“É uma luta de classes, porra!” é o título do famoso discurso proferido por Fred Hampton, dos Panteras Negras, em um importante ato de definição da ideologia do Partido. Estavam ali, diferentes pessoas negras, organizadas para combater o capitalismo. Ao afirmar que a luta é de classes, Hampton não rompe com a questão da raça, mas reafirma que o Black Panther Party se organiza dentro de uma perspectiva do marxismo, empenhado em construir a revolução, com o objetivo principal de eliminar a exploração de uma classe sobre a outra.
Classe e raça se entrelaçam na medida em que o racismo é estrutural e parte integrante da sociedade. O racismo estrutural refere-se ao sistema em que políticas públicas, práticas institucionais, representações culturais e outras normas funcionam de maneira a perpetuar a desigualdade racial. Diferentemente do racismo individual, que decorre da discriminação ou preconceito de uma pessoa para com outra, o racismo estrutural está enraizado nas próprias fundações da sociedade, infiltrando-se nas estruturas legais, econômicas e educacionais que governam a vida cotidiana.
O racismo estrutural cria e mantém barreiras que limitam as oportunidades e o acesso aos recursos por parte de grupos raciais historicamente marginalizados. Este sistema é sustentado por um legado histórico de desigualdades e é perpetuado por meio de práticas cotidianas, inconscientes ou não, que reforçam a superioridade de certos grupos em detrimento de outros. Combater o racismo estrutural requer um esforço coletivo para desmantelar essas estruturas e práticas discriminatórias, exigindo mudanças significativas nas políticas públicas, nas atitudes sociais e na consciência individual.
Logo, o combate ao racismo está intrinsicamente atrelado ao capitalismo. Não há capitalismo sem racismo e por isso, não pode haver o debate de classe sem o debate de raça. A classe não é um mero conceito elaborado pelos marxistas, mas uma divisão da sociedade gerada pela gananciosa exploração dos mais ricos. Na sociedade capitalista, desde os primórdios, podemos perceber diferentes mecanismos de exploração humana. E o racismo é criado para forjar uma sociedade em que uma elite domina a outra.
A classe e a raça são, desse modo, temas que devem ser debatidos em diferentes esferas da vida em sociedade e isso inclui a cultura. Em nossa sociedade, é evidente a disparidade racial em posições de prestígio e poder. Frequentemente, a população branca é encontrada em esferas de alto status social, enquanto pessoas negras frequentemente ocupam posições marginalizadas, um reflexo nítido das intersecções entre racismo e desigualdades de classe. Esta realidade se reproduz no mundo da arte e da cultura, espaços tradicionalmente dominados por elites brancas, onde o acesso à formação artística de alto nível e os papeis de liderança em instituições culturais são majoritariamente reservados a indivíduos brancos.
Uma observação atenta em teatros, orquestras e museus rapidamente revela a predominância de uma elite branca controlando estes espaços. No entanto, é fundamental reconhecer que a cultura transcende esses ambientes elitizados. Ela é criada no cotidiano, por pessoas comuns e artistas de todas as camadas sociais, enraizando-se profundamente na vida das comunidades.
Nas vias públicas, nas residências, tanto em áreas rurais quanto urbanas, o que se vê é uma efervescência cultural protagonizada por pessoas negras e de classes menos favorecidas, demonstrando que a arte verdadeira respira fora dos limites dos espaços institucionalizados. Essa contradição destaca a falácia da narrativa promovida pelas elites de que a arte é universal e acessível a todos. Apesar de proclamarem a pluralidade da arte, é inegável que os recursos e oportunidades no campo artístico são desigualmente distribuídos, favorecendo aqueles que já estão em posições de vantagem.
Para a população negra, a arte muitas vezes é representada por expressões culturais como o hip hop e a capoeira, vistas como manifestações mais “populares”. Em contrapartida, quando se pensa em orquestras ou balé, a imagem automaticamente conjurada é a de um elenco e audiência predominantemente brancos. Esta não é uma peculiaridade brasileira, mas uma realidade global que apenas pode ser desafiada através de políticas de ação afirmativa. Estas políticas são vitais para desmantelar as barreiras históricas que limitam o acesso de pessoas negras a espaços anteriormente monopolizados pela branquitude, promovendo assim uma verdadeira democratização cultural.
A desigualdade de classe e a cultura estão intrinsecamente interligadas, refletindo e perpetuando as disparidades socioeconômicas que marcam profundamente as sociedades ao redor do mundo. A cultura, em suas diversas formas de expressão, não só é moldada pelo contexto de classe em que emerge, mas também serve como um veículo para a manutenção ou contestação das hierarquias sociais existentes.
A desigualdade de classe se manifesta na cultura através do acesso diferenciado aos recursos culturais, na representação nos espaços culturais e na valorização de diferentes formas culturais. Instituições culturais, como museus, teatros, e galerias de arte, muitas vezes se localizam em áreas urbanas privilegiadas e cobram preços de entrada que restringem o acesso às classes menos abastadas. Essa segregação espacial e econômica limita a exposição e participação das classes trabalhadoras em experiências culturais consideradas de “alto” valor.
A valorização de expressões culturais é fortemente influenciada por normas e valores da classe dominante. Formas de arte e expressões culturais originárias de comunidades menos favorecidas são frequentemente marginalizadas. Por outro lado, as expressões culturais promovidas e consumidas pela elite são elevadas ao status de “alta cultura”, desfrutando de maior prestígio e reconhecimento institucional.
A educação desempenha um papel crucial na transmissão e transformação da cultura, bem como na perpetuação das desigualdades de classe e raça. A falta de programas educacionais inclusivos e acessíveis que valorizem a diversidade cultural contribui para a manutenção de um cenário cultural homogêneo, que reflete os interesses e histórias da classe dominante. Políticas públicas voltadas para a democratização do acesso à cultura e educação podem ajudar a desfazer esses padrões, promovendo uma maior inclusão e reconhecimento das várias expressões culturais presentes na sociedade.
Apesar das barreiras impostas pela desigualdade de classe, comunidades marginalizadas têm utilizado a cultura como uma poderosa ferramenta de resistência, expressão e afirmação de identidade. Movimentos culturais emergentes dessas comunidades desafiam as narrativas dominantes, oferecendo novas perspectivas e enriquecendo o tecido cultural com suas histórias e tradições únicas. Esses movimentos não apenas questionam as estruturas de poder existentes, mas também reivindicam espaço para a diversidade e pluralidade cultural.
A desigualdade de classe e a cultura estão entrelaçadas de maneiras complexas, com a cultura servindo tanto como um reflexo das disparidades socioeconômicas quanto como um campo de batalha para sua contestação. Reconhecer e abordar as raízes da desigualdade de classe na cultura é essencial para construir sociedades mais justas e inclusivas, onde todas as formas de expressão cultural são valorizadas e têm espaço para florescer. Através da educação inclusiva, políticas públicas equitativas e o apoio a movimentos culturais de base, podemos começar a desmantelar as barreiras que segregam o mundo cultural e abrir caminho para uma verdadeira democratização cultural.
As ações afirmativas e outras iniciativas de inclusão surgem como respostas necessárias para corrigir essas desigualdades estruturais, aspirando um futuro em que a arte e a cultura reflitam verdadeiramente a diversidade e riqueza de todas as vozes da sociedade.
Aniele Fernandes de Sousa Leão é doutora em Educação, pela UFMG. Mestre em Educação (CEFET), Especialista em Gestão de Projetos (USP); Graduada em História (UNIBH) e Pedagogia (UNINTER). Atua como Superintendente de Políticas Culturais na Secretaria de Cultura de Contagem.