A democracia brasileira, jovem e marcada por golpes, retrocessos e resistências, está longe de ser uma referência internacional. Em contraste, os Estados Unidos se apresentam há séculos como modelo democrático consolidado. Desde “A Democracia na América”, de Alexis de Tocqueville, até os “The Federalist Papers”, de Hamilton, Madison e Jay, a política norte-americana tem sido celebrada por seu equilíbrio institucional, mecanismos de pesos e contrapesos eficientes, vitalidade cívica e supremacia da lei. Esse mito fundacional consolidou a ideia de uma democracia sólida, imune a retrocessos graves e modelo a ser seguido.
No entanto, a experiência recente do Brasil diante do bolsonarismo, especialmente o julgamento de Jair Bolsonaro por tentativa de golpe de Estado, oferece lições valiosas — inclusive para o sistema político norte-americano, diante da ameaça representada por Donald Trump. Como destaca a edição de 30 de agosto de 2025 da revista inglesa The Economist, intitulada “What Brazil Can Teach America” (“O que o Brasil pode ensinar aos EUA”, em tradução live), esse processo judicial não é somente um teste para o Brasil, mas uma lição global sobre como nações podem se recuperar daquilo que a revista chama de “febre populista”.
O julgamento e a condenação de Bolsonaro são fatos inéditos. Pela primeira vez na história do país, um ex-presidente e altos oficiais militares são processados por tentativa de golpe de Estado. Acusado de liderar uma “organização criminosa armada” para abolir o Estado Democrático de Direito, o ex-presidente respondeu a cinco processos criminais: tentativa de golpe, formação de quadrilha armada, abolição violenta da ordem democrática, dano ao patrimônio público e deterioração de bens tombados. Entre as evidências apresentadas pela Procuradoria-Geral da República (PGR) estão a infame “minuta do golpe”, um decreto para instaurar o estado de sítio e anular as eleições de 2022, e planos como o “Punhal Verde e Amarelo” para matar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB) e o ministro Alexandre de Moraes.
Nos Estados Unidos, embora o foco legal esteja em violações eleitorais e obstrução da justiça, os paralelos são claros: negacionismo eleitoral, incitação de multidões e uso de aliados para pressionar instituições. As evidências contra Donald Trump — envolvendo a tentativa de reverter o resultado das eleições de 2020 e os eventos de 6 de janeiro de 2021 — são extensas, com base em investigações do Comitê do Congresso, do Departamento de Justiça e de processos judiciais estaduais, incluindo comunicações, testemunhos e documentos que apontam para uma conspiração coordenada (CNN Brasil, 2023, U.S. Department of Justice).
Entretanto, enquanto no Brasil o Supremo Tribunal Federal (STF) assume um papel protagonista na contenção de excessos autoritários e na defesa explícita da democracia, nos Estados Unidos a situação é mais complexa. Aqui, Bolsonaro foi declarado inelegível até 2030 por abuso de poder político, por caluniar o sistema eletrônico de votação e por atacar o Tribunal na tentativa de ter ganhos eleitorais; teve decretada sua prisão domiciliar e terminou condenado a 27 anos e três meses de prisão, em regime fechado.
Já nos Estados Unidos, embora mais de mil invasores do Capitólio já tenham sido julgados e condenados pela Justiça federal e pelos tribunais estaduais, e Trump tenha enfrentado múltiplos processos — incluindo conspiração eleitoral federal, obstrução em 6 de janeiro e falsificação de documentos em Nova York —, ele pôde concorrer em 2024. Sua eleição resultou em imunidade parcial pela Suprema Corte, pausando ações criminais e permitindo que concedesse indulto para 1.500 pessoas envolvidas no ataque. A fragmentação do sistema judicial americano permitiu apelações intermináveis, e a Suprema Corte, com três indicados por Trump, evita tomar decisões, transferindo-as para cortes estaduais. Resultado: Trump governa com ampla liberdade, inclusive usando tarifas econômicas como ferramentas políticas, como fez com o Brasil.
O contraste é claro. No Brasil, o STF demonstra unidade e independência. Moraes, apesar das sanções pessoais, abriu o julgamento em 2 de setembro com uma defesa explícita da democracia contra “ataques externos”, rejeitando pressões de Trump. Nos EUA, o golpismo de direita escapou de responsabilização plena, desnudando o mito de uma democracia imune.
Não há aqui qualquer patriotada no sentido de transformar o Brasil em um “modelo perfeito” de democracia. Sabemos que isso não corresponderia à verdade e que nossos desafios são enormes: desigualdades sociais e territoriais, violência política, desequilíbrios institucionais e uma poderosa assimetria informacional. De toda forma, o julgamento de Bolsonaro demonstra que mesmo democracias frágeis podem, sim, responder firmemente a ameaças autoritárias.
Conclusão
Mais que uma justa punição a um líder antidemocrático, a punição de Jair Bolsonaro é um exemplo a ser seguido internacionalmente. É também uma dupla oportunidade. Em primeiro lugar, como escreveu “The Economist”, trata-se de deixar para trás o “pior da polarização”, ou seja, de superar o ambiente de ameaças às instituições e de violência na política. Para isso, é necessário consolidar a condenação de Bolsonaro. Que os recursos da defesa sejam julgados o mais rapidamente possível e as sentenças executadas. No Congresso, é preciso barrar toda e qualquer proposta de anistia. Também é necessário inviabilizar os devaneios sobre um eventual induto. Nesse contexto, a continuidade de um governo comprometido com a democracia, como o de Luiz Inácio Lula da Silva, será crucial nas eleições do próximo ano para sepultar qualquer tentativa de invalidar a decisão do STF.
Em segundo lugar, esta condenação pode significar a chance para o país estabelecer as bases para um novo padrão de relacionamento institucional, começando pela subordinação inequívoca das Forças Armadas ao poder civil. O poder militar não pode ser usado como reserva de garantia ou argumento de chantagem por forças políticas que se opõem ao desenvolvimento soberano, inclusivo e democrático do Brasil. A condenação dos golpistas, conduzida com o mais rigoroso rito legal, representa um precioso ajuste de contas com o passado autoritário do país. Que seja um alerta de que, daqui para frente, os atentados contra a democracia brasileira não passarão impunes.
O compromisso com a estabilidade institucional é decisivo para o futuro do país. É, de fato, uma condição para o Brasil poder levar adiante um novo ciclo de desenvolvimento virtuoso, onde a soberania nacional se traduz em prosperidade compartilhada. Dai a importância de uma reforma política que fortaleça suas instituições e proteja o sistema político contra a corrosão democrática. Esta é uma tarefa gigantesca. Recente pesquisa Genial/Quaest (NUNES, Felipe, 2025) revela um franco processo de erosão da credibilidade de brasileiros e brasileiras nas instituições e, em especial, no Congresso Nacional. Mas também as igrejas, as Forças Armadas e a polícia foram afetadas. Este desgaste é um resultado direto do clima de polarização que tomou conta do país desde a derrota eleitoral de Jair Bolsonaro na eleição presidencial de 2022. Superar esse desgaste exige um esforço coletivo essencial para o Brasil transformar a polarização em coesão.
Ivanir Corgosinho é sociólogo
Referências
CNN Brasil. Donald Trump e mais 18 são acusados de tentar manipular eleição presidencial de 2020 na Geórgia. 15 ago. 2023. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/donald-trump-e-mais-18-sao-acusados-de-tentar-manipular-eleicao-presidencial-de-2020-na-georgia. Acesso em: 13 set. 2025.
NUNES, Felipe. Mais fé, menos política: pesquisa Genial/Quaest mostra como os brasileiros confiam nas instituições. Instituto Quaest, 8 set. 2025. Disponível em: https://quaest.com.br/confianca-instituicoes-2025/. Acesso em: 13 set. 2025.
UNITED STATES. Department of Justice. Report of Special Counsel Jack Smith. 2025. Disponível em: https://www.justice.gov/storage/Report-of-Special-Counsel-Smith-Volume-1-January-2025.pdf. Acesso em: 13 set. 2025.