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Hamilton Reis: Memória. Os meninos e as peladas do Flamboyant Futebol Clube

Não sou do tipo que toma cerveja no sofá em frente à televisão. Não frequento bares, nem estádios. Mas gosto de futebol e sempre que posso assisto aos jogos do meu time. Aos oito anos de idade tive a sorte de acompanhar uma das melhores equipes do Cruzeiro. Aquela que foi vice-campeã brasileira, perdendo o título para o Internacional, em 1975. Mas que em julho do ano seguinte se sagraria a primeira de Minas, e durante muito tempo a única, a vencer em campanha memorável a taça Libertadores da América. Um pequeno aparelho de rádio, azul e branco, foi minha companhia durante toda a campanha.

Joãozinho, ponta esquerda conhecido como bailarino da Toca (da Raposa) era um dos ídolos daquela época de ouro. Camisa 11. Foi dele o gol matreiro, batendo falta contra a meta do argentino River Plate, em partida jogada no Chile, no finalzinho do segundo tempo. O batedor oficial era Nelinho, que estava próximo à bola. Mas com os 3×2 não tinha motivo para bronca. Tudo virou festa azul e branca.

O camisa 11, dos mais brilhantes da história da Raposa jogou muitas peladas no campinho que existia atrás de onde hoje é a UPA JK, em uma área que abrigou primeiro a empresa Cimetal e depois foi tomada por um conjunto de prédios. A família dele morava perto dali, na rua Oitis, no Eldorado. O vi de perto poucas vezes, mas tive oportunidade de jogar futebol de salão (agora futsal) contra um dos irmãos mais novos dele, o Luciano.

Nossa geração jogava em quadras alugadas ou públicas, como a da Praça Nossa Senhora da Glória, que continua lá até hoje, ou nas ruas. Uma delas, separada de um lado pelos muros de uma empresa e do outro pelos fundos da escola estadual Francisco Firmo de Matos, nomeamos Beira Rua. O local, que fica em uma das três travessas que interligam o quarteirão da Flamboyant, foi palco de jogos memoráveis e de três torneios de pelada, dos quais fui o artilheiro, com direito a medalha em cada edição, orgulho juvenil e nenhuma modéstia. Comerciantes doavam os troféus e as disputas tinham público. Times do bairro vinham, uniformizados, acompanhados de suas torcidas. Tinha juiz, regulamento, rivalidade. E esportividade. Sem brigas. Na paz e na bola as coisas se resolviam.

Naquela época também nos aventurávamos a jogar no campo do Grêmio, time amador que ocupava praticamente toda a área onde agora funciona o Big Shopping. Aos meus olhos de menino aquilo era uma imensidão. Só conseguíamos ocupar metade dele. De modo que apenas um dos lados tinha as traves oficiais. O outro era marcado com pedra, tijolo ou chinelo. Mas bom mesmo era ver as partidas oficiais, com as linhas tingidas pela cal, as equipes em cores e a companhia do meu irmão mais velho, Alair, o que era sinônimo de proteção e volta segura para casa.

Foram anos dourados, nos quais meninos e meninas corriam soltos pelas imediações de suas casas. Existiam lotes vagos e neles era possível criar brincadeiras que envolviam terra, mato e muita criatividade. Tinha guerra de mamona, pipas no ar e expedições exploratórias pelos bairros vizinhos. Sempre em bando. A turma era unida. Solidária com os seus. A vida era cheia de descobertas e aventuras. E a escola, que era na mesma rua, era apenas um intervalo curto, um turno que separava as horas de brincadeiras e diversões.

Era finca, queimada, rouba bandeira, bente altas, carrinho de rolimã, esconde-esconde, vôlei. Mas jogar bola, com todas suas as variações, era a atração principal. Tinha ainda as partidas a valer de bingo e baralho, que atraiam também os adultos, transformando varandas em verdadeiros cassinos. Os quintais grandes das casas, repletos de árvores frutíferas completavam a festa diária. E as noites tinham rodas de conversa para repassar os acontecimentos do dia e para falar de nossas descobertas, que, sem percebermos foram tomando ares adolescentes. Foi quando começamos a cair no poço e éramos salvos por beijos na boca e amassos.

As paixões afloravam, os namoros surgiam e a vida adulta nos espreitava, cobrando como preço o fim da inocência. E ela viria de forma abrupta e violenta com a morte, aos 18 anos, do Carlos Henrique, levado pela leucemia uma semana depois da última vez em alguns de nós comemoraram com ele o derradeiro aniversário. Foi um tapa na cara. Um corte profundo separando a nossa geração e nos jogando de forma dura de encontro à realidade. Uma parte de nós se foi naquele simbólico funeral. Como se ali, comovidos, chorosos, nos amparássemos na despedida de nós mesmos. Para sempre.

Ao amigo, que nos torneios era zagueiro do Estrela Dalva, e que tão cedo se foi, fiz uma dedicatória no livro que ainda não publiquei. “Sabe, Carlos Henrique, a vida que pensávamos ser uma longa estrada, não passa de uma pequena rua Flamboyant”.

Hamilton Reis é jornalista e advogado.

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