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Ivanir Corgosinho: Como Trump transformou a política em guerra cultural

Quando Donald Trump revelou, no Jardim das Rosas da Casa Branca, uma tabela de papelão com a nova política tarifária dos EUA — direcionada a mais de 180 países — o mundo se assustou com o rompimento explícito das normas tradicionais do comércio internacional. Em vez de seguir critérios técnicos tradicionais e amplamente reconhecidos, Trump adotou uma lógica arbitrária, supostamente baseada no saldo comercial dos EUA com cada país. Essa fórmula inflou artificialmente o valor das tarifas e deflagrou uma guerra comercial em escala global, cujas consequências ultrapassam em muito o campo econômico.

Inicialmente, pensou-se que o objetivo fosse eliminar, unilateralmente, o déficit comercial dos EUA com cada país. No entanto, foram taxados até mesmo países que compram mais do que vendem aos EUA, como o Reino Unido. O mesmo ocorreu com o Brasil.

A conclusão a que chego é que a nova política tarifária norte-americana parece baseada mais em xenofobia explícita e num patriotismo exacerbado do que em qualquer lógica racional. Tanto assim que, no discurso de anúncio, ele afirmou que os Estados Unidos foram “saqueados, pilhados, estuprados e explorados por nações próximas e distantes, tanto amigas quanto inimigas”, acrescentando que “muitas vezes os amigos são piores que os inimigos” e que aquele seria o “Dia da Libertação”.

Economistas de várias escolas doutrinárias alertaram que a atual escalada tarifária norte-americana — a mais agressiva em mais de 100 anos — trará consequências econômicas negativas dramáticas, incluindo custos mais altos, inflação crescente e lucros reduzidos. Esses efeitos podem levar a uma retração nos gastos, falência de empresas, aumento do desemprego e, por fim, a uma recessão nos Estados Unidos. Além dessas consequências econômicas diretas, a nova política tarifária contribui para o enfraquecimento de alianças históricas e compromete o papel de liderança global dos Estados Unidos, já ameaçado pela China. Países afetados podem buscar caminhos alternativos, acelerando o redesenho de blocos econômicos sem a participação norte-americana.

Trump ignora abertamente os alertas. Por desprezo, rejeita o conhecimento especializado e as projeções fundamentadas, enquanto mobiliza argumentos que soam bem para sua base eleitoral, pautados na lógica do “nós contra eles”, a fim de sustentar uma narrativa política isolacionista e autoritária.

Desvalorizar consensos técnicos em favor de interesses e ideologias particulares, ignorando os riscos de longo prazo — no caso, o agravamento das tensões comerciais e a possibilidade de uma recessão global — está na raiz do negacionismo, que se manifesta também em outras frentes. São exemplos os debates sobre as mudanças climáticas, onde a negação de evidências científicas compromete esforços globais para mitigar desastres ambientais, e, de maneira particularmente alarmante, ao campo da educação.

Os ataques ao Departamento de Educação dos EUA e às universidades, sob a acusação de “doutrinação ideológica”, representam uma ofensiva direta contra a produção de conhecimento, o pensamento crítico (substituído por narrativas polarizadas) e a liberdade acadêmica. Essas ações não são somente retóricas: ameaças de cortes orçamentários, intervenções em currículos e deslegitimação de instituições educacionais têm o potencial de desestruturar um dos pilares fundamentais de qualquer sociedade democrática. Sem um sistema educacional que estimule o pensamento crítico, nenhuma sociedade se capacitará para se orientar pela razão, pela ciência e pelo diálogo.

Nesse sentido, os riscos são particularmente graves e as consequências podem se prolongar por gerações, com a precarização da coesão social, o acirramento dos processos de polarização, a eventual perda de competitividade, o enfraquecimento das instituições democráticas e dos processos que sustentam a tomada de decisões racionais.

Diante desse cenário alarmante, é imperativo um movimento de resistência ao obscurantismo que não dependa apenas de instituições ou lideranças políticas, mas que surja com força da própria sociedade civil. Em tempos de retrocesso racional, a defesa intransigente de valores como a transparência, a solidariedade, a paz e a democracia deve ser assumida como responsabilidade popular e coletiva. É preciso reconstruir espaços de diálogo e promover uma cultura política baseada em critérios e indicadores públicos, empatia e participação cidadã. Só assim será possível conter os avanços do autoritarismo e assegurar que as próximas gerações recebam não apenas um sistema econômico funcional e mais iguialitarista, mas uma sociedade que se guie, sem hesitação, pela razão, pela justiça e pela dignidade humana!

Ivanir Corgosinho é sociólogo.

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