No Brasil, a segurança pública sempre foi entendida pelas elites como repressão a qualquer comportamento que pudesse ameaçar seu status, seus privilégios e, principalmente, sua visão de mundo. Por isso, desde o “capitão do mato”, no período colonial, passando pelo Império e pela República Velha, a ordem interna foi tratada, essencialmente, como um caso de polícia.
Esse modo de ver a segurança tem raízes profundas na história do país. O caráter predatório da colonização portuguesa, baseado na exaustão da terra e na escravidão, produziu uma elite acostumada ao mando, à distância e indiferença em relação aos dominados. A segregação racial, o trabalho forçado e a violência cotidiana estruturaram uma sociedade fundada no medo do outro — dos ricos em relação aos escravizados, aos mestiços, aos pobres livres e, destes, em relação ao “sinhô”, ao capataz e ao “guarda da esquina”. Quando o capitalismo chegou ao Brasil, no final do século XIX, esse traço autoritário se combinou com outro elemento decisivo: a natureza já conservadora da burguesia internacional.
Ao contrário do que ocorrera nos séculos anteriores, quando a burguesia europeia cumprira papel revolucionário contra a nobreza e o absolutismo, no momento em que o capitalismo se instala no Brasil, essa mesma classe já havia se integrado ao Estado e à ordem no resto do mundo conhecido. O espírito de transformação dera lugar à defesa da propriedade, da estabilidade e do lucro. Assim, a burguesia brasileira — dependente, tardia e sem projeto de soberania nacional — formou-se sem qualquer impulso democrático. Herdou a mentalidade colonial e reproduziu o conservadorismo burguês do capitalismo maduro.
Por essa razão, as classes dominantes brasileiras desenvolveram uma aversão intensa a tudo o que viesse “de baixo”: a população negra libertada, os pobres urbanos, os trabalhadores organizados, os que ousavam ocupar as ruas ou simplesmente afirmar seus modos de vida. Nesse imaginário, o crime nunca foi percebido como uma questão social, mas como sintoma da natureza perigosa dos pobres, ao lado de certas manifestações culturais (o samba, a capoeira, o candomblé) e do protesto social. Essa mentalidade produziu uma política de segurança fundada no controle e na punição, não na prevenção nem na justiça.
Nesse horizonte, a violência estatal jamais foi um recurso a ser evitado, ainda que legítimo, mas a via preferencial de ação. A própria Polícia Militar, criada na virada do século XX, nasceu orientada para bater antes e perguntar depois.
No caso dos movimentos populares e do protesto social, a legitimidade da luta conseguiu interditar o ódio e conquistar certo espaço na legalidade institucional — o que nem sempre impediu a repressão brutal.
Mas, no caso da criminalidade, essa legitimidade seria um contrassenso. Daí o “sem cerimônia” das elites ao se manifestarem sobre a “bandidagem”. A triste frase “bandido bom é bandido morto” dita pelo ex-governador do Rio, Wilson Witzel, durante a campanha eleitoral de 2018, nada mais é que a atualização contemporânea de nossa tradição autoritária em linguagem direta e brutal.
O problema maior é que, por representar uma agressão a valores universais como a propriedade, a vida e um ethos baseado no trabalho, a crueldade em relação ao ser humano criminoso contaminou também o imaginário coletivo, numa naturalização da violência no cotidiano.
De fato, nas últimas décadas, diferentes pesquisas de opinião vêm mostrando que o apoio à repressão violenta contra o crime deixou de ser uma posição restrita às elites e tornou-se um sentimento bastante disseminado na sociedade brasileira. Em levantamentos realizados em 2015 e 2016 pelo Datafolha e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, cerca de metade da população concordava com a frase “bandido bom é bandido morto”. Pesquisas posteriores, como a do Paraná Pesquisas em 2020, mostram índices semelhantes: 43,9% dos brasileiros ainda concordavam com a afirmação. No Rio de Janeiro, o estudo “Olho por olho?”, do Centro de Estudos em Segurança e Cidadania (Universidade Cândido Mendes), mostrou que 37% dos cariocas concordam completa ou parcialmente com a frase.
Mais grave ainda, um levantamento do Ipsos/BBC Brasil (2018) revelou que dois em cada três brasileiros acreditam que os direitos humanos “defendem mais os criminosos do que as vítimas”. Isso mostra como o discurso punitivista foi absorvido pelo senso comum num país que convive com índices altíssimos de letalidade policial — mais de seis mil mortes por ano, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2024). A recusa em reconhecer o criminoso como portador de direitos humanos é, portanto, um sintoma grave de uma cultura política autoritária que contamina as instituições, a começar pela tropa, e parcela da sociedade civil.
É nesse contexto que deve ser compreendida a Operação Contenção, movida pelo governador Cláudio Castro no Rio de Janeiro. “Cláudio Castro é mais um nessa linha de tempo de uma classe política que sempre deu essa diretriz clara às suas polícias. Isso explica por que, historicamente, a polícia do Rio sempre foi uma das mais violentas do Brasil, com um dos maiores graus de letalidade, e não é por acaso também uma das mais corruptas do Brasil. A polícia muito letal é também uma polícia muito corrupta, conforme os estudos científicos evidenciam no mundo inteiro”, avalia o pesquisador Luís Flávio Sapori, ligado ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
Diante desse quadro, o desafio não é apenas combater o crime, mas redefinir o próprio sentido da segurança pública. O que está em jogo é uma disputa entre um modelo sabidamente ineficiente, autoritário, seletivo e cruel, mas ao agrado do conservadorismo, e uma perspectiva de segurança que una prevenção, justiça, política social e repressão sob um projeto nacional de desenvolvimento. Não se trata de negar a necessidade de uma dimensão ostensiva e repressora no trabalho das forças policiais — trata-se de integrá-la a uma estratégia que compreenda que o combate à violência precisa ser mediado por valores humanistas e democráticos.
Este debate está na ordem do dia não apenas pela comoção provocada pela Operação Contenção, mas também pela percepção da população de que a segurança é um tema urgente há algum tempo. De fato, estudos recentes demonstram que a segurança pública é uma das principais preocupações dos brasileiros, ao lado da saúde, segundo levantamento do Datafolha e da Quaest. Além disso, 45,8% dos brasileiros consideram que a segurança piorou durante o governo Lula, como mostra a pesquisa da Paraná Pesquisas de outubro de 2025.
Estes números mostram que a segurança pública é uma demanda social real e um tema que será muito explorado na eleição de 2026, especialmente pela extrema direita no afã de prejudicar o favoritismo de Lula.
Desta forma, fica evidente que o principal objetivo de Cláudio Castro não era proteger vidas, mas transmitir uma imagem de firmeza governamental, eleitoralmente estratégica. Trata-se de um uso cruel e instrumental da força policial, no qual a brutalidade não é uma espécie de efeito colateral da ação, mas um meio deliberado de alcançar objetivos particularistas. Tanto assim que, na continuidade, toda a extrema direita se uniu na tentativa de usar a chacina no Rio para superar sua crise recente e se recompor. Este é o sentido do “gabinete” formado pelos governadores da oposição com o fim de prestar solidariedade a Castro e pressionar o Congresso pela aprovação do PL 1283/2025, do deputado Danilo Forte (União Brasil-CE). Apresentado como alternativa à PEC 18/2025, de autoria do Ministério da Justiça, o PL propõe ampliar o alcance da Lei nº 13.260/2016 (Lei Antiterrorismo), estendendo-a para organizações criminosas como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV) e, potencialmente, a movimentos sociais como o MST.
Se a tentativa de polarização a partir do tema segurança vai vingar e dar novo fôlego ao radicalismo de direita, isso dependerá de as forças democráticas construírem uma narrativa esperançosa capaz de desmobilizar o medo. Nessa perspectiva, é fundamental que a esquerda supere as próprias limitações neste terreno. Por medo de ser confundida com o autoritarismo policial ou de perder o apoio dos movimentos sociais, a esquerda frequentemente abandona o debate sobre o crime e a violência às forças conservadoras, limitando-se a respostas genéricas sobre desigualdade e inclusão. Por isso mesmo, com certa frequência, incorre nos mesmos erros, como no caso da Bahia, onde, desde o governo de Jaques Wagner, predomina um modelo de policiamento militarizado tido como o que mais mata no Brasil.
Longe de ser uma prerrogativa da direita, a preocupação com a segurança deve ser universal num mundo em que fatores de estresse crescentes e cotidianos. O crime organizado, em que pese sua relevância, é apenas mais um deles. Governadores como Cláudio Castro ou Jerônimo Rodrigues respondem a uma demanda real por ordem e proteção. O problema não está na firmeza com que tratam o problema, mas na estratégia: operações de alto impacto podem até gerar manchetes, mas não desmontam o Primeiro Comando da Capital (PCC) nem o Comando Vermelho. Elas matam, prendem e, em pouco tempo, novos líderes retomam as atividades criminosas.
Assim, o pressuposto de qualquer plano de segurança precisa ser uma visão abrangente que vai da valorização e qualificação dos policiais até a ocupação organizada do ambiente urbano. Existem no país (e no resto do mundo) experiências suficientes para fundamentar a elaboração de uma visão progressista de segurança pública baseada em participação popular, mediação comunitária de conflitos, ocupação organizada dos espaços públicos, políticas de juventude, integração entre os órgãos competentes (polícia, justiça, ministérios públicos) e políticas sociais, fortalecimento das guardas municipais etc.
A Operação Carbono Oculto, por exemplo, foi uma operação policial e de inteligência que envolveu a Polícia Federal, a Receita Federal e o Ministério Público de São Paulo para desarticular um bilionário esquema de lavagem de dinheiro e sonegação fiscal operado pelo PCC no setor de combustíveis e no mercado financeiro. A operação mobilizou cerca de 1,4 mil agentes e cumpriu mais de 350 mandados judiciais em diversos estados do Brasil, resultando em perdas estimadas de R$ 9 bilhões para a facção criminosa e nenhuma morte. Em outro exemplo, o Fica Vivo!, voltado para a prevenção à violência e redução de homicídios, especialmente entre adolescentes e jovens de 12 a 24 anos, implementado pelo governo de Minas Gerais em 2002, foi finalista do Prêmio Global de Excelência da ONU-Habitat (Dubai) em 2006. Em Contagem, a prefeitura liderou a formação do Consórcio Intermunicipal de Segurança Pública (criado em setembro de 2025), uma experiência inédita de compartilhamento de equipamentos, treinamentos e políticas que inclui PM, PC, Bombeiros e Ministério Público (MPMG). A própria UPP de Santa Marta, criada no governo de Sérgio Cabral no Rio, garantiu a pacificação do aglomerado e reduziu a incidência de homicídios em 80% em 3 anos de ocupação policial.
Essas experiências, dentre muitas outras, comprovam que uma visão progressista de segurança é possível, mas que precisam se tornar política de Estado — e não apenas exceções locais. Para isso, é preciso criar mecanismos institucionais permanentes que integrem segurança, justiça e políticas sociais sob um mesmo comando democrático. É nesse sentido que ganha relevância a PEC 18/2025, conhecida como PEC da Segurança Cidadã.
A proposta, atualmente em tramitação na Câmara dos Deputados, cria o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) em bases constitucionais e estabelece que pelo menos 30% do efetivo policial atue em investigação e inteligência, e não apenas em operações ostensivas. Prevê ainda responsabilidade compartilhada entre União, estados e municípios na prevenção e no enfrentamento do crime, além de mecanismos de controle externo da polícia, transparência, prevenção social e formação cidadã das forças de segurança. Sua aprovação é urgente.
O enfrentamento que temos pela frente é, enfim, uma batalha pelo sentido da palavra “segurança”. A direita seguirá tentando mobilizar o medo para justificar a repressão e o autoritarismo. A esquerda precisa romper essa tentativa de cerco, oferecendo à sociedade uma alternativa baseada em políticas públicas integradas, solidariedade, prevenção social e proteção dos mais vulneráveis. Só assim será possível superar a narrativa que enfatiza a repressão violenta, a militarização da segurança e a legitimação da força como principal instrumento de controle social.
Ivanir Corgosinho é sociólogo
REFERÊNCIAS
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