“Até que os filósofos sejam reis ou os reis sejam filósofos, as cidades não terão descanso de seus males.” Platão, A República
Este artigo responde a uma provocação de meu filho Pedro. Dia desses, tivemos um debate um tanto entusiasmado sobre os critérios para o exercício de cargos eletivos. Pedro defendia a necessidade de condições mais rigorosas, e eu, a continuidade do modelo atual, que, diga-se de passagem, é o mesmo adotado nas principais democracias do mundo.
Além do Brasil, Estados Unidos, França, Alemanha, Reino Unido, Canadá e outros onze países entre os vinte maiores PIBs mundiais, adotam regras que asseguram a qualquer cidadão em pleno gozo de seus direitos políticos, a possibilidade de se candidatar. Essas regras não impõem quaisquer exigências formais de formação educacional ou experiência prévia para o exercício de mandatos eletivos. Justamente este é o motivo do questionamento de Pedro. “Até pra ser miss as exigências são maiores!”
A discussão sobre quem deve governar — e sob quais condições — é tão antiga quanto a própria política e está no cerne do debate contemporâneo sobre os rumos da democracia.
Desde a Antiguidade, filósofos como Platão já defendiam que o poder político deveria estar nas mãos dos mais preparados intelectual e moralmente. Em sua obra A República, Platão propõe que os “filósofos-reis” — aqueles que possuem sabedoria, conhecimento e virtude — sejam os governantes legítimos da cidade-estado, por estarem aptos a decidir pelo bem comum com base na razão e na justiça. Embora aristocrática, essa visão enfatiza a ideia de que o povo não deve ser governado por demagogos ou oportunistas, mas sim por pessoas conscienciosas que sabem o que estão fazendo.
No século XIX, essa perspectiva ganhou uma nova forma com o positivismo. Inspirado por Auguste Comte, o positivismo defende o governo dos competentes, formado por técnicos e especialistas. Essa visão tecnocrática influenciou reformas administrativas e políticas que buscavam conferir maior racionalidade e eficiência ao governo.
Atualmente, este debate ressurge com força diante das crises da gestão pública contemporânea, frequentemente associadas à má administração, à incompetência e ao oportunismo das lideranças eleitas. A ascensão dos chamados “outsiders” reforça essa crítica, por se tratar de figuras sem preparo técnico ou experiência para lidar com a complexidade dos assuntos de governo.
Assim, por exemplo, autores como Francis Fukuyama, em A Ordem Política (2011), e Yascha Mounk, em O Povo Contra a Democracia (2018), apontam que a desconfiança nas instituições democráticas tem alimentado propostas de maior “profissionalização” da política via experiência prévia combinada com educação e qualificação técnica. Já um relatório da Transparência Internacional Brasil (2021) sugere que a baixa qualificação técnica contribui para a fragilidade de mecanismos de controle e de prevenção à corrupção, enquanto movimentos como o RenovaBR e o Agora! investem na formação de lideranças supostamente mais capacitadas.
Finalmente, também temos projetos de lei que defendem exigências mínimas de escolaridade para candidatos a cargos eletivos. São os casos do Projeto de Lei do Senado (PLS) n.º 310/2015, de autoria de Ronaldo Caiado (União Brasil), atual governador do estado de Goiás, e da Emenda à Constituição (PEC) n.º 194, de 2016, do senador Irajá Abreu (PSD). No primeiro exemplo, o objetivo é evitar a candidatura de pessoas analfabetas. Neste sentido, o PLS exige que os candidatos apresentem comprovante de escolaridade ou se submetam a banca examinadora para poderem se candidatar. A PEC, por outro lado, estabelece a exigência de conclusão de curso de graduação de nível superior em qualquer área como condição de elegibilidade para os cargos de senador, deputado federal, estadual ou distrital, presidente, vice-presidente, governador, vice-governador, prefeito, vice-prefeito e vereador.
Vê-se que Pedro não está sozinho. É compreensível que, nestes tempos de crise política, com tantos escândalos de corrupção, denúncias de malversação de verbas públicas, má qualidade dos serviços públicos (quando não há paralisação deles) e outros dissabores, cresça a preocupação com a eficiência e a busca de meios para elevar a qualidade da gestão pública. Defensores da exigência de formação educacional e/ou experiência prévia costumam argumentar que isso traria mais competência à gestão pública.
Mas é importante lembrar que nem o diploma escolar, nem o histórico profissional são sinônimos de competência política, de compromisso ético ou apreço pela democracia. Exemplos não faltam. Tampouco os “outsiders” são a resposta. Por outro lado, figuras sem ou com baixa formação escolar, mas com forte conexão com as demandas populares, já demonstraram capacidade de liderança eficaz em diversos contextos. Portanto, o problema não está no currículo individual dos candidatos, mas na forma como o sistema político funciona — ou falha.
Precisamos lembrar, em primeiro lugar, que a legitimidade de um mandato vem do voto, não do currículo, por mais que este possa ser importante. Por isso, condicionar o direito de participação política a uma certificação técnica ou acadêmica, ou à experiência prévia, equivale a transformar o voto e a elegibilidade em privilégios — em vez de direitos universais. Se fossemos exigir a formação superior completa, mais de 80% da população brasileira estaria automaticamente excluída da possibilidade de ser votada, especialmente os mais pobres, os trabalhadores, os moradores de periferia e os pequenos agricultores — segmentos que já enfrentam enormes dificuldades para se fazerem representar.
O risco, portanto, é de reforçar uma visão elitista ou autoritária da organização social, limitando o acesso ao poder a grupos privilegiados e minando o princípio da representatividade.
A essência do modelo brasileiro, e de outras democracias consolidadas, reside na abertura total à participação. A ausência de exigências de qualificação escolar ou experiência prévia garante que qualquer cidadão, independentemente de sua origem ou formação, possa se candidatar, votar e ser votado. Essa inclusividade reflete a confiança na soberania popular e na capacidade do eleitor de julgar quem melhor o representa, confiança que deve prevalecer sobre qualquer filtro institucional. Essa é uma conquista civilizatória contra o patrimonialismo, o voto censitário e a aristocracia política.
Assim, se é forçoso reconhecer que não está tudo bem, a resposta democrática não é a limitação da participação. O desafio é encontrar mecanismos que melhorem a qualidade da representação e, simultaneamente, fortaleçam a soberania popular. Em outros termos, a ideia de qualificação, em vez de focar na melhoria dos indivíduos, deve abranger todo o sistema político e administrativo.
Nesse caso, o projeto político é fundamental. O aprimoramento da governança pública passa pela criação de um ambiente que favoreça o fortalecimento institucional da cidadania, a maior transparência e o maior controle social. Isso significa, a meu ver, ampliar as condições para que todos possam influir sobre as decisões que afetem a comunidade; incentivar os mecanismos de prestação de contas e responsabilização dos legisladores e governantes e aprimorar os sistemas de apoio à boa gestão, o que inclui processos de formação continuada, assessorias qualificadas, escolas do legislativo e governo, dentre outras iniciativas. Finalmente, mas não menos importante, como projeto de longo prazo, é imperativo pensar em uma reforma política que aprimore tanto as regras da competição eleitoral no país quanto as normas para a organização partidária.
Ivanir Corgosinho é sociólogo
Referências
BRASIL. Proposta de Emenda à Constituição nº 194, de 2016. Estabelece a exigência de conclusão de curso de graduação de nível superior em qualquer área como condição de elegibilidade para os cargos de senador, deputado federal, estadual ou distrital, presidente, vice-presidente, governador, vice-governador, prefeito, vice-prefeito e vereador. Autor: Irajá Abreu (PSD/TO). Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2079587. Acesso em: 5 jul. 2025.
BRASIL. Projeto de Lei do Senado nº 310, de 2015. Acrescenta dispositivos ao art. 11 da Lei nº 9.504/1997 (Lei das Eleições), para garantir a comprovação da alfabetização do candidato para seu registro na Justiça Eleitoral. Autor: Senador Ronaldo Caiado (União Brasil/GO). Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/121419. Acesso em: 5 jul. 2025.
COMTE, Augusto. Sistema de Política Positiva. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1998.
FUKUYAMA, Francis. A ordem política e a evolução da sociedade. Tradução de Maurício Mesquita. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011.
MOUNK, Yascha. O povo contra a democracia: por que a democracia está em crise e como salvar o seu futuro. Tradução de Nathália Alves. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
PLATÃO. A República. Tradução de Clóvis Marques. São Paulo: Martin Claret, 2007.
(COORD.), J. N.; BRANDãO, B.; STASSART, J.; MOHALLEM, M. F. Retrospectiva Brasil 2021. Transparência Internacional – Brasil, 2022. E-book. Disponível em: <https://transparenciainternacional.org.br/publicacoes/retrospectiva-brasil-2021/>. Acesso em 04/07/2025.