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Octavio Amorim: “Lula se fortalece, mas precisa reforçar frente democrática”

Entrevista Octavio Amorim diz que presidente deve manter união de forças para buscar bons resultados

Valor Econômico, 12/01/2023

O diagnóstico do cientista político Octavio Amorim Neto sobre o terrorismo de domingo em Brasília passa por diferentes esferas: política, militar e diplomática. No campo político, o professor da Escola de Administração Pública e de Empresas (Ebape) da FGV do Rio avalia que o presidente Lula saiu fortalecido do 8 de janeiro, mas precisa aproveitar o momento para reforçar “o caráter de frente democrática” do governo e entregar bons resultados econômicos e sociais.

“Bolsonaro está isolado nacional e internacionalmente, mas continua com base social expressiva. Essa base poderá ser uma alavanca importante para ele se o governo não entregar bons resultados em termos de política econômica, social e de defesa da democracia”, afirma o professor.

Estudioso das relações entre a política e as Forças Armadas, Amorim diz que o ministro da Defesa, José Múcio, “queimou a largada” ao alegar que as manifestações nas portas dos quartéis eram democráticas. “A leitura do ministro se revelou completamente equivocada e isso tira a autoridade dele”, observa, ao pintar o chefe da pasta como um dos perdedores do episódio.

Lula, observa o cientista político, tem uma dificuldade comum aos demais presidentes desde a rede-mocratização, que é a falta de “fraquejo e autoconfiança” para lidar com as Forças. A exceção foi o capi-tãojair Bolsonaro, que o fez, contudo, de forma distorcida ao politizar os militares e militarizar a política.

Na arena global, Lula se depara com um “coco de coqueiro baixo”, classifica Amorim. Não tende a ter obstáculos para exercer a diplomacia, dada a boa vontade do mundo com o Brasil no pós-Bolso-naro. Veja a seguir os principais pontos da entrevista ao Valor: Valor: Houve omissão, conivência por parte da PM do DFe das Forças Armadas no domingo?

Octavio Amorim: Da PM do DF, houve omissão e, em alguns momentos, confraternização com os golpistas. Com relação às Forças Armadas, a situação é mais nebulosa, mas obviamente houve tolerância enorme com as manifestações e os acampamentos em frente aos quartéis e às unidades militares.

Valor — Como fica a imagem das Forças?

Amorim: Fica associada ao bol-sonarismo, ao golpismo e ao radicalismo de seus apoiadores. Por outro lado, houve um silêncio do Alto Comando durante o domingo, o que é positivo porque significa que não houve apoio explícito dos novos comandantes, ao contrário do que aconteceu sob Bolsonaro. Isso é positivo, mas a associação das Forças com o bolsonarismo ainda persiste. Esse vai ser um dos grandes desafios não apenas de Lula, mas de todas as forças democráticas que se uniram desde domingo: a separação institucional entre For ças Armadas e política partidária.

Valor — Passa a ser um problema para o novo governo?

Amorim: Essa é uma situação que sempre foi muito difícil para Lula, desde o primeiro mandato. Ele sempre respeitou as Forças, teve postura de consideração com elas, de aceitação das praxes militares, como a nomeação dos mais antigos para os comandos. No segundo mandato, investiu pesadamente nos projetos das Forças Armadas. Lula tem esse crédito a seu favor, mas, ao contrário do que fez na política externa, Lula nunca “presidencializou” a política de Defesa. Sempre foi deixada para o ministro da Defesa e para as três Forças, ainda que, sob Lula e Dilma Rousseff, tenha havido um grande avanço no controle civil sobre os militares. Apesar de todos esses avanços e do respeito que Lula teve pelas Forças Armadas, elas sempre foram um vespeiro para o presidente, que procurou se manter distante.

Valor — A dificuldade, então, não é inédita?

Amorim: Fernando Henrique foi assim também. Isso é uma marca dos presidentes desde a transição de 1985, uma herança do regime militar. A elite civil tem muita timidez, insegurança para lidar com as Forças e questões ligadas à Defesa. Diante dessa nova crise, da ameaça à democracia, da politização das Forças pelo bolsonarismo, da militarização da política, falta ao novo governo traquejo e autoconfiança para lidar com as Forças Armadas.

Valor — A indicação do Múcio para a Defesa foi para ter essa interlocução. Como avalia a atuação dele?

Amorim — A proposta inicial do Múcio, de dizer que os acampamentos se esvairíam naturalmente, fracassou. A ideia de nomeá-lo tinha uma intenção positiva, de pacificar as relações do novo governo com as Forças Armadas. Múcio, porém, não é um político com experiência em Defesa. Assim como os outros líderes políticos, não tem autoconfiança, traquejo. Pode ser que venha a aprender. Todos os problemas, que não nasceram agora, têm sido magnificados nesse contexto de crise gravíssima no início do mandato. A nomeação do Múcio dava sinal de que reformas que poderíam ser feitas para democratizar as relações civis-militares e restabelecer o controle civil ficariam para depois. Ao nomear Múcio, Lula sinalizou que queria pacificar as relações e que não investiría capital político para mudar o artigo 142 da Constituição, criar a carreira de analista civil dentro do ministério, investir esforços para proibir oficiais da ativa em postos civis na administração pública. Depois do lamentável 8 de janeiro, essa estratégia vai ter que ser repensada, e o governo Lula deverá investir mais capital político para reorganizar o setor de Defesa.

Valor — O ministro sai menor desse episódio?

Amorim: Múcio queimou a largada ao dizer que as manifestações eram democráticas e se esvairíam naturalmente. A leitura se revelou totalmente equivocada e isso tira a autoridade dele. Pode ser que a retome, mas é um dos perdedores do trágico 8 de janeiro. Agora, houve equívoco também no setor de inteligência. Importante relembrar que a área de Defesa e a de inteligência não tiveram equipes de transição nomeadas por Lula. Claro que era dificílimo o governo entrante dialogar com o pessoal do governo Bolsonaro nessa área, que era a mais radical, mas agora vê-se que a ausência cobrou um preço muito alto.

Valor — Faltou a Lula assumir o papel de comandante em chefe das Forças neste início de governo?

Amorim: Esse problema vem de longe. Por conta dos traumas do regime militar, presidentes civis não vestiram o manto de comandante em chefe. Com exceção de Bolsonaro, que o fez de forma totalmente equivocada e, em vez de assumir o manto para implementar uma política de Defesa, valeu-se da sua posição de comandante para politizar as Forças Armadas e militarizar a política. Foi uma distorção.

Valor — Legado da era Bolsonaro para as Forças pode ser a perda de credibilidade?

Amorim: Temos que esperar as pesquisas de opinião. Minha impressão é de que a popularidade das Forças continuará alta na opinião pública em geral, mas é fundamental levar em conta a opinião das elites políticas. São elas que decidem o orçamento e a política de Defesa. Acho que as Forças estão com a imagem dizimada aos olhos das forças políticas e também de outros setores das elites brasileiras — econômicos, acadêmicos, empresariais —, que passaram a ter muita desconfiança delas. Isso é um passivo, vai levar um tempo para as Forças recuperarem. É fundamental que os novos comandantes se esforcem nesse sentido, mas não sabemos como é a correlação de forças no Alto Comando. Esse é o problema de se ter as Forças Armadas no meio da arena política: as organizações militares são opacas, ao contrário dos partidos. O diálogo entre o Alto Comando e o novo governo parece ser ainda muito difícil. O resultado está aí: o 8 de janeiro, uma confusão generalizada.

Valor — Lula acertou ao decretar intervenção no DF?

Amorim: Claro. O DF, por lei, recebe do governo federal uma verba enorme para sua segurança, algo em torno de R$ 15 bilhões por ano. Para quê? Para ter uma polícia tolerante com golpistas, partidarizada em relação às grandes questões da República? O que é isso? Policiais tirando selfie enquanto as sedes dos três Poderes eram depredadas. Isso é a polícia da capital que é a mais bem paga do país e é paga pelo orçamento da União? Sem a menor sombra de dúvidas, a intervenção é plenamente justificada.

Valor — Lula teve uma vitória política depois disso tudo?

Amorim: A curto prazo, Lula se fortalece, sem dúvida. Mas, como o país continua muito dividido, a manutenção da popularidade e do apoio que tem de governadores, do Congresso e do Judiciário vai depender também do desempenho do governo em outras áreas. Não à toa, na segunda Lula já falava que queria que a agenda política não fosse totalmente dominada por questões de lei e ordem, de defesa da democracia; que o governo também tem que discutir política econômica, social, de saúde.

Valor — Manter o amplo leque de apoios e a ideia de união é decisivo para o futuro político do governo?

Amorim: Sim. A curto prazo o cenário político é bom para o governo, que enfrenta um problema muito hostil por conta da radicalização promovida por Bolsonaro e o bolsonarismo, mas Lula tem que aproveitar isso e entender que tem que fortalecer o caráter de frente democrática do governo. Novos setores devem ser incluídos para que a frente ampla realmente se constitua ao longo de 2023, garanta a estabilidade do governo, a defesa da democracia e a boa execução das principais políticas públicas, de modo que o governo entregue bens públicos palpáveis para a população. Até porque o apoio a Bolsonaro e às principais propostas do bolsonarismo continuam altos. Pesquisa Atlas mostrou que o apoio a uma intervenção militar para invalidar as eleições de 2022 chega a 36,8%. É uma minoria, mas uma minoria substancial.

Valor — Esse seria o tamanho real do bolsonarismo?

Amorim: Isso significa que há uma minoria substancial do país que apoia medidas autoritárias. Coisas radicalmente inconstitucionais, que seriam a morte da democracia. A situação do país ainda é complicadíssima. Esperava-se que o terceiro mandato de Lula seria muito difícil, mas as dificuldades chegaram muito antes do esperado. Esperava-se que aquele clima de congraçamento da cerimônia de posse daria lastro para uma navegação política por alguns meses. Uma semana depois, o ambiente foi destruído pelo bolsonarismo e agora precisará ser reconstruído. Lula tem que aproveitar essa crise para fortalecer o caráter de frente ampla e democrática do governo.

Valor — Quais são os simbolismos e o impacto real da reunião dos 27 governadores com Lula?

Amorim: Para Lula, isso foi muito bom; para a democracia, idem, porque significa não só a retomada do diálogo do governo federal com a federação, abolido por Bolsonaro, mas também de um diálogo entre esquerda e direita, também abolido no governo anterior. Tivemos outros presidentes populistas de extrema direita na nossa História, Jânio Quadros e Fernando Col-lor. Duas experiências também radicais e fracassadas, mas os dois dialogaram com a esquerda. Bolsonaro é o presidente mais radical da História democrática brasileira. Nunca houve um presidente que se recusasse peremptoriamente a ter qualquer diálogo com o campo político oposto. Bolsonaro é único, é uma experiência muito radical.

Valor — Como avalia a situação política de Bolsonaro hoje?

Amorim: Ele ainda tem apoio social, mas está isolado. As pesquisas mostram que a população massivamente não apoiou o assalto à República e à democracia. Bolsonaro está isolado nacional e internacionalmente, mas continua com base social expressiva. Essa base ainda poderá ser uma alavanca importante para ele se o governo não entregar bons resultados em termos de política econômica, social e defender a democracia. A incerteza é muito grande hoje no Brasil. A democracia venceu de novo, mas temos um regime democrático permanentemente ameaçado por forças autoritárias com apoio social substancial.

Valor — Além da responsabilização política de Bolsonaro, vê espaço para responsabilização jurídica?

Amorim: A responsabilidade política é óbvia. A jurídica, levá-lo às barras dos tribunais, vai ser muito mais difícil. Há todo um universo de leis que podem lhe dar algum amparo legal.

Valor — Explique melhor o porquê da responsabilidade política.

Amorim: Desde o primeiro dia do mandato dele até o último, mobilizou seus apoiadores para investirem contra as instituições e a Constituição. E continua fazendo isso lá da Flórida. Acontece que ele, ao contrário de Collor e Jânio, tem uma base social muito sólida e uma relação muito mais íntima com as Forças Armadas, que se transformaram novamente num ator político doméstico fundamental. Ele fez tudo isso e não pagou o preço que deveria ser pago porque tem apoio político e social substancial, ainda que minoritário. Se esse apoio começar a se diluir, aí a situação não apenas política, mas também jurídica, deve piorar.

Valor — Na diplomacia, a repercussão de domingo deixou o caminho ainda mais pavimentado para Lula reforçar a imagem de reinser-ção do Brasil no mundo?

Amorim: Sem dúvida. O mundo quer que o governo Lula dê certo. Até governos da China e da Rússia se manifestaram contra o assalto à República. O apoio que o Brasil teve no domingo foi maior do que o que Lula teve quando ganhou a eleição. A área de política externa é caracterizada hoje pela expressão “coco de coqueiro baixo”. Vai ser muito fácil para o governo Lula extrair benefícios de uma diplomacia rigorosa em defesa dos interesses nacionais e da defesa da democracia no plano global.

Octavio Amorim é cientista político.

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