topo_M_Jose_prata_Ivanir_Alves_Corgozinho_n

SEÇÕES

Marília, o PT e a renovação que tarda

Causou certo estranhamento entre apoiadores do governo e militantes petistas,  o puxão de orelha – forte e em público –  que a prefeita Marília Campos deu, recentemente, nos governos federal e estadual, no Congresso e na Assembleia Legislativa mineira, sem perdoar sequer o PT, seu partido de velha data.

O azedume da prefeita com o PT ganhou as páginas dos jornais, sempre ávidos de sensacionalismo e factoides, ainda mais quando o subtexto sugere divisões no campo da esquerda. “O tempo fechou no partido dos Trabalhadores” foi o tom da cobertura.

É lamentável que as coisas tenham chegado a este ponto. Idealmente, as divergências internas aos partidos deveriam ser tratadas nos fóruns partidários sem, necessariamente, se tornarem objeto de escrutínio público. A verdade, todavia, é que “o caldo entornou” com o problema da definição dos critérios para a repartição dos recursos do chamado ICMS para a educação que, como todos a esta altura devem saber, resultou em prejuízo milionário para os municípios com maior quantitativo de estudantes matriculados. No caso de Contagem, a perda pode chegar a R$ 87 milhões. Ante a denúncia feita por Marília e, também, por Margarida Salomão, Vitório Mediolli e outros chefes de executivos municipais, o partido optou pelo silêncio. Nível zero de empatia.

Digo que o “caldo entornou” porque a insatisfação de nossa prefeita com as posturas adotadas pelo PT frente a alguns tema de forte impacto sobre o cotidiano dos municípios, a começar por Contagem, não começou ontem. O partido em Minas tem sido omisso (quando não adota posições controversas) em temas como o piso da educação, o rateio do Fundeb, a dívida pública do estado, a proposta de adesão ao Regime de Recuperação Fiscal do Governo Federal, a questão do novo rodoanel para a Região Metropolitana de Belo Horizonte, dentre várias outras polêmicas que têm mobilizado prefeitos e prefeitas da RMBH nos anos recentes.

Não entrarei aqui no debate sobre cada um desses tópicos. Para isso, recomendo à leitora e ao leitor, o artigo Carta ao PT Minas sobre ICMS Educação, Piso Magistério, Fundeb e RRF, do José Prata, neste blog.[1] O que importa para os fins deste texto é registrar que, em cada uma dessas polêmicas, Contagem, quase sempre acompanhada por outros municípios, tem defendido posições diferentes daquelas que prevalecem e que, com alguma frequência, são encaminhadas pelo partido, numa evidente falta de sintonia entre as direções e as bases.

A indisposição para mudar acaba produzindo a incapacidade de mudar, a imobilidade. Assim como a indisposição para ouvir pode levar à surdez. É o que tem acontecido com o PT mineiro. Sintomática, nesse sentido, a reação do presidente da sigla, deputado estadual Cristiano Silveira, às críticas de Marília. Entre outros, a prefeita estaria desinformada e precisando se aproximar mais do partido. Mais ainda: acusa a prefeita de intenções inconfessadas e de fazer algum tipo de jogo que ainda não estaria claro. Vale a citação:

“Eu duvido muito das intenções dela em realmente querer discutir a relação dela com o partido. Até porque eu, como presidente do partido, nunca fui procurado por ela, por interlocutor, no sentido de solicitar, por exemplo, uma agenda com a direção do PT de Minas. Então, ela quer fazer uma discussão de relação com o partido na imprensa, e eu duvido muito dessas intenções. O partido está curioso para saber qual a intenção dela com esse jogo. Não está claro para nós o que ela quer”, ressaltou o presidente do PT-MG.” [2]

Insultar o interlocutor é um caminho seguro para bloquear a conversação e a produção de acordos. Dizer que jamais foi procurado para conversar também não resolve a questão. Um velho tutor meu, dos tempos em que militava em uma organização de esquerda marxista, me dizia que “quando a base tem que correr atrás da direção, a coisa tá complicada”. Continuo fiel a este ensinamento.

É necessário estar muito na defensiva e ser muito corporativo para acreditar que as críticas de Marília representem uma ameça à integridade do partido. Esta, entretanto, é uma atitude que confirma a existência do problema real: o distanciamento e a autonomização da direção em relação à base partidária.

Nas Ciências Políticas é bastante conhecida a chamada “Lei de Ferro da Oligarquia” desenvolvida pelo sociólogo alemão Robert Michels. [3] A “lei” sentencia a inexorabilidade dos processos de oligarquização da liderança em qualquer organização de massas e, em especial nos sindicatos e partidos operários que visem a conquista do espaço na institucionalidade e sucesso eleitoral. Essa inexorabilidade se deve, afirma Michels, às necessidades táticas e técnicas da organização que demanda estruturas, recursos materiais, delegação de poderes, hierarquias de comando, etc. Assim, nas democracias representativas é apenas uma questão de tempo para que os parlamentares eleitos pelos partidos de esquerda se autonomizem em relação aos eleitores, conformando uma elite dirigente. “Quem diz organização, diz oligarquia”, sentencia.

Em âmbito acadêmico, já existem inúmeros estudos demonstrativos de que o caso do PT, lamentavelmente, não contraria a tese de Michels. Mas, muito além da academia, este problema vem sendo reiteradamente pautado por diversas lideranças partidárias já há algum tempo. Entre elas, ninguém menos que Lula.

Em 2013, o maior líder do PT desde sempre, teceu críticas duras à legenda em uma longa entrevista ao jornal espanhol “El País”. Na entrevista, Lula acusava a contradição com as origens do partido e a situação a que havíamos chegado com a supervalorização do parlamento e de cargos. “Era um partido pequeno (o PT), que depois passou a ser grande e, como tal, foram aparecendo defeitos. Gente que dá muito valor ao Parlamento, outros aos cargos públicos”, disse. E concluiu: “Não quero voltar às origens, porém, gostaria que não esquecêssemos para que nós fomos criados. Por que queríamos chegar ao governo? Não para fazer o que os outros faziam, mas para agir de maneira diferente”. [4]

Quatorze anos depois nada mudou, como constata o mesmo Lula que, recentemente, voltou à carga. No último dia 2 de fevereiro, durante o ato de refiliação da ex-prefeita da capital de São Paulo, Marta Suplicy e anúncio da candidatura dela a vice na chapa de Guilherme Boulos (Psol-SP), Lula deixou muita gente constrangida com a acidez das críticas que continua fazendo e com seu clamor por renovação, como nos informa a jornalista Maria Cristina Fernandes. [5],

Se os apelos de Lula por renovação acumulam poeira nas gavetas da burocracia petista, imagine-se o que ocorre com os reclamos da militância comum. É forçoso reconhecer que, premido pelas necessiades gerais da luta política, pelo confronto entre as correntes e tendências e pelos interesses dos gabinetes parlamentares, o partido deixou de investir nos instrumentos necessários para tratar as expectativas da militância. Em lugar disso, “acabou por criar uma estrutura que muitas vezes confunde os interesses da base com os seus próprios”, como declarou Ricaro Berzoini em entrevista à CartaCapital em 2020. [6]

Esta é a base da incompreensão da queixa de Marília. Longe de ameaçar a integridade do partido ou pretender algo inominável, o que a prefeita pôs na mesa, para debate e reflexão, num momento de angúsia extremada com a insensibilidade da legenda que escolheu para representa-la,  foi a necessidade de uma reaproximação entre as direções e as bases partidárias como condição para a construção de propostas e opiniões mais alinhadas entre as partes sobre temas sensíveis para as municipalidades. E isso porque tais temas produzem impactos negativos seja sobre as finanças municipais, seja sobre outras funções da vida coletiva, afetando diretamente as pessoas. Nesse sentido, são questões que também dizem respeito ao pacto federativo. É isto que a prefeita está dizendo quando afirma que “Fazem política e não discutem a repercussão nas cidades. Precisamos de vozes municipalistas em nível federal e do Estado”.

De fato, a lista das iniciativas de criação de despesas novas ou desonerações que afetam dramaticamente as municipalidades é extensa. Basta lembrar, por exemplo, a Lei Kandir, que causou a Minas, e aos municípios exportadores, um prejuízo da ordem de R$ 135 bilhões, segundo dados da Comissão Extraordinária de Acerto de Contas entre Minas e a União, criada pela ALMG. Ou o pacotaço que reduziu o preço dos combustíveis em 2022 que confiscou cerca de R$ 27 bilhões em receitas para as prefeituras, segundo a Confederação Nacional de Municípios (CNM). O confisco dos recursos do ICMS da educação é apenas mais um episódio deste folhetim.

Naturalmente, não se questiona o mérito de algumas decisões que, em vários casos, atendem demandas antigas, legitimas e justas. São exemplos, o Piso Nacional do magistério e o Piso Nacional da Enfermagem. Todavia, é vital que ao se criar despesa nova, a ser paga pelos municípios, sejam também disponibilizadas as receitas correspondentes sob pena de arrochar ainda mais o Tesouro Municipal, além de gerar tensões sociais.

Por outro lado, pela magnitude dessas iniciativas, é difícil para um único município enfrentá-las isoladamente. Esta tarefa requer contatos em Brasília, apoio das bancadas via o pronunciamento das lideranças e apresentação de proposições, articulações com outras prefeituras, estudos que possibilitem decisões bem informadas, a constituição de fóruns de debates e troca de experiências entre as gestões, dentre várias outras iniciativas possíveis que, como salta aos olhos, cabem precipuamente aos partidos. Por esta razão, essas direções precisam desenvolver um mìnimo de empatia com a questão municipal e se disporem a contribuir com a superação do calvário que é o financiamento dos serviços públicos nos municípios. Precisam estar dispostas a ir até o prefeito ou prefeita, a ouvir e a ajudar. Precisam, enfim, estar decididas a criar os mecanismos necessários para acolher as demandas que chegam “de baixo”.

A questão que fica: é possível uma reversão do quadro de distanciamento e autonomização das direções do PT em relação à base partidária? A experiência mostra que é preciso duvidar desta possibilidade sempre que ela depender exclusivamente das direções partidárias. E isto por razões que independem da mera vontade dos indivíduos. Historicamente, o PT tem demonstrado um inegável compromisso com a promoção da participação e da diversidade em suas fileiras, buscando vacinar-se contra a inexorabilidade da lei de ferro das oligarquias em sua organização. Ainda assim, a estrutura interna de poder no partido foi – como tinha que ser – consolidada para se tornar eficiente e, inevitavelmente, desenvolveu um animus resistente a mudanças. Líderes e quadros que ocupam posições de destaque há décadas são um patrimônio partidário valioso, especialmente nos momentos de tensão e crise política, e não podemos abrir mão deles em função de qualquer novato que começou a vida política dia desses. Nesse sentido, a renovação jamais será um processo de fácil encaminhamento.

Obviamente, esta conclusão não significa que as direções partidarias não possam, se assim o quiseram, adotar medidas para aumentar a transparência e a prestação de contas, incentivar a maior participação da base, fortalecer a formação política, apoiar a renovação de lideranças e buscar uma maior conexão com os eleitores e demandas da sociedade. A história dos partidos políticos, e do próprio PT, está repleta de exemplos de processos intensos de renovação promovidos de dentro para fora, a partir da iniciativa dos dirigentes partidários. Mas, não é necessário ir longe para encontrar inspiração. O PT, aqui em Contagem, adotou uma política de organização que pode ser referencial à medida aposta na unidade partidária, incentiva a mobilização e a participação da militância, valoriza a liderança veterana, busca soluções coletivas para a questão do financiamento da estrutura, investe em formação política e em comunicação e, finalmente, mantem uma sintonia fina com o projeto de governo que a prefeita Marília Campos desenvolve no municipio. Nesse sentido, vale lutar internamente pela renovação.

De toda forma, acredito que as razões externas são as mais eficazes para a produção de mudanças. A necessidade de se adaptar a novos desafios ou responder a demandas emergentes da sociedade pode, eventualmente, criar um ímpeto para a renovação e reforma do partido à medida que as direções partidárias passem a enfrentar pressões de membros do partido, eleitores, grupos de interesse e até de seus adversários políticos. Nesse sentido, valeu o puxão de orelha.

Ivanir Corgosinho é sociólogo

NOTAS

[1] José Prata: Carta ao PT Minas sobre ICMS Educação, Piso Magistério, Fundeb e RRF, Disponível em https://www.zeprataeivanir.com.br/jose-prata-carta-ao-pt-minas-sobre-icms-educacao-piso-magisterio-fundeb-e-rrf/

[2] Prefeita e presidente do PT em Minas expõem divergências – https://www.em.com.br/politica/2024/03/6827722-prefeita-e-presidente-do-pt-em-minas-expoem-divergencias.html

[3] MICHELS, Robert. Sociologia dos partidos políticos: pensamento político. 53. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1982.

[4] Em entrevista a jornal espanhol, Lula critica o PT – https://oglobo.globo.com/politica/em-entrevista-jornal-espanhol-lula-critica-pt-10442862

[5] Maria Cristina Fernandes: Lula traça a risca de giz no PT – https://www.zeprataeivanir.com.br/maria-cristina-fernandes-lula-traca-a-risca-de-giz-no-pt

[6] Longe do povo: excessiva burocratização do PT esquenta debate interno – https://www.cartacapital.com.br/politica/longe-do-povo-excessiva-burocratizacao-do-pt-esquenta-debate-interno

Outras notícias