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Ivanir Corgosinho: A vitória de Trump e os dias que virão

O que mais impressiona na vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais norte-americanas ano passado é sua extensão e profundidade. A vitória foi confirmada após ele obter 276 cadeiras do Colégio Eleitoral, seis a mais que as 270 necessárias. Mas não ficou só nisso. O candidato republicano também venceu na contagem do número de votos populares, chegando a 51% do total com cerca de 77,3 milhões de votos. Há 20 anos um candidato republicano não obtinha essa dupla vitória — a última vez foi em 2004, com George W. Bush.

Este é um aspecto particularmente relevante por mostrar que o candidato teve amplo apoio da população e que não venceu devido a algum artifício para conquistar os delegados. Ou seja, tem peso simbólico.

Trump ganhou em todos os chamados estados “pêndulo”, considerados decisivos porque, tradicionalmente, o eleitorado não tem preferência, seja por democratas, seja por republicanos. Eles votam conforme a circunstância e a disputa costuma ser acirrada. Estes estados-chave são a Carolina do Norte, Georgia, Wisconsin, Michigan, Arizona, Nevada e Pensilvânia.

O desempenho do republicano também foi melhor que o previsto nos redutos democratas., como nos casos de Virgínia, Minnesota e Novo México. Apesar de perder nesses estados, seu desempenho foi melhor que em 2020.

As primeiras análises dos resultados revelam que a candidatura Trump, de fato, ecoou poderosamente entre o eleitorado norte-americano.

Pela primeira vez, mais da metade dos homens latinos votaram num republicano. Em 2020, Trump havia recebido 44% dos votos deste segmento da população. Ano passado, obteve o apoio de 54%, apesar das ameaças de fechar as fronteiras e realizar a maior deportação em massa da história do país. A taxa geral de apoio dos latinos a Trump chegou a 45%. Na Flórida, por exemplo, estado que abriga a terceira maior comunidade latina dos EUA, ele venceu com 56% dos votos contra 43% de Kamila Harris.

Conforme pesquisas de boca de urna, a votação em Trump foi de 36% para 42% entre eleitores de 18 a 29 anos, na comparação com a eleição de 2020, quando perdeu para Joe Biden. Entre os católicos, o crescimento teria sido de 47% para 56%. Entre os moradores de pequenas cidades e da zona rural, ele colocou 27 pontos percentuais sobre Harris. Trump ainda registrou ganhos importantes tanto entre homens negros quanto entre as mulheres.

Há que se notar ainda que, de quebra, o Partido Republicano, que já detinha a maioria entre os deputados, passou a ser majoritário também no Senado norte-americano, que tinha maioria democrata desde 2020. Na atual legislatura, são 53 senadores republicanos contra 47 democratas.

Em suma, trata-se de uma vitória indiscutível das forças de direita nos EUA.

O que levou a isso?

Análises preliminares consideram, em primeiro lugar, a insatisfação com os rumos da economia sob o governo de Joe Biden. Parece consensual que a economia norte-americana não superou bem a pandemia de Covid-19, mesclado uma combinação explosiva de inflação alta e crédito caro que causou descontentamento entre os consumidores, acostumados a conviver com inflação e taxas de juros baixas. Segundo uma pesquisa do Instituto Gallup no início de outubro, 54% dos eleitores acreditavam que Trump poderia lidar com isso melhor do que Kamala Harris.

Em segundo lugar, a forte mobilização do eleitorado conservador de extrema-direita em torno de temas como fechamento das fronteiras contra imigrantes e o cerceamento do direito ao aborto. Ainda de acordo com o Gallup, 7 em cada 10 eleitores norte-americanos consideram “extremamente importante” ou “muito importante” a questão da migração e a situação na fronteira com o México. Um estudo da UC Davies University, publicado em janeiro de 2024, concluiu que entre o público conservador adepto do chamado MAGA (“Make American Great Again”, algo como “Tornar a América Grande Novamente”) há uma crença generalizada que a população branca nativa está sendo substituída por imigrantes. Acreditam também que a discriminação contra os brancos nos Estados Unidos é igual ou pior à existente contra negros e outras minorias.

No caso do aborto, Trump conseguiu cimentar o seu apoio entre os cristãos conservadores ao nomear, em sua administração anterior, novos juízes para o Supremo Tribunal contrários à interrupção deliberada da gravidez.

A terceira chave explicativa para a vitória conservadora pode estar na política internacional beligerante do governo Biden, especialmente com as guerras que o país patrocina na Ucrânia e na Faixa de Gaza. O massacre em Gaza choca e imobiliza o eleitorado progressista, ao passo que boa parte dos republicanos considera que os EUA gastam demais com o apoio à Ucrânia.

Finalmente, parece óbvio que a campanha democrata ficou prejudicada com a mudança de candidatura. O presidente Joe Biden chegou a liderar as pesquisas, mas sua popularidade caiu à medida que cresceram as dúvidas sobre suas condições de saúde. A situação chegou ao auge no final de junho, com seu péssimo desempenho no debate dos presidenciáveis. Kamala Harris, apesar da empolgação e agilidade com que assumiu a liderança democrata, não conseguiu recuperar o terreno perdido, chegando a, apenas, uma situação de empate técnico com Trump nas sondagens, que se manteve até o final.

A vitória de Trump, especialmente pela magnitude que teve, é um alerta de grande contundência. Ela evidencia a incapacidade de um certo campo democrático, o norte-americano, em dar respostas eficazes a um movimento que não oculta seu caráter conservador, retrógrado e autoritário. Por essa razão, Trump chega mais uma vez ao poder com a legitimidade conferida pelas urnas, apesar de ser um antidemocrata convicto.

Particularmente preocupante é a adesão, aparentemente unânime, das chamadas Big Techs ao Programa Trump. Empresas como Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft são líderes em inovação e vêm revolucionando o modo como vivemos, trabalhamos e nos comunicamos. Elas estão envolvidas em uma ampla gama de negócios, entre os quais estão o desenvolvimento de software, hardware e serviços de tecnologia da informação, compra e venda de produtos e serviços online, automação e robótica, armazenamento e processamento de dados na nuvem, desenvolvimento de algoritmos e sistemas de inteligência artificial. São elas que, em suma, modelam o futuro próximo.

Com o avanço da onda conservadora no mundo, o ambiente corporativo norte-americano vem esvaziando a agenda progressista, sob a liderança dessas empresas. Como exemplo mais significativo, cito o anúncio, feito por Mark Zuckerberg, que a Meta — controladora do Facebook, do Instagram, do Messenger e do WhatsApp — deixará de usar programas de checagem independente de informações, procedimento vital para o combate às fake news.

Na mesma linha, no último dezembro, a Amazon anunciou o encerramento de programas de incentivo à diversidade, como parte de uma ampla revisão de seu plano de negócios. O McDonald’s encerrou seus programas de inclusão e diversidade. O Walmart anunciou que não usará mais parâmetros de raça e gênero para selecionar contratos de fornecimento e reduziu treinamentos sobre equidade racial. A Boeing desmantelou seu departamento de diversidade, equidade e inclusão (DEI). Sinal dos tempos.

Estes exemplos dão a dimensão do risco que a aliança entre Trump e as Big Techs representa para a democracia, para a equidade e para o futuro do trabalho. A questão vai muito além da querela (por si só já bastante grave) sobre regulação mais rígida das plataformas digitais. Está em perspectiva uma concentração ainda maior do poder nas mãos de poucas empresas num cenário de destruição massiva de empregos em função da automatização, desmantelamento de direitos e de uso cada vez mais intensivo de tecnologias de vigilância e controle, como o reconhecimento facial e a análise de dados de comportamento.

Falo, naturalmente, sobre uma possibilidade, não de um fato consumado. Seria muito prematuro concluir que, nos EUA ou em qualquer parte do mundo, a direita venceu definitivamente a disputa político-cultural.

Desde sua primeira campanha presidencial em 2016, Donald Trump se destacou por propostas políticas que dividem opiniões e geram intensos debates tanto nos Estados Unidos quanto no cenário internacional. Em seu primeiro mandato como presidente, encontrou desafios significativos para implementar suas políticas, seja em função da oposição política interna, resistência da sociedade civil ou pressões internacionais. Não será diferente, desta vez. Haverá conflito, haverá reação e haverá luta, como mostra a crise aberta com o Judiciário nas últimas semanas.

Sim, à semelhança do Brasil com Bolsonaro, nos EUA de Trump, juízes têm assumido a linha de frente na defesa do Estado de Direito, suspendendo, ainda que temporariamente, diversas iniciativas do Executivo. Entre elas, o congelamento de bilhões de dólares em subsídios federais; o desmantelamento da agência de ajuda externa dos Estados Unidos; a limitação da cidadania norte-americana a filhos nascidos nos EUA com, pelo menos, um pai norte-americano ou com residência legal permanente; a proibição de mulheres transgênero competirem em esportes femininos; a adotação de um plano de demissão voluntária para mais de dois milhões de funcionários federais e o livre acesso de Elon Musk aos sistemas do Departamento do Tesouro que processam trilhões de dólares em pagamentos, etc.

Desde 20 de janeiro, cerca de 57 ações judiciais foram iniciadas por dezenas de grupos políticos, sindicatos, associações jurídicas, autoridades eleitas, e indivíduos contra as mais de 60 ordens executivas já assinadas por Trump, conforme um levantamento da Fox News Digital.

A luta também chegou às ruas. Na primeira semana de fevereiro, foram registradas manifestações populares em dezenas de cidades norte-americanas, num protesto nacional contra o governo. As manifestações foram convocadas sob as hashtags #buildtheresistance e #50501 (a última significando “50 protestos, 50 estados, um dia”) e as consignas “rejeitar o fascismo” e “defender a nossa democracia”.

A questão a saber é para onde rumará tudo isso.

A construção de uma oposição eficaz para derrotar Trump nas próximas eleições (supondo que ele não deixará o poder antes disso) apresenta desafios gigantescos. Dentre eles, três se destacam. O principal é recuperar a parcela do eleitorado democrata que migrou para as hostes trumpistas. Outro problema é constituir uma narrativa comum aos diversos grupos e movimentos opositores, de forma a engajar a sociedade de maneira ampla e duradoura, evitando a fragmentação de propostas e iniciativas. Finalmente, trata-se de abrir uma frente de dialogo com a parcela mais moderada do eleitorado conservador, isolando o radicalismo de direita. A ver.

Ivanir Corgosinho é sociólogo.

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