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Ivanir Corgosinho: Qual polarização? Maiorias silenciosas e disputa política no Brasil

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Nos últimos anos, a ideia de que o país está tomado por uma forte polarização política entre petistas e bolsonaristas tornou-se um tema onipresente no debate público. Reportagens, colunas, redes sociais, livros e artigos apontam nessa direção, acompanhando as análises sobre a ascensão de movimentos de extrema direita em escala internacional.

Mas tal interpretação também reflete o processo de radicalização do ambiente político que passou a acontecer no Brasil, em linhas gerais, a partir das jornadas de 2013 e foi aprofundado com o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, a prisão de Lula, em 2018, e a vitória eleitoral de Jair Bolsonaro naquele mesmo ano, marcando um cenário que ainda persiste.

A polarização, que antes se limitava à rivalidade mais ou menos civilizada entre PT/PSDB, passou a incluir um novo campo político — a extrema direita bolsonarista —, elevando a hostilidade política entre esquerda e direita a um novo patamar. Apesar do caráter claramente “assimétrico” dessa dinâmica, prevaleceu a ideia de que estaríamos diante de um fenômeno longitudinal que, ultrapassando a esfera política, teria chegado ao cotidiano da sociedade brasileira, dividindo famílias, afetando amizades, interferindo nas decisões dos empresários e, enfim, comprometendo o conjunto das relações sociais cotidianas.

Essa narrativa ganhou força, em primeiro lugar, graças ao processo eleitoral de 2022 — um dos mais notáveis casos de polarização política da história recente, com o país claramente dividido em dois polos ideológicos. Em 2023, essa interpretação foi “sacramentada” em nível teórico com o livro Biografia do abismo, dos cientistas sociais Felipe Nunes e Thomas Traumann. O livro, sustentado por farta pesquisa, conclui pela “calcificação” da polarização no conjunto das relações sociais, criando a impressão de que a divisão extremada entre os polos ideológicos seria absoluta e permanente. Finalmente, na eleição de 2024, no campo da esquerda, houve um importante debate entre os que propunham táticas eleitorais baseadas numa estratégia de polarização e os que, ao contrário, defendiam a “despolarização”, num esforço de abertura do diálogo com setores da direita moderada.

Sobre esse assunto, escrevi dois artigos neste blog. No primeiro, “Sobre a tese da calcificação da polarização entre direita e esquerda no Brasil”, questionei as conclusões de Biografia do abismo, argumentando que “o mundo é grande e complexo demais para que as pessoas comuns se posicionem sobre temas referenciando-os num projeto existencial articulado e sistemático, como fazem os intelectuais, líderes políticos e doutrinadores. Ou como faz o chamado ‘núcleo duro’ daqueles que expressam alguma preferência partidária e que são amplamente minoritários nas sociedades contemporâneas.”

No segundo artigo, “A quem interessa a polarização política?”, afirmei que “tudo indica, enfim, que a intensa confrontação na esfera política reflete mais o comportamento de minorias politicamente ativas e engajadas — tanto à direita quanto à esquerda — que o animus do conjunto da sociedade. Torna-se evidente, dessa forma, o duplo equívoco de algumas lideranças de esquerda que veem a estratégia da polarização como principal instrumento de disputa eleitoral.”

Portanto, foi com certa satisfação que tomei conhecimento da pesquisa “O papel dos invisíveis na divisão política no Brasil”, da ONG More in Common, coordenada pelo pesquisador e professor da Universidade de São Paulo (USP) Pablo Ortellado e feita em parceria com a Quaest Pesquisa e Consultoria, do próprio Felipe Nunes.

De acordo com a pesquisa, a crença não se justifica: o Brasil não está dividido ao meio. A um ano da eleição presidencial, mais da metade dos brasileiros tem posicionamentos que não se enquadram na polarização entre lulismo e bolsonarismo. “As posições mais extremas se concentram em segmentos pequenos, enquanto a maioria da população está no meio, cansada da polarização” — explica Pablo Ortellado, em matéria no jornal O Globo.

O levantamento identificou seis segmentos de opinião na população brasileira, detalhando não apenas suas posições políticas, mas também características socioeconômicas, educacionais e demográficas. São eles:

Progressistas Militantes (5%): jovens adultos, predominantemente mulheres, com ensino superior completo ou cursando, renda média a alta, concentrados em grandes centros urbanos. São fortemente engajados em debates ideológicos, defendendo pautas progressistas de forma intensa, e representam o núcleo da esquerda radical.

Esquerda Tradicional (14%): adultos jovens e de meia-idade, escolaridade média a superior incompleta, renda baixa a média, predominantemente urbanos. Menos radicais que os militantes, ainda mantêm posição consistente à esquerda.

Desengajados (27%): ampla faixa etária, predominância feminina, escolaridade média ou baixa, renda baixa a média, localizados em periferias e cidades pequenas. Mantêm-se afastados do debate político intenso, com opiniões moderadas e pouco alinhamento a polos extremos.

Cautelosos (27%): adultos de meia-idade, equilíbrio de gênero, escolaridade média, renda média, localizados em centros urbanos e pequenas cidades. Tendem a adotar posições pragmáticas e moderadas, evitando confrontos ideológicos.

Conservadores Tradicionais (21%): adultos de meia-idade e idosos, maioria masculina, escolaridade média, renda média a média-alta, concentrados em cidades pequenas e no interior. Representam a direita moderada, com adesão limitada a pautas radicais.

Patriotas Indignados (6%): adultos jovens e de meia-idade, maioria masculina, ensino médio completo ou incompleto, renda média a baixa, localizados em cidades médias e no interior. São fortemente engajados em pautas de direita radical, representando o núcleo oposto aos Progressistas Militantes.

A análise desses perfis evidencia que os segmentos que, de fato, polarizam são os Progressistas Militantes e os Patriotas Indignados, que somam apenas 11% da população. Embora minoritários, esses grupos são muito ativos e visíveis, dominando o debate público e as redes sociais, amplificando uma sensação de polarização que não corresponde a uma característica dominante na realidade.

Por outro lado, Desengajados e Cautelosos — chamados de “invisíveis” pelos autores — representam mais da metade da população (54%) e são os grupos decisivos para compreender a política brasileira. Eles rejeitam o radicalismo e 46% não se definem nem como petista nem como bolsonarista. Apresentam opiniões moderadas, críticas ou pragmáticas, concentrando suas preocupações em temas práticos e pouco ideológicos. Suas preocupações são estabilidade, proteção social e melhoria das condições de vida. Ambos compartilham baixos níveis de escolaridade e renda (65% ganham menos de R$ 5 mil mensais) e vivem majoritariamente no Nordeste e em áreas rurais. São grupos compostos por negros e pardos, católicos e evangélicos, que expressam desconfiança em relação à política e baixo interesse eleitoral: entre 23% e 30% não votaram em 2022.

Esses grupos são o verdadeiro centro de gravidade da sociedade brasileira. Mas, por sua renda e escolaridade, tendem a acompanhar as opiniões dos “Conservadores Tradicionais”, como deduz Maria Hermínia Tavares, em seu artigo “A solidão dos progressistas”. De fato, 72% deles se identificam como conservadores e, juntos, esses três grupos formam um campo com 75% da população.

Já os “Progressistas Militantes” e a “Esquerda Tradicional”, cujas características são aparentadas, não chegam a 20% da população. “Não por acaso, aquela foi aproximadamente a porcentagem de votos válidos obtidos em 2022 pelos partidos de esquerda para a Câmara dos Deputados”, diz Maria Hermínia. Esses dois grupos se diferenciam da maioria por sua renda, nível educacional e cor da pele: são brancos, urbanos, ricos, altamente escolarizados (53% com ensino superior), com baixa religiosidade. Defendem direitos sociais amplos, políticas de gênero e igualdade racial.

Assim, os dados da pesquisa apontam para um relativo descolamento social entre os polos ideológicos e a maioria da população. Enquanto os Progressistas Militantes apoiam quase unanimemente políticas de gênero, cotas raciais e ampliação dos direitos humanos, os invisíveis demonstram forte conservadorismo moral. Entre eles, 70% a 89% rejeitam o uso de banheiros femininos por travestis e cerca de metade considera o feminismo uma ameaça à família.

Entretanto, esses mesmos grupos apoiam políticas redistributivas, como a isenção de imposto de renda até R$ 5 mil e o fortalecimento de programas sociais, ainda que critiquem o assistencialismo por estimular “acomodação”. Essa combinação de valores conservadores e demandas econômicas progressistas revela um eleitorado complexo, contraditório e, paradoxalmente, convergente. De fato, entre 70% e 96% dos respondentes acreditam que os brasileiros têm mais em comum do que divisões entre si.

Em termos eleitorais e de políticas públicas, essas descobertas têm consequências profundas e imediatas. Apostar na polarização, como ainda insistem alguns setores da esquerda, arrisca alienar precisamente os “invisíveis” que, apesar de seu conservadorismo moral, clamam por estabilidade econômica e proteção social. Estratégias vencedoras para 2026, portanto, demandarão uma espécie de “despolarização ativa”: diálogos que transcendam os polos ideológicos, priorizando pautas concretas como a ampliação de programas redistributivos sem o estigma do assistencialismo, e propostas para promover avanços em igualdade racial e de gênero formuladas com base em dialogo e a partir da ideia de respeito, não de confronto com os valores tradicionais.

Essa abordagem não só resgata o campo progressista de sua “solidão”, como apontado por Maria Hermínia Tavares, mas revela o potencial de uma sociedade brasileira mais coesa. A ilusão da polarização, alimentada por minorias vocais e pela lógica das redes sociais, pode ser desfeita ao reconhecermos os invisíveis não como periferia eleitoral, mas como o centro gravitacional de uma democracia viva e plural.

Referências
CORGOSINHO, Ivanir. A quem interessa a polarização política? Disponível em: https://www.zeprataeivanir.com.br/ivanir-corgosinho-a-quem-interessa-a-polarizacao-politica/. Acesso em: 23 out. 2025.

CORGOSINHO, Ivanir. Sobre a tese da calcificação da polarização entre direita e esquerda no Brasil. Disponível em: https://www.zeprataeivanir.com.br/sobre-a-tese-da-calcificacao-da-polarizacao-entre-direita-e-esquerda-no-brasil/. Acesso em: 23 out. 2025.

MORE IN COMMON. O papel dos invisíveis na divisão política no Brasil. 2025. Disponível em: https://realtime1.com.br/wp-content/uploads/2025/10/apresentacao-final-invisiveis.pdf. Acesso em: 23 out. 2025.

O GLOBO. Os invisíveis: como pensa a massa de eleitores que rechaça a polarização e pode decidir as eleições em 2026. 5 out. 2025. Disponível em: https://oglobo.globo.com/blogs/pulso/noticia/2025/10/05/os-invisiveis-como-pensa-a-massa-de-eleitores-que-rechaca-a-polarizacao-e-pode-decidir-as-eleicoes-em-2026.ghtml. Acesso em: 23 out. 2025.

TAVARES, Maria Hermínia. A solidão dos progressistas. Folha de S. Paulo, 16 out. 2025. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/maria-herminia-tavares/2025/10/a-solidao-dos-progressistas.shtml. Acesso em: 23 out. 2025.

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