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Hamilton Reis: Benditos são os frutos

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Confesso que vivi, disse Pablo Neruda ao nomear a autobiografia e contar sua história. Faço igual constatação e devo acrescentar que tenho vivido intensamente. Chegando aos 60 anos e ainda à espera sem pressa dos netos, revivo momentos, observo o tempo que passa e sonho com o futuro. Observo filhos e filhas, atentamente, até onde a vista alcança e o coração sente. Todos os dias, em um aprendizado incessante.

Aos quatro anos, Cecília é encanto em estado puro, pureza encantadora em olhinhos inquietos que descobrem o mundo. Vida que pulsa, palavras que brotam com curiosidade, presença atenta. Perdida em suas brincadeiras cria a própria realidade, cheia de imaginação. Uma explosão de cores e alegrias. Na mistura de traços e jeitos, a delicadeza da mãe e a beleza que dela herda, enquanto se parece cada vez mais com ela mesma.

Gosta de colorir e pintar. Fica horas envolta em seus rabiscos. A televisão não a aprisiona por muito tempo. Movimenta-se na sala da casa, da qual tomou posse desde cedo. O espaço é dela, e nele habitam bonecas, livros e papéis, tintas e pincéis, lápis de cor, cavalinho, pelúcias de cachorros e ursos. Uma infinidade de coisas que se revezam entre a bancada, o sofá e as gavetas, todas cheias.

Quando Ana Brisa nasceu, disse que ela era um suave sopro de Deus em nossas vidas. Estava certo, constato passados quase 25 anos. Há leveza em seu caminhar, mesmo que os passos sejam firmes e decididos. Uma moça repleta de delicadeza e ternura, uma mulher que sabe o que quer. Meu orgulho em suas escolhas e decisões. Começou no Direito e depois de um tempo decidiu mudar. Foi ao encontro do Jornalismo e se encontrou.

A bebezinha para quem eu lia contos de fadas virou uma criança amiga dos livros. E agora, em uma relação madura e artesã com as palavras, escreve com clareza, objetividade. Domina a técnica, mas cria também com estilo seus textos elegantes, a ocuparem as páginas de jornais.

Pedro amadurece a passos largos. Vai deixando lembranças boas no caminho. Pequenino, certa manhã, pediu aos passarinhos no telhado que não o acordassem, pois ainda estava dormindo. De outra feita, na roça, avisou aos porquinhos na casa da bisavó, que tivessem cuidado com o lobo mau. Um menino sensível, cuidadoso, carinhoso. Que nos escrevia da infância recente cartinhas para expressar todo o seu amor.

Aos nove, ele brilha. Estudioso, dedicado. Toda semana escolhe um livro na biblioteca para trazer para casa. Não preciso mais inventar histórias de dinossauros, de viagens aos anéis de Saturno e de heróis e vilões. Ele coleciona obras literárias com o gosto e zelo que ainda tem pelos carros, sua primeira fascinação. Embora agora se dedique mais a criá-los com seu arsenal de robótica. Ganhou um pedaço da casa para chamar de laboratório e de lá suas criações transbordam para cada canto.

Mas o centro de suas atenções tem sido o futebol. Começou como goleiro. Depois descobriu a sua vocação de artilheiro. E quase todos os dias faz os seus gols. Na quadra da escola ou nos treinos de terça e quinta. Semana passada, ficou emocionado ao registrar seu primeiro gol de bicicleta. E segue sonhando em seguir carreira e um dia jogar na Argentina, junto com Théo Cassiano, primo mais novo e amigo inseparável. E, claro, influenciado por ver Messi jogar com sua habilidade talentosa e impressionante.

Diogo é o primogênito. Entre nós se passaram 39 anos. Lembro da manhã de sua chegada, depois de passar a noite no hospital à espera. Naquela época não era permitido acompanhar o parto e a mãe passou sozinha pelas últimas contrações. Aos 19 anos eu tinha forças e coragem para encarar a vida de frente. E a vinda dele acelerou aprendizados. Em nome de sua chegada constituí família, conquistei o primeiro emprego de carteira assinada como repórter em uma revista de moda e enfrentei moinhos de vento. Escrevia mais poesia, ganhava salário-mínimo e fui feliz com descobertas, dores, remendos, dissabores e tudo mais que a imaturidade nos obriga até passar.

Quando segui em frente tive que deixá-lo. Tivemos distâncias e reencontros. Discórdias quando ele cresceu, separação, crises. Moramos juntos. O assumi em um momento importante de sua infância, até que a adolescência e outros rumores nos dividiram. Mas segui sendo para ele um porto seguro. A mão estendida ao menor pedido de ajuda. Com ele aprendi a ser pai.

No mundo que agora cria, mediado pela esquizofrenia, eu sigo sendo parte. Tentando entender o incompreensível, amparando quando preciso, acudindo, estando por perto. Pois na maior parte das vezes, é isso que me resta, pois não posso curar, mas posso amar. E às vezes é isso que basta.

Meus filhos e filhas são a minha melhor parte. Eles e elas dão sentido ao que faço. Se trabalho, se estudo, se escrevo, se vivo, os tenho como razão. Já plantei árvores e agradeço pelas flores e frutos. São abençoados. Como abençoadas são as sementes que espalhamos para que a existência se perpetue. Sigo com fé, com alegria e coragem. Pedindo a Deus tempo para escrever livros e saúde para esperar pelos netos e netas, se eles vierem. Sem pressa, no tempo que me resta.

Hamilton Reis é jornalista e advogado.

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