A crise da educação não é uma crise; é projeto
Darcy Ribeiro
O governo de Minas está pressionando mais de 700 escolas estaduais a aderirem ao modelo cívico-militar — uma proposta apresentada como solução mágica para os problemas da educação. Tentou fazer essa adesão a fórceps e recuou, vendo que enfrentaria grandes resistências dos professores. A justificativa oficial é conhecida: melhorar a “disciplina” e a “segurança”. Mas por trás dessa fachada, o que se esconde é uma tentativa de transferir a responsabilidade do Estado para os ombros da categoria docente e da comunidade escolar, sem enfrentar o que realmente sabota o direito à educação.
Não se trata aqui de desqualificar a importância da disciplina ou da boa convivência escolar. O que está em jogo é entender quem ensina, em que condições e com que projeto de país. A escola pública sofre com a ausência de tempo integral, com salas superlotadas e com uma evasão silenciosa dos profissionais da educação. Desde 2010, as licenciaturas vêm perdendo estudantes, ou seja, formamos menos professores(1) do que o necessário.
De acordo com o Censo da Educação Superior de 2022, 58% dos estudantes que cursam licenciatura abandonam a carreira antes da formatura. Dos que se formam, somente um terço atua na docência. Segundo o pesquisador do INEP Luiz Carlos Zalaf Caseiro, entre 2014 e 2019 a taxa de ociosidade das licenciaturas em instituições públicas foi de cerca de 20%, enquanto em 2021 esse percentual subiu para 33%(2). Se analisamos a década de 2010-2020, houve uma redução de 26% de matrículas no período. Portanto, hoje existem cada vez menos jovens desejando a carreira docente devido à desvalorização da carreira e à baixa remuneração e ascensão profissional, o que nos traz um alerta: o país enfrenta um “apagão docente” devido ao desrespeito estatal generalizado com relação à carreira.
A nível nacional, houve um aumento de 55% de contratação de professores temporários, atingindo a triste marca de 356 mil professores em situação precária de trabalho(3). Quanto aos professores efetivos, hoje o país conta com 320 mil professores. Ou seja, temos mais professores com contratos ainda mais precarizados do que com mínimas condições de estabilidade para exercerem suas funções. De acordo com o estudo do grupo Todos pela Educação, entre 2013 e 2023 houve uma redução de 57 mil docentes nas redes estaduais. Segundo este mesmo levantamento, quanto maior é o tempo de professores em situação temporária, menor é o desempenho dos alunos nas avaliações nacionais como o próprio Saeb, “mesmo levando em consideração fatores como o nível socioeconômico”(4).
Minas Gerais levou a precarização da carreira docente às últimas consequências. As redes estaduais convivem com quadros cada vez mais precarizados: em Minas, estima-se que mais de 80% dos professores não são concursados(5) (!).
Nesse sentido, como podemos falar em ordem e segurança sem valorização profissional? Vamos inverter a lógica: um policial conseguiria garantir segurança pública sem ser efetivado, ganhando um salário incompatível e sem infraestrutura mínima? Pois é exatamente isso que o governo Zema espera hoje de professoras e professores.
Do ponto de vista comparativo, Contagem resiste à precarização. O governo Marília não pode em hipótese alguma ser comparado com o governo Zema. Se Minas Gerais se espelhasse em Contagem, provavelmente teríamos melhorias significativas. Conforme explicitamos em um texto publicado recentemente neste Blog(6), “ […] Contagem hoje conta com um índice 6 de equipamentos de tecnologia disponíveis nas escolas públicas municipais e índice 7 de estrutura de equipamentos culturais e esportivos, de acordo com a Plataforma Cidades Inteligentes, do Ministério da Ciência e Tecnologia. Lembrando que, de acordo com este índice, o número 7 é considerado o nível máximo, ou seja, de otimização”. Contagem também possui um dos melhores planos de carreira docente da Região Metropolitana de Belo Horizonte, contando com um quadro de concursados bem superior à média estadual. Em Minas, o salário inicial para um professor do estado, no cargo de Professor de Educação Básica (PEB), com jornada de 24h semanais, é de R$2.920,78, enquanto em Contagem, para a jornada de 22h30 semanais, R$ 3.652,36.
A melhoria do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica ainda é um desafio a ser encarado, mas ao que se percebe essa não é uma “jabuticaba contagense”, afinal de contas ele está levemente abaixo das médias estadual e nacional(7). Também devemos supor que se o estado de Minas Gerais não possui um bom plano de carreira, segue a máxima da pesquisa aqui mencionada, segundo a qual a precarização do trabalho docente é motivo estruturante para os baixos desempenhos nos exames nacionais, refletindo significativamente nos municípios, apesar dos esforços.
Se olhamos a comparação das médias das escolas municipais com as estaduais, as escolas dirigidas pela Secretaria de Educação do governo Marília estão a frente nos anos finais (4,8 contra 4,4) e no Ensino Médio (4,9 contra 3,7). No caso do Ensino Médio, poderíamos dizer que as FUNECs, patrimônio do povo de Contagem, seguram os índices relativamente próximos à média nacional.
Feito essa reflexão, é perceptível que Zema quer esconder a sujeira acumulada nos seus quase oito anos de governo para debaixo do tapete com essa propaganda enganosa do modelo cívico-militar, que claramente não responde a essa crise. Ao contrário, ele pode impor uma lógica de hierarquia e medo, enfraquecendo a autonomia pedagógica e silenciando o debate crítico nas escolas.
Dito isso é preciso fazer uma ressalva para não confundirem nossas opiniões com democratismo e elogio à baderna: como professores, jamais deixamos de prezar pela disciplina e ordem. Sempre queremos que nossos alunos respeitem os professores como uma autoridade em sala de aula. E quando falamos em autoridade, jamais confundimo-la com autoritarismo. Respeitar os mais velhos e aqueles responsáveis pela mediação da construção do saber deve ser uma premissa no cotidiano escolar.
Isso em nada quer dizer que precisamos de pessoas armadas nas escolas para conseguir ter uma segurança mínima. Fosse esse o caso, os Estados Unidos seria uma referência em educação. Lá as escolas públicas possuem detectores de metais e um reforço na segurança, além de ser uma sociedade que possui uma flexibilização do porte de armas. O que enxergamos é justamente o contrário: cada ano que passa, a sociedade estadunidense convive cada vez mais com ataques terroristas de todo tipo, sendo que grande parte deles é feita por seus alunos. Segundo dados do Washington Post, 383 mil estudantes estadunidenses presenciaram casos de violência armada em escolas nos últimos 25 anos(8), mais da metade da população da cidade de Contagem. Em uma década, a violência armada cresceu 794%, de acordo com os dados da K-12 School Shooting(9). No ano de 2022, foram registrados 304 casos(10). Comparando com o Brasil, tivemos 36 ataques a escolas entre 2002 e 2023, o equivalente ao número de ataques no ano de 2013 nos Estados Unidos!

Nesse caso, se fosse possível espelhar em um exemplo, seria melhor estudarmos mais a fundo a experiencia da Finlândia, que tem no seu currículo uma proposta de educação midiática para seus jovens, garante uma carreira docente mundialmente reconhecida e mantém um ambiente democrático em sua cultura escolar. Neste país, ser professor é uma das principais referências entre os jovens, à frente de profissões como medicina, direito e arquitetura (11). Do ponto de vista salarial, um professor do ensino médio recebe em torno de 3,832 euros, o equivalente a cerca de 12,5 mil reais. Se quisermos ir mais ao oriente, poderíamos também nos espelhar em exemplos como o da China. Do ponto de vista da formação continuada, um professor possui 68 dias por ano dedicado exclusivamente a ela(12). É também em Pequim que a Inteligência Artificial se tornou disciplina obrigatória em suas escolas de ensinos fundamental e médio, tanto no que diz respeito à compreensão como a sua aplicação, sendo esta dedicada para alunos de 15 a 17 anos(13).
Quando questionamos a forma do modelo de militarização das escolas, jamais queremos dizer que o profissional da segurança pública não deva ser um agente cidadão na construção da cultura escolar. Pelo contrário. Sabemos que as forças policiais podem dar importantes contribuições neste ambiente, como atores formadores deste processo, como já o fazem quando são acionados. Sabemos também que muitos jovens desejam seguir a carreira militar, buscando com isso uma ascensão social. Por isso, os militares sempre devem ser convidados para falarem sobre a experiência do que é ser um funcionário da segurança pública, seus direitos e deveres e os desafios em torno do que é garantir a harmonia social, evitando que jovens caminhem a trilha indesejada do crime organizado e das drogas. É a partir deste diálogo que construímos uma boa relação com os militares. Infelizmente, a militarização não nos parece ser um exemplo, haja visto que são os próprios educadores aqueles capazes de compreender os dilemas do seu cotidiano e das suas próprias dificuldades. Ter o militar como um agente pedagógico externo à escola contribui e reforça uma aliança com a sociedade civil. Tê-lo como um agente que militariza a escola contribui para o aumento das tensões e conflitos com a comunidade escolar.
Educação de qualidade exige investimento, diálogo e democracia. Exige concurso público, salários dignos, formação continuada e espaços escolares onde a comunidade se reconheça. A militarização da escola é uma forma de escapar dessas responsabilidades e transformar o fracasso do Estado em culpa individual do educador.
É por isso que precisamos resistir a essa proposta. Não aceitaremos que a escola vire palco de autoritarismo. A luta por uma educação pública, democrática e transformadora continua — e precisa do nosso compromisso coletivo.
Adriana Souza é professora de História e vereadora por Contagem
André Luan Nunes Macedo é professor da área de Ensino de História da Universidade Federal de Viçosa
(*) Gostaríamos de agradecer ao companheiro Keith Brauer, pela revisão e inclusão dos dados sobre a rede municipal de Contagem.
REFERENCIAS
(1) Ver: Apagão docente: o que está acontecendo com as licenciaturas no brasil? | Nexo Políticas Públicas
(2) Idem.
(3) Número de professores concursados cai ao menor patamar em 10 anos | CNN Brasil
(4) Idem.
(5) Ver: MG tem 80% dos professores estaduais contratados e lidera ranking nacional; alunos e docentes reclamam de precarização | O TEMPO
(6) André Luan: Considerações sobre o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial. O que Contagem tem a ver com isso? — Blog do José Prata e Ivanir Corgosinho
(7) Contagem: Ideb | QEdu
(8) Quase 400 mil crianças presenciaram ataques a escolas nos EUA
(9) Violência armada em escolas cresceu 794% em uma década nos EUA
(10) Idem.
(11) Ver : A enorme diferença entre ser professor na Finlândia e no Brasil. Por Claudia Wallin, de Helsinque
(12) Ver: A valorização do professor na sociedade chinesa – Ibrachina
(13) Ver China torna ensino de IA obrigatório nas escolas de Pequim e mira liderança global do setor | Inteligência Artificial | Época NEGÓCIOS