Este texto foi entregue pela prefeita Marília Campos ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que encaminhou imediatamente para um debate com a Secretaria do Tesouro Nacional. O que sustentamos é o seguinte: a exigência de previdência de capitalização se sobrepõe e inviabilizará o cumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal para Estados e municípios.
1-As previdências estaduais e municipais, no formato que existem atualmente, são uma “bomba fiscal”, que já está destruindo as finanças especialmente dos municípios. O governo Lula e as áreas econômicas e de planejamento não podem considerar triviais e rotineiros os problemas fiscais sérios das finanças municipais causados sobretudo pela absoluta inviabilidade das previdência municipais. Os problemas das previdências de Estados e Municípios não são apenas “administrativos” e de “gestão”; são problemas estruturais: a) cerca de 1.800 Regimes Próprios de Municípios – RPPS foram formados no período de 1988 a 1998 sem qualquer regulamentação, sem levar em conta critérios mínimos, como quantidade de servidores e receita própria, única fonte de custeio para os déficits; d) a adoção do regime de capitalização, a partir de 2008 no governo Lula, abriu um rombo sem nenhuma necessidade, de R$ 1,1 trilhão para os municípios, e, considerando os Estados, o rombo atinge R$ 5 trilhões; c) o Congresso Nacional, na reforma da previdência, deixou os Estados e municípios de fora, e, até hoje a ampla maioria dos municípios, os entes mais frágeis do pacto federativo, não adotaram as novas regras para os benefícios, sobretudo de aposentadorias e pensões.
A PEC 66, chamada pelos partidos de centro de “PEC da sustentabilidade fiscal dos municípios” dos municípios é um paliativo que não resolve os problemas estruturais das previdências dos municípios. Veja a crise financeira dos municípios em decorrência do modelo previdenciário: dívidas com os Regimes Próprios – RPPS de R$ 43 bilhões; dívida com o INSS de R$ 248 bilhões. A PEC parcela as dívidas previdenciárias dos municípios, mas não equacionam e aliviam os déficits futuros porque as regras da reforma da previdência não são adotadas pelos municípios e porque o regime de capitalização, onde ele está mais maduro, exigem um esforço de capitalização enorme, o que gera um explosivo déficit previdenciário dos fundos financeiros colocados em extinção. Ou seja, a PEC não vai garantir sustentabilidade fiscal para os municípios porque terão que retomar os pagamentos previdenciários e, ao mesmo, tempo quitar as parcelas do parcelamentos das suas dívidas. E isto explica porque os partidos de centro conseguiram aprovar a desoneração previdenciária de pequenos e médios municípios, que o governo Lula, de forma correta, está conseguindo reverter. Mas se não tem sentido a desoneração previdenciária dos municípios, não tem porque também o governo federal onerar os municípios com exigência de um superávit previdenciário enorme para a capitalização de suas previdências.
2-A previdência de capitalização não cabe dentro da Lei de Responsabilidade Fiscal. Veja só porque a capitalização se sobrepõe e não cabe dentro da Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF: a) pela LRF o limite de endividamento de municípios é de 120% da Receita Corrente Líquida e para Estados o limite é de 200% (defendemos que deveria ser igual de municípios também de 120%); b) atualmente a dívida consolidada líquida dos municípios é de R$ 85 bilhões e em 2008 sob a coordenação do Ministério da Previdência foi criada a previdência de capitalização para Estados e Municípios, através de uma portaria, inventaram uma dívida previdenciária, sem precisar, de R$ 1,1 trilhão para os municípios e de R$ 5 trilhões se incluídos os Estados, que não cabem nos limites de endividamento da Lei de Responsabilidade Fiscal; c) veja o caso dos Estados: Lula, em articulação com o Ministério da Fazenda, aprovou o Propag, que busca solucionar a dívida dos Estados, de 896 bilhões; mas o Ministério da Previdência mantém firme na defesa da previdência de capitalização, que abre um rombo, sem necessidade, de R$ 5 trilhões nas finanças dos Estados; d) Minas Gerais tem uma dívida de R$ 168 bilhões e o rombo da previdência capitalizada é de R$ 753 bilhões; ou seja, o Propag não equacionar a dívida do Estado; d) veja o caso de Contagem: a dívida corrente líquida municipal (dívida bruta menos os recursos em caixa no Tesouro e nos fundos vinculados) é baixa de R$ 411 milhões; ou 13% da receita corrente líquida; a previdência de capitalização cria um rombo impagável para o município de R$ 6,5 bilhões; e) a Lei de Responsabilidade Fiscal estabeleceu o teto de 60% da receita corrente líquida para gastos de pessoal; a criação da previdência de capitalização foi feita sem fonte de financiamento para o rombo de R$ 5 trilhões nas finanças de Estados e Municípios. Resultado disso: os custos da capitalização serão suportados pelos próprios servidores nos limites dos gastos de pessoal de 60% a que nos referimos; daí porque o corporativismo sindical, que apoia a capitalização, beira a estupidez; a bomba fiscal da capitalização vai estourar no colo dos próprios servidores; c) a previdência social solidária – INSS e RPPS – representa R$ 1,5 trilhão de gastos anuais ou 42% dos gastos públicos no Brasil; a supressão da previdência solidária tem custos tão elevados que destrói todas as políticas sociais. A previdência de capitalização é um risco oculto ao equilíbrio fiscal dos municípios e Estados. Trata-se de um enorme ajuste fiscal informal sem qualquer sustentação na Lei de Responsabilidade Fiscal no que se trata de limites de endividamento de Estados e municípios, gastos de pessoal e financiamento das políticas públicas.
3-Veja as repercussões nos municípios da previdência de capitalização; poupar previdência dos servidores tem que ser compensado com cortes nas políticas públicas; e dramático: os cortes serão feitos na saúde, que tem vinculação constitucional baixa de 15% nos municípios e 12% nos Estados. É preciso dizer que o regime de capitalização não cabe dentro da Lei de Responsabilidade Fiscal porque estoura e muito os limites de endividamento de Estados e municípios; e inviabiliza a capacidade de pagamento destes entes públicos. Veja só: é um equívoco tornar a Receita Corrente Líquida – RCL como base universal para os limites de endividamento e capacidade de pagamento de Estados e Municípios. A RCL, definida pela LRF, engloba todas as receitas correntes arrecadadas pelo ente, descontadas algumas transferências constitucionais e legais. Porém, grande parte dessa receita está vinculada a despesas específicas, como saúde, educação e assistência social. Ao utilizar a totalidade da RCL como base para os limites de endividamento a legislação induz os entes a compromissos que, na prática, incidem sobre recursos indisponíveis para livre gestão. Isso compromete o planejamento financeiro e cria o risco de desequilíbrio fiscal ao longo do tempo, especialmente em períodos de queda de arrecadação. Em outras palavras, os limites definidos pela legislação deveriam considerar apenas a parcela livre da receita, aquela efetivamente disponível para suportar novas dívidas. Utilizar como referência a RCL bruta é ignorar o próprio espírito da LRF, que busca o equilíbrio real entre receitas disponíveis e obrigações assumidas. Repetimos: a previdência de capitalização cria um rombo trilionário desnecessário nas contas dos Estados e municípios e compromete da capacidade de pagamento da dívida pública, ainda mais considerando que a parcela disponível para pagamento de dívida é muito inferior a receita corrente líquida.
Os municípios recebem transferências de recursos vinculados, principalmente, à educação e saúde e contam com a arrecadação dos tributos municipais e das transferências de impostos, que não possuem uma vinculação específica e, sim uma aplicação mínima de 25% na educação e 15% na saúde. As receitas vinculadas à educação e à saúde podem ser utilizadas para o pagamento das contribuições previdenciárias patronais, mas não podem ser utilizadas para cobrir o déficit previdenciário gigantesco gerados pela previdência de capitalização (cada real poupado na previdência de capitalização é um real a menos para cobrir o déficit da extinção da previdência solidária). Então quem cobre o déficit explosivo da previdência de capitalização são as receitas de impostos dos Tesouros Municipais. E quais são os gastos dos Tesouros Municipais: a) 25% para a educação; b) 15% para a saúde, Contagem gasta 28% com saúde; d) cerca de 20% a 30%, de acordo com a realidade de cada município, para todas as demais áreas e secretarias das Prefeituras; e) 5,9% da receita com a Câmara, incluindo emendas impositivas; f) pagamento da dívida/precatórios; h) recursos do Tesouro para investimentos; g) pagamento do PIS-PASEP; h) e cobertura do crescente déficit previdenciário.
Repetimos: como se diz, “não existe almoço de graça”, todo recurso colocado na previdência dos servidores públicos implica que tem que ser compensado com cortes nas políticas públicas. Damos um exemplo da economia familiar: uma família tem uma renda de R$ 10 mil e gasta tudo; aí então um “gênio” da família, para garantir uma melhor aposentadoria no futuro, propõe que se faça uma poupança de R$ 2.000; mas não tem jeito: para poupar R$ 2.000,00 tem que cortar gastos no presente e baixar o orçamento familiar para R$ 8.000,00. (…) A esquerda e os servidores precisam entender que é assim também que garantir uma poupança para eles no futuro, quem vai pagar a conta é a sociedade com cortes nos serviços públicos.(…) Veja as situações que estão colocadas para os Tesouros Municipais: a) diversos gastos não tem como cortar: os 25% da educação; 15% da saúde; os gastos com as Câmaras Municipais; pagamentos de dívidas; b) está claro como a luz do dia, que as opções que sobram para os cortes é no investimento realizado com recursos do Tesouro e com empréstimos; “depenando” ainda mais as secretarias menores, que juntas consomem valores pouco expressivos; e dramático: cortes no SUS que tem vinculação constitucional baixa de apenas 15%; c) uma das formas de minimizar os ajustes de gastos em função da previdência de capitalização é que, sobretudo na área de saúde, é preciso uma prioridade absoluta para o gastos dos “recursos vinculados” dos repasses da União e do Estado; só depois de gastos estes recursos é que se deve recorrer ao Tesouro; necessário se faz fazer articulação política para que os repasses do SUS do Estado tenham a mesma flexibilidade dos repasses do SUS da União, que são “mais fáceis de gastar”. Claro que num primeiro momento, a educação, com recursos vinculados muito elevados, de 25% das receitas, fica preservada. Mas ninguém da área de educação deveria ficar feliz com isso: hoje corta-se na cultura e não dizemos nada, corta-se nos investimentos para melhorar a vida do povo e não dizemos nada; corta-se na saúde e não dizemos nada; e chegará o momento também de que a educação também será tragada pela destruição do Estado Social. Foi assim no Chile: a destruição da previdência social seguiu a destruição de todas as políticas sociais.
4-A esquerda não pode entregar a formulação de políticas previdenciárias para os atuários; são os economistas e políticos, comprometidos com a previdência social e não com a de capitalização, que deem coordenar tais formulações. A esquerda erra demais na previdência e, quando acerta, como nas mudanças que Lula fez em 2004, o presidente foi muito criticado e o PT teve racha político e orgânico. Quais foram os erros: a) o governo implantou em 2008, numa gestão liderada por sindicalistas das estatais, a previdência de capitalização, que municípios tiveram que adotar para não perderam as transferências voluntárias do governo federal, que criou, sem necessidade o rombo de R$ 1,1 trilhão; esta experiência foi baseada na nos fundos de capitalização das estatais que não são referência para regimes básicos de previdência social; b) em 2012, mais um erro dramático: a desoneração da folha de salários das empresas, substituindo por uma contribuição sobre o faturamento, mudança que nenhum país do mundo fez, e que agora Fernando Haddad luta e se desgasta com empresários e prefeitos para acabar com a desoneração da folha que nós criamos. Fernando Haddad, de forma correta, conseguiu a reoneração gradual das prefeituras em relação ao INSS, mas se desgasta por insistir em manter uma oneração radical dos municípios, que é a exigência de um enorme superávit através de previdência de capitalização; c) e agora, mais recentemente, os burocratas do Ministério da Previdência Social comemoram o fato de o STF ter constitucionalizado o Certificado de Regularidade Previdenciária – CRP; uma espécie de Lei de Responsabilidade Previdenciária, que nem lei é porque é apenas um Decreto. Veja que vexame: os governos estaduais de extrema direita de Minas e São Paulo não adotam a capitalização e o governo do Rio desvinculou recursos do petróleo da previdência capitalizada e agora, nosso governo de esquerda, terá que exigir capitalização da previdência dos “rebeldes” da extrema direita, que são vinculados ao mercado financeiro, mas que, pragmaticamente, não adotam o modelo “por ser muito caro” para os cofres públicos.
E quando nosso governo acertou, a esquerda rachou em 2004. Lula, numa medida histórica alinhada com o programa do PT das origens – a defesa de um regime de previdência social igual para todos e todas – acabou com a aposentadoria integral dos servidores, mantendo o direito adquirido e a expectativa de direito, e setores do PT, alinhados com a cúpula dos Poderes, rachou e criou o PSOL. Veja só: Lula, e também Dilma, salvaram o Estado do Bem estar Social brasileiro, quando retiraram a regressividade das políticas sociais, estabelecendo um teto na previdência para todos e todas na previdência e levando o Estado Social para os mais pobres, através do Bolsa Família, cotas nas universidades, Minha Casa Minha Vida, Luz para Todos, reajustes reais do salário mínimo. O cientista político Wanderley Guilherme dos Santos disse certa vez que o “pai dos pobres” é Lula e não Getúlio, porque enquanto Getúlio criou direitos para quem tinha carteira assinada (CLT e previdência), foi Lula que fez os direitos chegarem aos mais pobres. É isto que explica, em grande medida, a popularidade de Lula, que o povo entende, e que, nós, de classe média, temos dificuldades de entender.
5-Lula deveria recompor a equipe do Ministério da Previdência, especialmente os formuladores de previdência, que devem ser comprometidos com a previdência social e não com o modelo de capitalização. Lula deveria, em nossa opinião, reabrir o debate sobre a previdência dos servidores estaduais e municipais, mas com medidas claras:
a) aliviar as finanças dos municípios com o fim do regime de capitalização exigido atualmente, o que daria fôlego aos municípios sem onerar o caixa do governo federal; veja que obviedade: o governo federal não tem capitalização na previdência básica até o teto do INSS; o que se propõe é que este modelo seja também adotado para Estados e municípios;
b) que seja adotado uma transição sem traumas e cortes de verbas para os 1.119 municípios e Estados que estavam abrigados, até recentemente, no CRP judicializado; c) que os recursos já poupados por Estados e municípios não voltem ao caixa dos tesouros, como aconteceu em Minas Gerais em 2014, mas sejam direcionados para “fundos de ativos” para dar maior equilíbrio financeiro para a previdência solidária; podendo o município, por exemplo, sacar anualmente metade dos rendimentos financeiros para reduzir o déficit previdenciário;
d) que as normas da previdência já válidas para servidores federais, segurados do INSS, e em 23 estados, sejam estendidas aos servidores municipais; que seja aberto o debate sobre a federalização de todos os regimes próprios de pequenos municípios, que foram formados na “tora” sem nenhum critério técnico, como número mínimo de servidores, como prevê a Lei 9.717/1998 e a Portaria 4.992/99, que fixou critério adicional para se ter RPPS de receita própria ampliada superior às receitas de transferências.
Na verdade, a “PEC da sustentabilidade fiscal” defendida pelos partidos de centro é uma iniciativa importante para melhorar as finanças dos municípios, mas ela é paliativa, parcela dívidas, mas não resolve o problema estrutural, que é a exigência de capitalização para estados e municípios, que o governo federal não adota. É preciso salvar os municípios, que estão em uma situação dramática; medida recente do Congresso Nacional abriu a possibilidade de utilização de emendas parlamentares para pagar salários dos servidores ativos da saúde, setor mais vulnerável como mostramos neste estudo. É preciso reverter a situação dos municípios, mas apoiamos qualquer medida que não interrompa os serviços básicos à população, sobretudo na saúde.
José Prata Araújo é economista e especialista em previdência social.
Dalmy Freitas de Carvalho é economista e ex-Secretário da Fazenda governo Marília Campos