primeiro presidente civil após a ditadura. Para parte da população sanjoanense, Tancredo foi um sujeito distante e das elites locais; para outros, existe um orgulho do seu papel na história política do Brasil do século XX.
Não quero resgatar a figura de Tancredo neste texto somente porque sinto uma nostalgia ingênua por um tempo idealizado que sequer vivi em vida, mas da urgência de retomar algo da pedagogia da moderação que marcou sua identidade política. Num país tomado por polarizações cada vez mais emocionais e menos programáticas, onde o adversário se converte facilmente em inimigo, a lembrança de Tancredo opera como um gesto político: relembrar para reencontrar o caminho da racionalidade.
Vivemos tempos em que a política se tornou um campo minado de afetos inflamados. As redes sociais, mais que arenas de debate, tornaram-se câmaras de eco onde a paixão precede a escuta e o ódio substitui o argumento. Mas o Brasil, ao contrário do que se pensa, possui posições políticas que vão além dos polos calcificados. E talvez seja justamente nos 10% do eleitorado que ainda está em disputa — como apontou o cientista político Felipe Nunes em recente entrevista ao programa Roda Viva (1) — que se esconda uma chance de reconstrução democrática.
Este texto pretende fazer algumas considerações sobre essa polarização crescente, suas causas e efeitos, mas também sobre possíveis saídas. Inspirado na entrevista de Nunes e nas dinâmicas recentes observadas em Contagem, onde figuras como Marília Campos e Adriana Souza tensionam e desafiam os limites do jogo da polarização afetiva, o objetivo aqui é propor reflexões sobre essa crise.
1. A crítica do eleitorado brasileiro: entre a obrigação e o desejo de representação
A primeira chave para compreender a polarização política no Brasil atual está no próprio eleitorado. Como observa Felipe Nunes, o comportamento do voto nos últimos trinta anos revela algo fundamental: o eleitor brasileiro tem se tornado crescentemente crítico.
Esse movimento pode ser ilustrado pela diversidade dos perfis presidenciais eleitos desde a redemocratização: do “caçador de marajás” ao “sociólogo professoral”; do “operário nordestino” à “guerrilheira mineira”; do “capitão outsider” ao retorno do mesmo operário já institucionalizado. Há uma oscilação que não é apenas ideológica, mas simbólica — e que sugere que o voto, no Brasil, está longe de ser apenas uma resposta a políticas econômicas. Ele é também uma escolha narrativa: quem representa o meu sentimento de época?
Nesse sentido, o eleitor não é passivo. Ele testa, experimenta, compara. E, sobretudo, não perdoa incoerências. Entrega, por si só, já não basta. Um governo que cumpre suas obrigações pode ainda assim ser punido eleitoralmente se não conseguir articular um sentido simbólico que dialogue com os anseios culturais e emocionais do tempo (2). Como se a política estivesse sendo julgada não só por seus resultados, mas por sua capacidade de fazer sentido — e isso nos exige uma nova gramática e, portanto, uma reconfiguração das nossas teorias políticas.
Essa é a primeira tensão que precisamos compreender: o eleitorado brasileiro não está apenas polarizado; ele está exigente. E essa exigência se expressa tanto no voto quanto na abstenção, tanto no engajamento quanto na recusa. Compreender isso é essencial para qualquer projeto político que deseje, mais do que vencer, reconstruir a confiança democrática.
2. Da polarização partidária à polarização afetiva: a erosão do comum
A polarização não é, por si só, um problema. Em uma democracia saudável, é natural que existam disputas de projetos, visões de mundo e caminhos para o país. O que se torna preocupante é o modo como essa polarização se transforma — de disputa programática em racha emocional, de divergência ideológica em aversão moral. E é isso que temos vivido no Brasil: uma transição da polarização partidária para uma polarização afetiva.
Felipe Nunes aponta que, durante décadas, vivemos sob o regime de uma polarização partidária relativamente estável — marcada, sobretudo, pela alternância entre PT e PSDB. Esse modelo, embora competitivo, preservava um certo reconhecimento mútuo: eram projetos distintos, sim, mas ainda dentro das regras do jogo democrático. A política ainda funcionava como arena de confronto racional entre alternativas.
A partir de 2018, essa lógica começou a se desfazer. A polarização deixou de ser apenas partidária e passou a se organizar em torno de clivagens sociais, simbólicas e emocionais. A eleição de Jair Bolsonaro marca esse ponto de inflexão: o adversário deixa de ser alguém com quem se debate e passa a ser tratado como inimigo a ser eliminado. O campo simbólico da política se contamina com linguagem bélica, com desumanização e com um tipo de engajamento baseado mais no afeto negativo do que na razão propositiva.
Essa polarização afetiva tem efeitos devastadores sobre o tecido social. Ela reconfigura as relações interpessoais, transforma amigos em adversários, silencia o diálogo e reforça bolhas de confirmação. O debate público perde densidade, pois deixa de ser movido por argumentos e passa a ser regulado por identidades emocionais rígidas. Discordar vira traição; ceder, sinal de fraqueza; negociar, uma forma de corrupção moral.
Do ponto de vista geográfico, essa polarização também se espacializa. A divisão entre Norte/Nordeste e Sul/Sudeste, por exemplo, torna-se expressão de uma cisão simbólica do país. Mais do que diferenças econômicas ou políticas, trata-se de um antagonismo afetivo que passa a definir a forma como regiões inteiras se percebem e se relacionam. É como se o Brasil deixasse de ser uma nação com pluralidades para se tornar um campo de batalha entre tribos emocionais.
E no entanto, há nuances. Como Nunes também observa, a formação da frente ampla no governo Lula 3 — que inclui setores dos “liberais sociais” — ajudou a arrefecer em parte essa polarização afetiva. Embora ela ainda esteja elevada e longe dos níveis anteriores a 2018, sua persistência é um alerta: sem um esforço consciente de reconciliação simbólica, de mediação institucional e de pedagogia democrática, o ressentimento seguirá corroendo a possibilidade de construção comum.
Por isso, mais do que escolher lados, é preciso reconstruir pontes. O desafio não é negar a polarização — mas deslocá-la para o plano legítimo da disputa de projetos, onde as diferenças são reconhecidas, mas não absolutas. Onde a política volta a ser confronto de ideias, e não guerra de identidades e de posições imóveis.
3.O mapa dos 10% em disputa: entre o liberal social e o trabalhador precarizado
Se a maioria do eleitorado brasileiro já se encontra cristalizada em polos ideológicos e afetivos, como sugere Felipe Nunes, resta ainda um contingente aparentemente pequeno — mas estrategicamente decisivo — de cerca de 10% de eleitores que seguem em disputa. Entender quem são esses eleitores e o que os move talvez seja a chave para qualquer projeto de reconstrução política que pretenda ampliar as maiorias políticas e sociais do campo progressista.
Nunes os divide em dois grupos: os chamados “liberais sociais” e os “empreendedores precarizados”. O primeiro grupo reúne setores médios que prezam pela estabilidade institucional, pela legalidade democrática e pelo reformismo moderado. Foram, durante anos, o público-alvo do projeto tucano — defensores da ordem, da racionalidade econômica e de um Estado que funcione com previsibilidade. Já não se sentem representados por uma direita autoritária e instável, mas também se frustram em parte com a incapacidade da centro-esquerda de apresentar soluções modernas e equilibradas.
O segundo grupo é mais difuso, mas não menos relevante. Trata-se de uma massa crescente de trabalhadores autônomos, informais ou “empreendedores de si mesmos”, que rejeitam a ideia de patrão, têm resistência à CLT e enxergam na mobilidade individual e na ascensão econômica pessoal a principal medida de sucesso. Estão mais sensíveis a discursos de mérito, prosperidade, baixa intervenção estatal e liberdade econômica — mas não necessariamente fechados ao diálogo com modelos mais inclusivos, desde que estes não se oponham frontalmente à sua lógica de vida.
Ambos os grupos compartilham um certo desencaixe com a polarização atual. Não se veem totalmente representados nem pelo progressismo sem amarras, nem pelo conservadorismo reacionário. Estão, de certo modo, em busca de um novo pacto. E é aí que entra o desafio político: como construir uma narrativa que convoque esses sujeitos para um projeto democrático, plural e eficaz?
A cidade de Contagem oferece um exemplo concreto dessa disputa. A prefeita Marília Campos, em sua mais recente campanha, conseguiu tensionar os limites da polarização ao dialogar tanto com setores progressistas quanto com parcelas desse eleitorado intermediário. Em contraposição a Júnio Amaral, figura alinhada ao bolsonarismo, Marília soube modular seu discurso para além das trincheiras habituais — apostando na gestão, na escuta e numa sensibilidade territorial que reconhece as complexidades sociais da cidade. Também não entrou numa lógica equivocada para a disputa municipal, segundo a qual seria necessário nacionalizar a disputa municipal para obter um sucesso. Pelo contrário, ao apostar em uma municipalização(3) e proteger a cidade desta polarização afetiva, Marília conseguiu, inclusive, convencer um eleitorado pretensamente bolsonarista a votar no seu projeto de cidade, uma façanha que poucos do campo progressista conseguiram no país. Aliás, pode-se dizer que a Prefeita tenha sido a mais bem sucedida neste debate., junto a nomes como João Campos em Recife e a prefeita Margarida Salomão, em Juiz de Fora.
Mas talvez o mais revelador da disputa em Contagem não tenha sido apenas o voto explícito, e sim a alta abstenção. Não compareceram às urnas de Contagem um total de 106.756 eleitores, o que significa 23,25% dos aptos a votar. Quem são esses eleitores? Quem optou pela recusa ativa, pela suspensão do juízo eleitoral? Mapear esse grupo é essencial para entender os limites da polarização afetiva — e as brechas por onde ainda pode emergir uma política que não seja apenas reação, mas invenção e ampliação do campo progressista, democrático e popular.
Portanto, os tais 10% não são apenas “indecisos” ou “neutros”; são sujeitos políticos em busca de uma narrativa que faça sentido. E é nessa busca por sentido — econômico, simbólico e institucional — que se decide, em grande parte, o futuro das eleições brasileiras no ano de 2026.
4. Abstenção e geopolítica do voto: o silêncio como posicionamento
A abstenção é, muitas vezes, tratada como ausência. Mas talvez devêssemos começar a lê-la como presença negativa, como recusa política, como sintoma. A alta abstenção nas eleições recentes, especialmente em cenários urbanos complexos como o de Contagem, exige uma escuta atenta. O que diz esse silêncio eleitoral? Quem são os que se abstêm — e por que optam por não escolher?
A disputa entre Marília Campos e Júnio Amaral revelou não apenas dois projetos distintos de cidade e uma habilidade da atual Prefeita em ler o cenário político nacional, mas também evidenciou um contingente significativo de eleitores que optaram por não se posicionar. Em vez de participar da guerra simbólica entre o campo progressista e o bolsonarismo, esses sujeitos preferiram a suspensão. Afastaram-se do conflito não por ignorância, mas, possivelmente, por cansaço, desilusão ou descrença na eficácia do voto como instrumento de mudança.
Essa abstenção, portanto, não é um vazio político. Ela carrega uma densidade própria, e sua geografia importa. Saber onde estão esses eleitores — em quais bairros, em quais faixas etárias, em quais grupos sociais — pode oferecer uma radiografia de quem está cansado da polarização afetiva. Pode também revelar territórios onde o discurso político não está chegando, ou chega de forma dissonante, sem produzir eco.
5. Rejeição e crise de confiança no governo: quando a entrega não basta
Uma das armadilhas da política contemporânea é supor que a rejeição de um governo está diretamente ligada ao fracasso em entregar políticas públicas. Embora isso siga sendo relevante — e, em muitos casos, decisivo —, o que temos visto é que a rejeição não nasce apenas da escassez de ações, mas da incapacidade de gerar confiança. E confiança, hoje, não se constrói apenas com obra inaugurada ou benefício anunciado, mas com escuta, responsividade e coerência simbólica.
O atual governo federal, por exemplo, tem enfrentado desafios concretos na comunicação e gestão de temas sensíveis como o PIX, o INSS ou o IOF. São questões que afetam diretamente a vida cotidiana da população, especialmente das classes trabalhadoras. No entanto, mais do que a complexidade técnica das reformas ou dos ajustes, o que se nota é a sensação de que o governo falha em responder com a agilidade esperada — e isso mina a credibilidade da gestão.
Essa crise de responsividade tem um custo político. Como alerta Felipe Nunes, a lentidão nas respostas, a ausência de narrativas claras e a aparente distância entre governo e povo alimentam não apenas a crítica, mas a desconfiança. Gera as condições objetivas para a marcha despudorada da juventude bolsonarista, representada na figura do deputado federal Nikolas Ferreira. E é justamente essa desconfiança que se converte em rejeição. Não basta fazer; é preciso fazer com clareza, com presença e com escuta.
Ademais, essa crise de confiança está ligada a uma lógica mais profunda da política contemporânea: o eleitorado quer participar. Não se contenta mais em ser objeto de políticas; deseja ser sujeito do processo. Quer se reconhecer nas decisões, nas prioridades, nas posturas. Quando não vê isso — quando não sente que há posicionamento firme, quando percebe hesitação ou ambiguidade —, afasta-se.
6. Participação como desejo e potência: o eleitor como protagonista
As redes sociais ampliaram o desejo da participação ativa na tomada de decisões. Criaram um ambiente em que a reação é imediata, a opinião é pública e o engajamento é performático. Há quem veja nisso apenas uma estética da indignação que pode levar a uma lógica circense, mas o fenômeno é mais profundo: trata-se de uma nova cultura política em formação. O eleitor quer se posicionar, ser ouvido, tomar parte — e quando encontra espaços institucionais para isso, reconhece ali uma extensão de sua cidadania.
O caso de Adriana Souza ilustra essa tentativa de conexão com os anseios das maiorias populares. Ao rejeitar publicamente o aumento salarial dos vereadores, não apenas assumiu uma posição ética, mas sintonizou-se com um sentimento coletivo difuso: o de que é preciso dar exemplo, de que a política precisa reencontrar sua vocação pública. Seu gesto, por si só, não resolve as distorções do sistema, mas representa um tipo de atitude que comunica com clareza — e por isso gera identificação.
O que está em jogo, portanto, não é apenas a entrega material de políticas, mas a postura política que acompanha cada ação. O eleitorado atual premia a coerência, a coragem e a clareza de posicionamento. E pune a hesitação e a dubiedade. Mais do que eficácia administrativa, há uma busca por autenticidade democrática.
7. Os 10% e o valor da democracia: reconstruir pontes simbólicas
Como observa Felipe Nunes, os eleitores “liberais sociais” têm um apreço genuíno pela estabilidade, pela ordem democrática e pela previsibilidade das instituições. São sujeitos que, ainda que insatisfeitos com o ritmo ou a profundidade das transformações sociais, não abrem mão do respeito às regras do jogo. Para eles, o valor da democracia está justamente na sua capacidade de conter os excessos, equilibrar os poderes e garantir algum tipo de racionalidade.
Não é à toa que esse grupo reagiu com veemência aos ataques de 8 de janeiro. A tentativa de golpe não foi percebida apenas como uma ameaça à esquerda ou ao governo vigente, mas como uma ruptura intolerável com o pacto mínimo de civilidade institucional. Aliás, para aqueles que temiam (ou torciam) para que as próximas eleições de 2026 fossem imitar o que aconteceu nos Estados Unidos, Nunes dá um recado: segundo levantamento da Quaest, a maioria da população acredita que os envolvidos nos atos antidemocráticos do 8 de Janeiro de 2023 devem ser punidos. Até o momento, não houve condescendência de grande parte do eleitorado como ocorreu em solo estadunidense, que dourou a pílula aos ataques promovidos por radicais contra a posse de Joe Biden ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021.
Isso significa, por exemplo, defender abertamente a autonomia do Judiciário, a liberdade de imprensa, a legalidade constitucional e a punição dos que atentaram contra essas instituições. Significa também praticar uma política de moderação ativa: não a moderação da omissão ou da conciliação oportunista, mas a que decorre da coragem de sustentar princípios mesmo diante da gritaria. Em tempos de pós-verdade, fake News e dissonâncias cognitivas, a moderação é um ato de radicalidade política. Quem ouve os diferentes foge da normalidade atualmente existente, pautada na polarização afetiva.
Tancredo Neves talvez não seja, à primeira vista, um nome que convoque paixões na política contemporânea. Não está nas camisetas, nem nos hashtags. Mas é justamente por isso que ele importa. Em tempos de hiperexposição, de radicalização estética e de política feita a partir da histeria coletiva, Tancredo representa o que falta: escuta ativa e disposição para costurar pactos democráticos duradouros.
Sua figura emerge, neste texto, não como mito, mas como símbolo. Um símbolo de um modo possível — e necessário — de fazer política. Alguém que, mesmo no auge das tensões da República brasileira ao longo do século XX se mostrou como importante mediador. Independentemente dos juízos de valor ao analisarmos se tal postura foi correta ou incorreta, Tancredo foi quem criou a alternativa do parlamentarismo em 1961, evitando a confrontação bélica daquele momento. Na transição democrática, foi para o embate logo de início. Chamou os golpistas pelo nome (“Canalhas!”) e conseguiu estabelecer mediações que ampliavam a voz da recuperação do sentimento democrático no país. Recusou o confronto direto armado e apostou na conciliação sem submissão, na negociação sem capitulação. Alguém que compreendia que política não é somente a arte de vencer o inimigo por aniquilação, mas de construir maiorias sustentáveis em meio à divergência.
Revisitar Tancredo, portanto, é também um gesto pedagógico. Sua trajetória nos ensina que a moderação não é ausência de posição, mas uma forma elevada de responsabilidade. Que a escuta não é fraqueza, mas método. E que a política, antes de ser palco, é processo — um processo delicado de mediação entre interesses, tempos e sensibilidades distintas.
Nesse sentido, Tancredo pode — e deve — ser mobilizado como uma referência simbólica para a superação da polarização afetiva. Não para negar o conflito, mas para reinscrevê-lo no terreno da racionalidade democrática. Não para apagar as diferenças, mas para impedir que se convertam em ódio intransponível.
É possível, inclusive, imaginar que os tais 10% de eleitores ainda em disputa se reconheçam em figuras como Tancredo. Não pelo apego nostálgico ao passado, mas pela carência de exemplos contemporâneos que saibam mediar, dialogar e liderar com sobriedade. Num cenário marcado por figuras que gritam, talvez Rodrigo Pacheco represente essa possível mineiridade conciliatória tão importante em tempos de espetacularização da política e polarização afetiva.
O legado de Tancredo pode ser um ponto de partida para reconstruir a confiança na política como espaço de construção do comum. Para isso, é preciso resgatar — nas práticas cotidianas da política — os elementos de sua pedagogia: escuta, respeito, articulação e senso de história.
Em um Brasil fraturado pela polarização afetiva, retomar Tancredo é também reaprender a fazer política como ato de responsabilidade com o futuro.
Conclusão: o que devemos fazer?
Diante de um cenário marcado pela calcificação dos polos, pela corrosão da confiança institucional e pela transformação do adversário em inimigo, a pergunta que dá título a este texto se impõe com força: o que devemos fazer?
A resposta, por óbvia que pareça, exige coragem: precisamos repolitizar o espaço público sem recair na lógica do isolacionismo ou do reforço das trincheiras já calcificadas. Isso significa resgatar a política como prática de mediação e como arte de escuta — duas dimensões que parecem ausentes no espetáculo agressivo da extrema direita quanto em discursos lacradores e insensíveis de certos setores do nosso campo progressista, democrático e popular. Como falamos em um texto recentemente publicado, fazer política significa saber “mexer o doce”(4). Ou seja, significa saber escutar e sistematizar a escuta da população. Significa ter paciência com determinadas opiniões, por vezes grotescas aos ouvidos de um intelectual. Em suma, não basta mandar a população “ir estudar” ou chamá-la de “gado bolsonarista”. Afinal, já dizia certo antropólogo disruptivo chinês, figura central para a situação geopolítica do país após os eventos de 1949: as contradições no seio do povo não são antagônicas e podem produzir novas sínteses de construção da unidade.
Devemos, também, reconhecer a inteligência do eleitorado. O comportamento político recente dos brasileiros, como apontado por Felipe Nunes, revela um nível de criticidade que desafia simplificações. Os 10% em disputa não são indecisos apáticos, mas sujeitos exigentes, que rejeitam tanto o autoritarismo quanto a inércia simbólica. Querem coerência, querem clareza, querem ser parte.
Neste contexto, três tarefas se apresentam. A primeira é compreender e mapear os ausentes, os que se abstêm não por alienação, mas por cansaço político. Ao mapear, é preciso que o nosso Partido pense em formas de diálogo com esse eleitorado. Afinal, como podemos organizar gabinetes de rua com a finalidade de conversar com esse eleitor ou eleitora? Qual deve ser a nossa estratégia nas redes sociais?
A segunda é reconquistar os liberais sociais e os empreendedores precarizados, não apenas com propostas econômicas, mas com compromissos institucionais claros e gestos simbólicos que comuniquem pertencimento. Para isso, é preciso saber quais são as palavras e os conceitos que esses setores conferem sentido a sua identidade política. Ao invés de querermos oferecer um “cardápio classista” de identificação aos moldes do antigo sindicalismo, é preciso não querer encaixá-los em quadras que eles não se enxergam, como temos visto as centrais sindicais tentarem encaixar os trabalhadores de aplicativo à mera condição de “precarizados”. Ora, e o que eles têm a dizer de positivo sobre a sua experiência como trabalhadores? Como nossas organizações coletivas de trabalhadores podem contribuir para expandir melhorias naquilo que eles próprios desejam em termos de melhoria? Seria uma afronta ao nosso campo trabalharmos com a noção do empreendedorismo? Qual é o problema em ser um pequeno empresário? Um trabalhador que se enxerga como um empreendedor estaria fora da luta de classes ao se identificar como tal? E a terceira é enfrentar a polarização afetiva com a pedagogia da moderação, como nos ensinou Tancredo Neves — transformando a escuta em método, e a racionalidade em valor público. Mais uma vez: é preciso mexer o doce e assumir a ponta da comunicação digital.
O Brasil precisa reconstituir seu campo comum, e isso passa por disputar a política no sentido pleno: como construção coletiva de futuros possíveis. Que saiba dar significado concreto à ideia de prosperidade e riqueza vinda dos setores de baixo. Que não trate com desdém a visão dos empreendedores precarizados na sua luta pela manutenção de certa organização autônoma do trabalho. Que não busque dizer somente o que são esses setores sem antes ter a consciência mais aprofundada do que são eles e quais são seus valores de prosperidade, riqueza e de mérito conforme a sua relação com o mundo do trabalho.
Nesse sentido, é preciso afirmar um projeto que enfrente a polarização sem perder a firmeza, que defenda as instituições sem perder a sensibilidade, que governe buscando ampliar sua maioria política. Nesse sentido, ser amplo nessa quadra histórica constitui um ato de grande radicalidade, pois somente assim conseguiremos consolidar alianças heterogêneas capazes de compor uma maioria política favorável a um projeto nacional de desenvolvimento.
André Luan Nunes Macedo é professor de História da Universidade Federal de Viçosa
NOTAS
(1) Ver RODA VIVA | FELIPE NUNES | 16/06/2025
(2) Fico pensando se não teria sido esse o caso do companheiro Edinho ao tentar propor uma sucessão para a cidade de Araraquara.
(3) Ver o texto feito por mim e a vereadora Adriana Souza neste Blog, intitulado “Reconstruir o modo petista de lutar e governar”.
(4) O livro “Como organizar uma Reunião?” foi publicado para o Núcleo de Formação de Contagem. De minha autoria e do camarada Pedro Otoni, exploramos o aspecto da escuta como elemento central para a organização das nossas reuniões políticas.