A escalada do conflito no Oriente Médio traz novamente à discussão a possibilidade de um conflito nuclear. Em ataque para desmantelar o suposto programa nuclear iraniano de enriquecimento de combustível físsil com fins armamentistas (e lembramos da “desculpa” para a invasão do Iraque em 2003 para desarmar tal país de armas de destruição em massa), bombas de ataque a bunker foram lançadas pelos Estados Unidos da América, sob o argumento de “uso preventivo da força”. Neste ensaio, não vamos discutir a ilegalidade do uso da força (ius ad bellum), mas indicar que há interpretação jurídica possível para determinar que até o uso de armar nucleares neste específico ataque poderia estar estritamente dentro da legalidade.
Sim, leitor, mesmo com os fortes argumentos sobre a completa imoralidade de que algum país possa atacar outro apenas pela presunção de existir um programa de desenvolvimento de energia atômica, os EUA foram buscar as casus belli – ter Justa Causa; ser Autoridade Competente; ser o Último Recurso; ter Objetivos Limitados; e haver Probabilidade de Sucesso. Se a legítima defesa preventiva não é visada pelo artigo 51 da Carta da ONU, que exige uma agressão prévia, a já reiterada conduta de grandes potências (e aqui, recordamos também o conflito da Rússia e Ucrânia, tanto em 2014, quanto a atual) parece ter consolidado a via de acesso de tais Estados à indicação de um amplo conceito para a legítima defesa preventiva. A jurisprudência que baseia a doutrina já tem duzentos anos, pela qual o delito (e não o ataque armado) deve ser anterior. O desenvolvimento do programa nuclear com supostos fins bélicos seria o delito anterior. Na sentença arbitral do caso Caroline, de 1837:
“O exercício do direito inerente de legítima defesa depende de um delito anterior, um ato ilegal que apresenta um imediato, grande perigo, a um direito essencial ou real de um Estado. Quando essas condições estão presentes, os meios usados devem ser proporcionais à gravidade da ameaça ou do perigo”.
Se o recurso a uma arma tática nuclear fosse a única alternativa militar colocada à disposição, para “obliterar o programa nuclear iraniano”, os Estados Unidos teriam empregado tais armas, e teriam uma jurisprudência da Corte Internacional de Justiça ao seu lado. A Assembleia Geral da ONU, por intermédio da Resolução 49/75 K de 15 de dezembro de 1994, requereu parecer jurídico sobre a questão de saber se “é permitido em direito internacional recorrer à ameaça ou ao emprego de armas nucleares em qualquer circunstância”.
Tradicionalmente, a licitude das armas nucleares é dos poucos assuntos do direito internacional em que os Estados afirmar estar diante de uma ausência de proibição, presumindo a liberdade de seu uso decorrente de sua soberania. No voluntarismo extremo, consagrada na centenária decisão do caso Lótus, apenas uma proibição expressa do direito internacional (por uma regra convencional ou por um costume estabelecido)A seria capaz de impedir o uso de armas nucleares no caso de conflitos armados.
Se a Corte decidiu estar impossibilitada de encontrar uma proibição especifica da arma nuclear, esta declara sua “incompatibilidade geral” com o direito humanitário, cuja proteção produz seus efeitos independentemente de prescrição de cada comportamento e de cada infração. A CIJ ainda descartou as regras que ela considerava pouco pertinentes ou inaplicáveis à questão colocada: regras de direitos humanos; o crime de genocídio; ou normas ambientais.
Empós declarar que o uso de armas nucleares não é permitido nas situações em que o uso da força não é permitido, (em caso de violação do art. 2 § 4º da Carta da ONU), a CIJ entra no espinhoso da legítima defesa, que estaria condicionada a três fatores: “esse direito somente pode ser exercido se o Estado interessado foi vítima de uma agressão armada, e mesmo assim, ela é condicionada à proporcionalidade”, seguindo a sua jurisprudência do caso Atividades Militares e Paramilitares. Como vimos, a agressão armada já não é mais elemento chave. No parecer, a questão era centrada na legitima defesa como resposta a um ataque com armas convencionais, ou a legítima defesa nuclear a um ataque também nuclear. Tal atitude seria, claramente, infundada perante o princípio de proporcionalidade, e apresenta um interesse particular aos Estados não dotados de armas nucleares.
A Corte decidiu que “o princípio da proporcionalidade não pode, por si só, excluir o recurso às armas nucleares na legítima defesa em todas as circunstâncias”. Todavia, acrescenta que “a própria natureza da arma nuclear e os riscos graves que lhe são associados são considerações suplementares que devem consideram os Estados que crêem poder exercer uma resposta nuclear em legítima defesa respeitando o princípio da proporcionalidade”. Ressaltamos, a decisão leva ao próprio Estado indicar se o uso da arma nuclear é proporcional ou não.
A Corte se lança, em seguida, na busca das normas internacionais ligadas ao uso de armas de diversas categorias, para chegar à conclusão de que não existe prescrição convencional proibindo ou autorizando expressamente o uso das armas nucleares. Além de recordar, ao tratar do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TPN), de que “os Estados dotados de armas nucleares se reservaram o direito de recorrer a essas armas em certas circunstâncias”.
Estudando o costume internacional, a CIJ determinou a existência de certos princípios reguladores da conduta das operações militares, declarando que “parte do direito internacional humanitário convencional sem sombra de dúvidas se tornou parte integrante do direito internacional costumeiro e é o direito aplicável aos conflitos armados”.
As potências nucleares argumentaram que se deve levar em conta as necessidades militares dos Estados durante um conflito armado. O princípio de direito humanitário de não se provocar maus supérfluos ou sofrimentos inúteis aos combatentes “não proíbe o uso de uma arma capaz de causar grandes sofrimentos, salvo se supérfluos […] e [a utilização da arma nuclear] não é proibida na medida em que os maus que ela causaria são necessários na ótica de um objetivo militar legitimo”.
O Comitê Internacional da Cruz Vermelha, em carta à CIJ, indicou que um ataque seria lícito não apenas se não resultasse em danos excessivos com relação à vantagem militar obtida, mas ele “deve ser dirigido contra um objetivo militar, com meios que não excedam o objetivo mas sejam adaptados a sua simples destruição, e os efeitos dos ataques devem ser limitados […], e as perdas e danos civis incidentes não sejam excessivos”.
Assim, a CIJ refuta a tese da ilicitude per se das armas nucleares, afirmando, que “a ameaça ou uso de armas nucleares seriam geralmente contrários às regras de direito internacional aplicáveisnos conflitos armados, e, especialmente, aos princípios e regras do direito humanitário”, porém seu uso poderia ser lícito no caso de uma “circunstância extrema de legítima defesa”. A Corte acredita que o direito humanitário pode ser suspenso ou descartado quando a “sobrevivência do Estado” estiver em jogo.
No caso do ataque ao Irã, as casus belli para iniciar o ataque preventivo encontrariam, posteriormente, se necessário fosse para atacar o “objetivo militar legítimo” o ius in bello autorizativo do uso de arma nuclear, posto que o alvo seria isoladamente atacado, sem danos colaterais para a população civil – já que o bombardeio se deu na instalação subterrânea com alta precisão. Repise-se, o ataque seria proporcional, e a sobrevivência do Estado de Israel é o que estaria convalidando a extrema ação de legítima defesa.
Os resultados jurídicos práticos de uma decisão de leitura complicada e sinuosa – tal como afirmou o Juiz Bravo, em sua opinião dissidente – agora são desastrosos, pois na confrontação de valores máximos do direito internacional, o imperativo da sobrevivência do Estado soberano (israelense) acabaria neste conflito sobressaindo ao direito de sobrevivência e dignidade da pessoa humana.
Thiago Zanini é Secretário Municipal de Tecnologia da Informação em Contagem.