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Ivanir Corgosinho: Mesmo capenga, democracia brasileira pode barrar golpismo bolsonarista

No mais recente levantamento realizado pelo Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação, organização mantida por quatro grandes universidades brasileiras (UFMG, IESP/UERJ, Unicamp e UnB), o número de brasileiros que não aceitariam um golpe de Estado em nenhuma circunstância, aumentou.

A pesquisa, chamada a “A cara da democracia” é realizada anualmente e está em sua quinta edição. Os números mostram que para 59% dos entrevistados, a democracia é preferível a qualquer outra forma de governo e, mais importante, há uma maioria de brasileiros para quem um golpe ou intervenção militar seria injustificável mesmo em um cenário tumultuado de muita corrupção ou de aumento da criminalidade.

Ou seja, os brasileiros querem resolver os nossos problemas em um ambiente democrático, com os instrumentos fornecidos pela democracia”, avalia o cientista político Leonardo Avritzer, do departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e um dos coordenadores da pesquisa.

Ainda de acordo com o Instituto, o apoio à democracia e a rejeição a um golpe militar vêm crescendo desde 2018, momento mais crítico do levantamento.

Como exemplo, em março de 2018, quando a campanha eleitoral começava a ganhar força, a pesquisa apurou que 21% do eleitorado aceitaria a ideia de um golpe militar em algumas circunstâncias (aumento da criminalidade, da corrupção ou da agitação social). Hoje, este percentual é de 15%.

Esta não é a única medição que atesta a preferência de brasileiros e brasileiras pela democracia e a rejeição a um golpe militar.

Levantamento Genial/Quaest de novembro de 2021 revelou que 63% dos brasileiros consideram a democracia melhor do que a ditadura e apenas 6%, “em certas circunstâncias”, preferem uma ditadura.

Pesquisa Datafolha de junho de 2020 mostrou que o apoio à democracia como a melhor forma de governo havia crescido 13 pontos percentuais desde dezembro de 2019, passando de 62% para 75%. No mesmo período, o apoio a uma ditadura “em certas circunstâncias”, recuou de 12% para 10%.

O apoio a um regime democrático sobre qualquer outra forma de governo subiu de 56% em outubro de 2018 para 67% em fevereiro deste ano, conforme o instituto Ipespe. Ao mesmo tempo, apenas 7% dos brasileiros acreditam que, “em algumas circunstâncias”, um regime autoritário seria preferível a um democrático — menor percentual registrado pelo instituto desde 2018, quando o grupo somava 13%.

Estes números não devem levar à crença que tenhamos no país uma cultura cívica com valores democráticos plenamente desenvolvidos e consolidados. Como já comentei em outro artigo, existem ambiguidades e contradições na consciência coletiva nacional, resultantes do processo de nossa formação social. Aqui, enquanto o liberalismo burguês se revelou avesso à chamada questão social – tratada como caso de polícia, o Estado Novo, autoritário e corporativista, se encarregou de acolher e providenciar a nossa primeira rede de proteção social aos mais pobres.

Contradições estruturantes como essa estão presentes em várias áreas da vida social e condicionam o processo de criação do imaginário coletivo e de formação das convicções e opiniões populares sobre a política, os políticos e a respeito do sistema político. Por isso mesmo, ou seja, por estarem ancoradas num conflito entre visões e práticas de mundo, essas opiniões tendem a ser, no curto e no médio prazos, mais fortemente sensíveis a incentivos de momento. Eventos observáveis, o opinionismo dos articulistas de referência, os engajamentos sugeridos pela mídia, as alterações percebidas na qualidade e no modo de vida, os rumores alimentados nas relações vizinhais e domésticas, entre tantos outros fatores, são interpretados e significados pelos indivíduos tanto à luz das tradições que cultiva, quanto das inovações de sua época e de um cálculo quanto a perdas e ganhos particulares. Dai a importância da disputa de narrativas tanto para a aderência das pessoas a alguma proposição quanto para a consolidação de antigos valores e/ou adoção de novas atitudes.

Pois bem. Nestas circunstâncias, os números das pesquisas indicam claramente que a pregação de Jair Bolsonaro em favor de um golpe tem baixíssima aderência entre a população. De fato, o apoio consistente ao golpe militar é residual e se restringe o grupo de apoiadores mais entusiastas do governo—pouco mais de metade entre os que afirmam que o governo é “bom ou ótimo”. “Não chega a 10% a parcela que os apoiaria em um atentado à democracia”, estima o sociólogo Marcos Coimbra.

As pessoas estão vendo a democracia sob ataque, elogios às ditaduras, gestos de censura e ameaças a instituições como Supremo Tribunal Federal (STF) sem conseguirem perceber qualquer ganho ou vantagem neste clima de instabilidade e insegurança. Afinal, em junho de 2018, pouco antes da eleição que levou Bolsonaro à presidência, o salário mínimo comprava 2,1 cestas básicas. Hoje compra apenas 1,6. O que poderiam ganhar com a sua continuidade, ainda mais na condição de ditador? É a realidade observável das realizações do governo Bolsonaro que explica o isolamento cada vez maior do capitão no ataque às instituições.

Nos últimos dias, esse isolamento se tornou ainda mais ostensivo. Vejamos:

1) O governo norte-americano decidiu defender a Justiça Eleitoral brasileira e o sistema de urnas eletrônicas. Logo após o ato de fragrante traição à Pátria, em que Bolsonaro convocou embaixadores estrangeiros para ouvi-lo caluniar o TSE, a embaixada americana publicou uma nota afirmando que o sistema eleitoral brasileiro é “um modelo para as nações do hemisfério e do mundo” (dia 29); Em seguida, durante visita ao Brasil, o secretário de Defesa dos EUA, Lloyd Austin, defendeu a democracia como forma de governo essencial para a América Latina (repetindo o discurso de Joe Biden na abertura da Cúpula das Américas, em junho) e, mais que isso, afirmou que as Forças Armadas dos países da América devem estar sob “firme controle civil”. Estas manifestações sugerem que uma tentativa de golpe poderá provocar retaliações dos Estados Unidos e, provavelmente, também das democracias europeias;

2) A 15ª Conferência de Ministros de Defesa das Américas, realizada em Brasília entre os dias 25 e 29 deste mês, aprovou uma declaração pró-democracia assinada por Ministros da Defesa de 34 países continente. Entre eles, provavelmente mais que constrangido, o ministro da Defesa do Brasil, Paulo Sérgio Nogueira, anfitrião do evento;

3) Um manifesto pró-democracia articulado por lideranças empresariais e do meio jurídico já supera as 100 mil assinaturas e ganhou a adesão de pesos pesados do PIB nacional, incluindo setores do agronegócio, segmento em que o presidente Jair Bolsonaro tem forte apoio. Entre os signatários estão banqueiros como Roberto Setubal, Pedro Moreira Salles e Candido Bracher (do Itaú Unibanco) e o ex-presidente do Credit Suisse no Brasil, José Olympio Pereira;

4) A todo-poderosa Federação Brasileira de Bancos (Febraban) anunciou que assinará um manifesto das entidades empresariais pró-democracia. O manifesto vem sendo capitaneado pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), cuja participação na parlamentada de 2016 é inesquecível.

5) Em seu último ato como presidente do STM (Superior Tribunal Militar), o general de Exército Luis Carlos Gomes Mattos rejeitou o envolvimento das Forças Armadas na condução das eleições. “A Justiça Eleitoral é responsável pelo funcionamento real daquilo [eleições]. Nossa missão é diferente. Não temos que nos envolver em nada. Nós temos que garantir que o processo seja legítimo, essa é a missão das Forças Armadas”, afirmou o general. Mencione-se, a esse respeito, que os comandantes militares convidados para a malfadada reunião com os embaixadores estrangeiros recusaram-se a comparecer, assim como ministros do STF e presidentes da Câmara e do Senado;

6) A Polícia Federal deflagrou, no último dia 20, uma significativa operação em diversas cidades do Maranhão para investigar fraudes envolvendo verbas federais da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf). A estatal se tornou o principal braço do Centrão na operacionalização das chamadas emendas do relator ao Orçamento e a operação atinge em cheio as tratativas de Bolsonaro na Câmara dos deputados.

7) Finalmente, para encerrar com chave de ouro, na última quarta, dia 27, uma semana após o início das ações da PF no Maranhão, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), saiu em defesa do sistema eleitoral: “sempre fui a favor da democracia e de eleições transparentes e confio no sistema eleitoral”, afirmou Lira.

Trata-se, enfim, de uma debandada que vai das bases eleitorais do capitão nos estados (ele está à frente nas pesquisas em apenas 7 dos 16 Estados onde venceu no 1º turno das eleições de 2018) até a creme de la creme do empresariado nacional. “Fogem do barco antes de seu naufrágio”, como escreveu Fernando Brito no Tijolaço.

Mas, mais que isso, trata-se também de importantes pronunciamentos repudiando as ameaças de golpe e a continuidade de Jair Bolsonaro. Tais pronunciamentos incluem, inclusive, a possibilidade de retaliações, como no caso das declarações do governo norte-americano, da operação da Polícia Federal sobre os esquemas da Codevasf e a prisão de bolsonaristas a mando do Supremo Tribunal Federal.

Em outras palavras, a esta altura dos acontecimentos, o “mito” mal tem forças institucionais para se manter de pé e sabe disso. O que lhe resta é lutar para preservar o apoio de seus adeptos mais fiéis e é este o sentido da aposta na radicalização do discurso e a insistência no confronto com Judiciário. Essa base é seu aval para fazer “algum tipo de bagunça no momento da eleição” ou até para negociar uma futura anistia, como sugere o cientista político Guilherme Casarões em entrevista ao jornal Folha de São Paulo.

A possibilidade de um golpe militar, a esta altura, é improvável, embora não possa ser descartada do universo das possibilidades. Os últimos movimentos no xadrez da democracia nacional sugerem que uma possível aventura golpista não contará com o apoio do povo, nem das Forças Armadas, nem da Polícia Federal, nem das Polícias Militares, dos empresários ou do capital financeiro. Ao que tudo indica, estão de formando as bases para a costura de um novo grande acordo nacional que terá no governo Lula seu centro articulador.

Assim, ao contrário de outros analistas que continuam a ver o fantasma do golpe por todos os lados (como criticou recentemente o professor Aldo Fornazieri), acredito que podemos estar no princípio do fim da maior tragédia já produzida pela disputa pelo poder político no Brasil: o bolsonarismo.

Está é, também, a aposta de Marcos Coimbra. Na análise do presidente do Instituto Vox Populi, uma vez fora do governo, sem perspectivas de poder, sem capacidade intelectual para discutir e propor ideias, sem liderança moral, sem autoridade política e com a catástrofe que foi sua gestão, em pouco tempo Bolsonaro será apenas uma memória desagradável para a maioria de nós.

Sem Bolsonaro, o que será do bolsonarismo? O mais provável é que se dissolva como força política, também muito rapidamente, já que o capitão não cuidou de dar-lhe uma dimensão orgânica — ao contrário de Lula, que tem por trás de si, o maior partido de nossa história e investe na auto-organização da sociedade civil.

De toda forma, este é um tema que deve merecer a continuidade da reflexão. O bolsonarismo, como fenômeno político e social, permanecerá uma ameaça potencial enquanto não se desenvolver no país uma razão politica com força, convicção e disposição para responder de pronto e com firmeza a qualquer ataque à democracia.

Até aqui, coube a alguns ministros do STF a postura mais destemida frente aos arroubos autoritários de Bolsonaro. Quanto à oposição política, na maior parte do tempo apenas tem promovido agitação e feito “espuma dentro da própria bolha”, na feliz expressão do jornalista Alon Feuerwerker. Isto quando não se calou ou negociou com o campo governista. Falta-lhe estadistas, fibra, e altivez, ressalvadas as exceções de praxe.

Ivanir Corgosinho é sociólogo.

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