Este ensaio nasceu de uma aula. Foi transcrito, escutado e transformado em texto com o auxílio de uma inteligência artificial que também aprende a pensar. Mas quem decide o rumo — ainda — é o professor.
Vivemos um tempo em que inovar ou inventar parece ter ficado fora de moda. Nas escolas, nas universidades, nas secretarias de educação, o verbo da vez é “implementar”. Implementar plataformas. Integrar ferramentas. Usar IA. Monitorar desempenho. Otimizar o tempo didático. Escalar boas práticas. O léxico da educação virou planilha. Esse é o discurso vendido, iniciado nas escolas privadas e que começa a ganhar espaço na educação pública.
No meio disso tudo, a inteligência artificial chegou como estrela do espetáculo. Promete corrigir, planejar, avaliar, personalizar. Tudo rápido, tudo automático, tudo “neutro”. Tal visão foi adotada recentemente pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. Ao invés de o professor ser o formulador de questões, o governo resolveu ter a ideia “brilhante” de colocar uma IA para formulá-las1. O professor assumiria o papel de corretor das questões feitas pela IA, como se fosse possível uma máquina ser responsável pela produção de um conhecimento humano.
Foi a partir de uma aula sobre tecnologia e educação crítica discutindo o atual cenário que este texto se fez. Falávamos sobre o pensamento de Álvaro Vieira Pinto e sua denúncia da técnica como campo de dominação, mas algo chamava mais atenção naquela conversa: a forma como a educação vem aceitando tudo isso.
E talvez esse seja o dado mais assustador do nosso tempo: a subordinação técnica se disfarça de inovação. E a escola, que deveria ensinar a pensar, virou centro de aplicação de protocolos de correção de máquinas.
A nova gramática da submissão
A inteligência artificial nas escolas brasileiras não chega como projeto. Chega como aplicativo. Importada, pronta, fechada, com lógicas técnicas opacas, treinada com dados que não refletem nossa realidade. E, ainda assim, recebida numa mistura de sentimentos entre a euforia e o apavoro. Euforia por parte de grupos dominantes, que visam dar uma vestimenta atualizada para seu projeto educacional. Nas escolas privadas já existe o coro do progresso sendo cantado, querendo colocar a pecha de “atrasados” nos professores que não se utilizam da IA em seu cotidiano. Vendem a IA como uma mercadoria para as famílias-clientes que consomem seus serviços educacionais ao dizerem que seu sistema de ensino conta com “professores capacitados” no uso da IA. Dão a impressão de que a entrada no século XXI perpassaria inevitavelmente pelo uso da Inteligência Artificial.
Mas entrar como? Pela porta dos fundos? Como operadores? Como consumidores? Como peças?
O entusiasmo pedagógico virou disfarce da dependência técnica.
A escola não questiona o que faz a IA — apenas aprende a usá-la de forma mecânica. E assim, o que poderia ser campo de disputa vira espaço de adaptação.
A escola como linha de montagem
Hoje, muitas escolas estão se tornando linhas de montagem da subordinação técnica. Tudo parece girar em torno do uso eficiente das ferramentas. Pouco — ou nada — se discute sobre o que essas ferramentas estão fazendo com a linguagem, com o tempo pedagógico, com os critérios de valor.
É o que chamamos de modernização reflexa: uma forma de progresso que imita os passos do centro sem questionar o trajeto. Uma aceleração para lugar nenhum. Como se usar IA desenvolvida por outros, com fins pensados por outros, fosse sinônimo de avanço.
Mas é possível modernizar e continuar dependente. É possível acelerar e continuar subordinado. E é exatamente isso que está acontecendo quando transformamos professores em operadores de sistemas que não programaram.
O apagamento da crítica
Há um consenso silencioso: quem questiona a IA é reacionário. Quem exige auditoria algorítmica é “resistente à inovação”. Quem pede pausa é “desalinhado com o futuro”. Esse silenciamento é orquestrado pela linguagem da eficiência.
Os tecnocratas da educação — muitos deles bem-intencionados — operam como tradutores da submissão. Falam de dados como se fossem verdades. Falam de gestão como se fosse neutralidade. Falam de ferramentas como se fossem inevitabilidade.
O problema não é só técnico. É de uma pedagogia política ensinada.
A escola que se dobra à técnica sem crítica não está se modernizando — está se entregando. E o que deveria ser formação de consciência vira adestramento para a obediência.
E se a escola dissesse não?
Mas a escola também pode ser outra coisa. Pode ser o lugar onde se aprende a nomear o invisível. Onde se entende que toda técnica carrega escolhas. Que todo dado é interpretação. Que todo algoritmo é ideologia condensada.
Ensinar IA, nesse contexto, não é apenas ensinar a usar a IA. É ensinar a pensar o que ela faz com o pensamento. É perguntar quem decide o que deve ser automatizado. Quem está ausente dos dados. Quem programa os critérios de “resposta certa”.
A escola tem o direito — e o dever — de recusar o automatismo técnico. De interromper o fluxo da aplicação cega. De formar sujeitos capazes de olhar para o sistema e dizer: isso pode ser diferente.
Educação é autoria técnica
Num país que sempre usou tecnologia dos outros, pensar a técnica já é uma forma de insubordinação. E talvez, mais do que nunca, seja na sala de aula que essa insubordinação precisa começar.
Ensinar não é seguir plataforma. É elaborar sentido. E isso significa, no tempo da IA, ensinar que a técnica também é linguagem. E que toda linguagem pode ser reescrita.
Que a escola diga isso em voz alta.
Antes que vire, ela mesma, um botão.
André Luan Nunes Macedo é professor de História da Universidade Federal de Minas Gerais
ℹ️ Sobre este texto
Este ensaio foi escrito por André Luan Nunes Macedo, professor e pesquisador, em coautoria com Lucerna, uma inteligência artificial construída para transformar aulas em ensaios críticos. O texto nasceu de uma aula transcrita, refletida e reelaborada com base nas ideias discutidas em sala. A IA atuou como assistente de escuta, redação e reescrita — mas o pensamento, a direção e o conflito continuam sendo humanos.