topo_M_Jose_prata_Ivanir_Alves_Corgozinho_n

SEÇÕES

Cláudio Gonçalves Couto: Crise de regime e crise de governo

A intentona produziu a primeira crise do governo Lula; mais grave, porém, foi ter abalado o regime democrático

Valor Econômico, 19/01/2023

Regimes políticos são a forma de existir dos Estados, suas bases constitucionais, seu modo de ser permanente. O regime está inscrito nas normas constitucionais definidoras do modo de operação daquele Estado, seja numa Carta Magna, numa coleção de textos legais ou nas tradições de funcionamento de um determinado sistema político.

Assim, num regime democrático, a normatividade constitucional estipula o pluralismo, o direito de oposição e a possibilidade de alternância no poder. Determina também o caráter competitivo e inclusive da política, conferindo direitos políticos iguais a todos os cidadãos, indistintamente. Por sua indispensável dimensão liberal, a democracia contemporânea requer freios e contrapesos ao exercício do poder por todos os atores políticos, evitando abusos e excessos que ameacem direitos e os demais princípios de funcionamento do regime. Na contemporaneidade, se uma democracia não é liberal, simplesmente não é democracia.

Temos uma crise do regime político quando qualquer uma dessas bases sobre as quais se assenta um regime são ameaçadas, operam disfuncionalmente ou se quebram.

Governos, por sua vez, são transitórios e operam não no nível constitucional, mas sob a égide de uma constituição- ainda que possam ter iniciativas voltadas a transformar os fundamentos da ordem constitucional e, assim, do regime. Se o Estado (e, logo, o regime) é a máquina, o governo nada mais é do que o operador dela. Enquanto regimes expressam um pacto político estável, traduzindo grandes consensos, governos decorrem de escolhas eleitorais, dando corpo a preferências excludentes de parcelas da sociedade. Embora governos atuem limitados pelo consenso que define o regime, têm dentro de tais limites espaço suficiente para conduzir ações não consensuais, optando por certos programas, políticas públicas, prioridades etc., em detrimento de outros. É da lógica do regime democrático que seus governos satisfaçam mais a uns que a outros, assim como numa disputa esportiva – que ocorre sob regras consensuais – haja vencedores e derrotados. É tão legítimo celebrar a vitória como necessário aceitar a derrota.

Por sua própria natureza, mutável e transitória por definição, governos estão sujeitos a crises corriqueiras; elas são normais e sua gravidade não tende a ser grande. Na pior das hipóteses, o governo é substituído por outro numa nova eleição, por um voto de desconfiança parlamentar ou, em sistemas presidencialistas, em situações mais graves, por meio de um impeachment, enquanto o regime segue intocado.

Nos regimes, contudo, por serem pactos que devem atravessar muitos governos ao longo do tempo, crises frequentes são perigosas, pois podem levar a seu colapso e, assim, à derrocada da própria forma de Estado – no caso da democracia, à sua morte e substituição por um regime autocrático.

O governo Bolsonaro tinha uma peculiaridade: operou todo o tempo fomentando crises de regime, mesmo na ausência de crises de governo. Como se tratava de uma gestão cujo propósito era justamente o de tensionar os limites constitucionais, as tribulações produzidas-nos embates com o Congresso, o Judiciário, os governos estaduais, a administração pública, a imprensa e outras nações-eram não só inevitáveis, mas a própria razão de ser do mandato presidencial conquistado em 2018. Ao tensionar as bases do regime, o governo atingia seus propósitos; era um governo em descompasso com a ordem constitucional e, consequentemente, em constante contradição com ela.

A intentona bolsonaresca de 8 de janeiro significou uma séria crise de regime, pois fustigou concreta e vigorosamente a democracia brasileira. Mesmo depois de terminado seu governo, o bolsonarismo ainda teve sucesso em dar continuidade à crise constitucional que caracterizou todo o mandato de seu líder. O ataque à sede dos três poderes tinha um propósito explicito, descrito nas faixas e gritos de guerra de seus perpetradores: depor ministros do STF e o presidente democraticamente eleito em 2022. Já que o Congresso também foi atacado, pode-se subentender que também mandatos parlamentares deveriam ser derrogados.

A intentona bolsonaresca produziu também uma crise de governo ao expor a incapacidade da nova gestão em evitar a concretização do ataque à democracia. A preparação de alguns ministros (como José Múcio e Flávio Dino) para o que viria foi questionada. Ainda que a intensidade das críticas tenha sido distinta nos dois casos e a ação de Dino logo após a ocorrência lhe tenha permitido por freio à escalada da crise, inegavelmente o governo se viu numa situação difícil e embaraçosa.

Também contribuiu para o agravamento da situação a conduta do comandante do Exército, general Júlio César de Arruda, que confrontou o ministro da justiça e impediu que -conforme determinação do STF -fossem presos os golpistas alojados em frente ao QG da força em Brasília; muitos deles, como se sabe, parentes de militares, militares da reserva e reformados.

A preservação do regime requererá do novo governo que, primeira mente, solucione seus problemas internos e tenha força para produzir ajustes indispensáveis à prevenção de novas ameaças ao regime político, evitando a repetição dos erros. A credulidade ou boa-fé dos ministros postos em xeque precisa ser superada, já que foi ludibriada por setores das forças armadas e do Governo do Distrito Federal. Porém, não é só isso.

O enquadramento da situação militar é a tarefa mais importante e requer diversas providências (algumas que, aliás, já vêm sendo tomadas) para despolitizar as Forças Ar madas: a desmilitarização ampla de áreas civis da máquina administrativa, a eliminação das celebrações militares do golpe de Estado de 1964 e da ditadura que lhe deu seguimento, o estabelecimento de longas quarentenas entre a ida para a reserva e a disputa de eleições, a alteração do Artigo 142 da Constituição Federal, deixando claro que o papel dos militares não pode ser sequer imaginado como o de um “poder moderador” da República. Não sendo assim, outra intentona virá.

Cláudio Gonçalves Couto é cientista político e professor da FGV-SP.

Outras notícias