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Felipe Nunes e Thomas Traumann: Lula e os tempos de gratidão instantânea

Presidente tem viajado e aparecido mais, mas em tempos de calcificação política, a reação é correta, mas talvez insuficiente

O Globo, 25/02/2025

A queda recente na aprovação do governo Lula gerou uma busca interna por culpados e uma mudança visível no comportamento do presidente. Nas últimas semanas, Lula tem viajado e aparecido mais fora dos gabinetes de Brasília, concedido mais entrevistas e gravado mais vídeos impulsionados nas redes sociais pela sua assessoria. É um Lula mais presente que carrega com sua mensagem um pressuposto: o de que a sociedade não conhece tudo o que o seu governo tem feito e que, assim que souber, irá voltar a avaliar a gestão positivamente.

As pesquisas mostram que desde dezembro vem crescendo a desaprovação ao governo no núcleo duro dos eleitores lulistas: os mais pobres, as mulheres, os eleitores do Nordeste, os católicos e os que se declaram pretos. Por essa avaliação corrente no Palácio do Planalto, o mau humor do eleitor está diretamente ligado ao aumento dos preços no fim do ano combinada com o pior momento de poder de compra do salário mínimo. Apenas no mês de dezembro, o INPC, que mede a inflação para quem ganha até 5 salários mínimos, registrou uma alta nos preços dos alimentos e bebidas de 1,12%. Parte dessa alta se deve à valorização do dólar depois que o governo tropeçou nas próprias pernas ao anunciar o novo pacote fiscal.

Além disso, houve a sucessão de erros da comunicação oficial ao não compreender a desconfiança da população com o monitoramento das transações do PIX, que foram alimentadas por boatos sobre uma taxação nos pagamentos por essa modalidade. A oposição se aproveitou do descrédito e fez política. Só o vídeo do deputado oposicionista Nikolas Ferreira, relacionando os rumores sobre o PIX à taxação das importações chinesas, teve mais de 300 milhões de visualizações — seis vezes mais do que todos os posts de Lula no Instagram e TikTok em um mês inteiro.

Na visão do governo, portanto, a problema do Lula é conjuntural. Com o reajuste de 7,5% no salário mínimo a partir de fevereiro, a queda do dólar neste início de ano e o início da colheita da safra de verão, a inflação tende a cair e o poder de compra dos mais pobres vai subir. A troca de comando na Secretaria de Comunicação, uma melhor coordenação nos anúncios oficiais e o maior protagonismo de Lula como porta-voz seriam, por essa visão, suficientes para reativar a sintonia do governo com o seu eleitorado.

Em tempos de calcificação política, é uma reação correta, mas talvez insuficiente. Seria natural esperar melhora na aprovação entre os eleitores que estiveram com Lula em 2022, mas desde que do outro lado esteja Bolsonaro ou um dos seus filhos. O eleitorado brasileiro continua polarizado em relação a valores, na forma de avaliar o comportamento do governo e na percepção sobre os grandes temas. A economia, neste cenário tão equilibrado, passa a ser prejudicial quando piora, mas não necessariamente ajuda quando se recupera. Lula está há dois anos no governo, o orçamento público aumentou em R$ 200 bilhões, o crescimento econômico é o maior em doze anos, o desemprego está em mínimas históricas, o salário mínimo voltou a subir acima da inflação, os gastos públicos com educação e saúde foram ampliados, mas nada disso deu ao presidente um conforto popular. Na pesquisa Genial/Quaest de janeiro, a avaliação negativa superou a positiva pela primeira vez, 37% a 31%. No Datafolha de fevereiro, o índice de quem considera o governo ótimo ou bom caiu de 35% para 24%, enquanto os que acham ruim ou péssimo subiram de 34% para 41%. O que explicaria esse descasamento entre economia e popularidade? O axioma ‘é a economia, estúpido!’ deixou de valer?

O problema da aprovação do governo Lula não é apenas conjuntural, é estrutural. Assim como quase todos os governos, a gestão Lula se baseia numa lógica de gratidão, pela qual os eleitores votam a favor de quem lhe fez algo palpável para melhorar as suas vidas. Foi assim que políticas públicas como o Bolsa Família, a valorização real do salário mínimo, o ProUni e o Farmácia Popular ajudaram o PT a vencer as eleições de 2006, 2010 e 2014, e sua memória ajudou Lula a voltar ao Planalto em 2022. Só que isso não é mais suficiente. Não há mais gratidão política automática.

Mas se isso é verdade, por que as eleições municipais de outubro tiveram mais de 80% de reeleição, índice mais alto do século? Haveria uma ingratidão maior do eleitor a Lula do que aos prefeitos? Sim e não. Há bons indicadores sugerindo que o recorde de reeleições dos prefeitos está diretamente vinculado à distribuição das emendas parlamentares, o que explica porque este Congresso é o mais poderoso da história. O dinheiro dessas emendas foi, em sua maior parte, gasto em obras visíveis de impacto imediato na vida do eleitor, de melhoria de estradas à reforma de postos de saúde. Elas renderam uma gratidão instantânea, que só será repetida em 2026 se houver novas obras com o mesmo impacto. A relação de parte de eleitorado de usar seu voto como moeda de troca segue valendo, mas agora ela exige um pagamento antecipado e o tempo de gratidão é menor.

Já programas federais como o Bolsa Família ou o Farmácia Popular estão incorporados à vida de milhões de brasileiros, que sobreviveram mesmo em governos antipetistas. Muitos eleitores passaram a ver os programas sociais e os benefícios do governo como um direito adquirido. Lula seria punido se não cumprisse a promessa de dar aumentos reais ao salário mínimo, mas só fazer isso não lhe dá crédito. Para o eleitor, ele não fez mais que a obrigação. Ao montar um governo cuja única agenda é refazer o que deu certos nos mandatos Lula 1 e 2, o presidente criou uma armadilha para si mesmo. Ele só entrega o que já é conhecido. Ele não gera a gratidão consequente do voto econômico.

A dificuldade de os governantes compreenderem esse novo mundo não é exclusiva do Brasil. Nunca tantos governos perderam eleições como no ano passado, da direita no Reino Unido à esquerda em Portugal, da centro-esquerda nos EUA à centro-direita na França. De acordo com a organização Instituto Internacional para Democracia e Assistência Eleitoral (IDEA), das 71 eleições nacionais do ano passado, houve troca de poder em 23 — um índice recorde. Há uma insatisfação global com o custo de vida, com as perspectivas de emprego e a falta de resposta dos políticos. São os efeitos políticos da pandemia.

Num clima assim, a impaciência do eleitor é muito maior que a sua capacidade de reconhecer avanços. O governo democrata dos EUA tentou fazer da defesa da democracia o seu mote e foi surrado nas urnas por não saber responder ao aumento dos ovos. Assim como nos dois primeiros anos de Lula, Joe Biden tinha ótimos números macroeconômicos para apresentar, mas a população não come indicadores do PIB. Ela toma café (cujo preço subiu 39% no ano passado), usa óleo de soja (29%) e em neste mês está assustada com a alta de 40% dos ovos e combustíveis.

O governo Lula cometeu um erro de premissa. Lula não foi eleito em 2022 para refazer os caminhos dos governos Lula e 2, mas para evitar um segundo governo Bolsonaro. Não ter compreendido isso fez de Lula 3 um governo contraditório. Os liberais sociais, que querem um Estado fiscalmente responsável, abandonaram o governo quando ele optou por uma política de mais Estado. A insistência do Ministério do Trabalho em recriar o imposto sindical afastou os empreendedores individuais. O esforço do Ministério da Fazenda em limitar os gastos públicos é atacado publicamente pela esquerda. Com o tempo, se criou um governo centralizador e fechado, no qual o presidente só ouve políticos petistas e abandonou a frente ampla que o elegeu.

Lula montou um ministério com quatro ex-candidatos a presidente (Geraldo Alckmin, Marina Silva, Simone Tebet e Fernando Haddad) e oito ministros com experiências como governadores (Alckmin de novo, Rui Costa, Camilo Santana, Flavio Dino, Wellington Dias, Renan Filho, Márcio França e Waldez Góes). Passados dois anos, não sobrou ninguém. Todas as lideranças foram encolhidas para que o presidente brilhasse sozinho.

A vantagem que o presidente tem, e a esperança que carrega, é que o voto em outubro de 2026 vai ser determinado pela calcificação, que de cara lhe garante um piso de mais de 40% dos votos, e pela percepção de bem-estar dos últimos meses, não dos últimos anos. Ou seja, a instantaneidade que hoje gera desaprovação pode produzir aprovação se o governo produzir medidas de impacto às vésperas do período eleitoral. O sucesso da candidatura de Lula por um quarto mandato vai depender da capacidade do governo de entender a nova sociedade brasileira e de dar respostas concretas para ela.

Como um craque do futebol que volta ao Brasil no final da carreira, Lula tem a seu lado a experiência, a reconhecida intuição política e uma leitura de jogo acima de seus companheiros. Mas as regras do jogo estão mudando. O eleitor não é mais o mesmo e exige respostas mais rápidas, sem gratidão automática. Sem compreender as novas regras, toda bola vai longe do gol.

Felipe Nunes é doutor em ciência política e mestre em estatística pela Universidade da Califórnia, Los Angeles (Ucla), professor da UFMG e diretor executivo da Quaest Pesquisa e Consultoria.

Thomas Traumann é jornalista, consultor político-econômico e pesquisador da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas (DAPP-FGV).

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