Vivemos um momento histórico em que as fronteiras entre tecnologia e política se embaralham de forma profunda e irreversível. A ascensão da Inteligência Artificial (IA) como força motriz da nova economia global não é apenas uma questão técnica: é uma questão política, ideológica e, sobretudo, de projeto de sociedade. Frente a esse cenário, o movimento sindical brasileiro, através da Central Única dos Trabalhadores (CUT), tem buscado se antecipar a esse debate com uma proposta ousada e estratégica: o projeto CUT Inteligente.
Trata-se de uma iniciativa construída pela Secretaria Nacional de Formação da CUT, em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), com o objetivo de formar lideranças sindicais e sociais sobre os impactos da IA no mundo do trabalho. O curso, previsto para ocorrer até dezembro de 2025, propõe não apenas o domínio técnico das ferramentas digitais, mas a construção de uma visão crítica, coletiva e popular sobre os rumos dessa tecnologia.
Essa formação vem sendo consolidada desde 2024, por meio do ciclo “Inteligência Artificial – Impactos e Desafios para o Mundo do Trabalho e para a Organização Sindical”, realizado virtualmente entre outubro e dezembro, com debates semanais conduzidos por nomes como Atahualpa Blanchet (IEA-USP), Adriana Marcolino (DIEESE), Caroline Coelho (CSA-USP), além do neurocientista Miguel Nicolelis e representantes internacionais como a UGT da Espanha. A programação foi encerrada com uma oficina sobre engenharia de prompt, voltada à apropriação prática das ferramentas de IA por parte da militância, que tive o prazer e a honra de conduzir.
O mundo do trabalho sob os algoritmos
A digitalização acelerada tem criado novas formas de exploração. Aplicativos de entrega, plataformas de transporte, mecanismos de produtividade automatizados: tudo isso tem alterado radicalmente o modo como as pessoas vivem do seu trabalho. Mas a Inteligência Artificial vai além. Ela estrutura sistemas de controle, faz leituras preditivas visando a antecipação de cenários, molda comportamentos e reorganiza cadeias produtivas inteiras.
Segundo dados recentes da Organização Internacional do Trabalho, entre 28% e 36% dos empregos na América Latina estão em risco de transformação profunda devido ao avanço da IA generativa (1). O impacto é ainda mais severo entre mulheres jovens, urbanas e com escolaridade média ou alta — no Brasil, o risco de substituição de mulheres é o dobro em relação aos homens.
Ou seja: estamos lidando com uma transformação estrutural das relações de trabalho, e não podemos mais ser espectadores dessa transição. Precisamos intervir.
Dados: a nova commodity do capitalismo digital
Se no século XIX o centro da disputa era a terra, e no século XX o petróleo, hoje a disputa gira em torno de algo supostamente invisível: os dados (2). Toda ação digital – um clique, uma localização, uma pesquisa – gera informações que são capturadas, processadas e transformadas em lucro por corporações como Google, Amazon, Tencent, Alibaba e outras.
Esses dados alimentam as IAs generativas, moldam os algoritmos de consumo, segurança e até governança. Em tempos de adultização e digitalização da pedofilia como nunca antes presenciamos, não é exagero dizer que a soberania digital, regulação das big techs e da IA já é uma das questões centrais do século XXI. Por isso, o domínio sobre a curadoria de dados – isto é, saber coletar, organizar, interpretar e proteger os dados – precisa ser uma competência política das organizações políticas populares.
Não podemos deixar que essa inteligência seja monopolizada por empresas do Vale do Silício ou pelos aparelhos de Estado de potências hegemônicas. É necessário desenvolver um olhar crítico e desnudado sobre as ferramentas, como fez Leonardo Da Vinci ao dissecar os corpos humanos para entender sua anatomia. Precisamos conhecer profundamente os mecanismos da IA para poder disputar seus usos, questionar seus limites e construir alternativas.
Regulamentar a IA é também pauta da classe trabalhadora
Em 2023, a CUT e outras centrais sindicais brasileiras lançaram uma nota em apoio ao Projeto de Lei 2.338/2023(3), que trata da regulamentação do uso da Inteligência Artificial no Brasil. O documento propõe que qualquer tecnologia baseada em IA seja orientada por princípios como transparência, rastreabilidade, supervisão humana e respeito aos direitos fundamentais, buscando garantir que esses sistemas não reforcem desigualdades históricas nem sejam usados contra os próprios trabalhadores.
No cenário internacional, a Declaração de São Luís (2024)(4) — resultado dos encontros paralelos ao G20 promovidos pelos grupos L20, C20, T20 e W20 — propôs diretrizes para uma transformação digital inclusiva. O texto defende que as inovações tecnológicas sejam reguladas por acordos coletivos de trabalho, e que a implementação da IA respeite os princípios da OIT e os direitos sindicais.
Essas iniciativas revelam que a disputa pelo futuro da tecnologia é também uma disputa pelo presente da política.
A formação política como chave da disputa tecnológica
O projeto CUT Inteligente aponta para algo que defendemos com convicção: formar quadros políticos e sindicais com capacidade de ler criticamente o tempo presente, incorporando o conhecimento técnico à análise política. Essa é uma das tarefas mais estratégicas da nossa geração.
Na cidade de Contagem, essa pauta precisa estar na ordem do dia. Defendemos a realização de formações políticas sobre IA voltadas especialmente para o Partido dos Trabalhadores, de forma que seus quadros possam se tornar militantes capazes de consolidar uma “dimensão científica” da política por meio da análise de grandes dados através da mediação com a inteligência artificial.
Essa dimensão científica não pode ser um luxo teórico. É uma necessidade prática, especialmente num tempo em que as narrativas são disputadas por dados, e as massas são orientadas por sistemas inteligentes. O Partido Comunista Chinês, maior partido político do planeta, tem feito disso uma de suas principais estratégias: usar a ciência, inclusive a ciência dos dados, como ferramenta para conhecer melhor o povo, orientar políticas públicas e construir uma linha de massas eficaz.
Essa perspectiva, a nosso ver, é inspirada na visão de Deng Xiaoping, segundo a qual seria necessário “perseguir a verdade por meio dos fatos”. Ou seja, quanto mais sabemos sobre uma determinada realidade, quanto mais conseguimos analisar o real nas suas mais diversas posições, contradições e dimensões, mais qualificada fica a nossa tomada de decisão. Isso corrobora com a fala de Hu Jintao durante Resoluções da Terceira Plenária do Comitê Central para a Inspeção Disciplinar em janeiro de 2004: “ O espírito científico que penetra o materialismo dialético e o materialismo histórico está ligado a ser realista e pragmático” [tradução livre do autor] (PCCh, 2012, p.44).
Tal espírito nos parece conectar em algum grau com a noção de Douglass North – um institucionalista relativamente distante dos intelectuais filiados ao materialismo histórico – segundo a qual nosso olhar sobre a realidade é sempre composto de ideologia e subjetividades, e o que nos limita a ter uma “escolha racional ótima” advém dos nossos recursos informacionais escassos e historicamente condicionados ao analisarmos o real. Com o advento da IA e a possibilidade de fazermos uma curadoria de grandes dados, podemos encurtar os graus de subjetividade em nossas leituras, construindo um caminho, dialogando aqui com um termo de North, de “racionalidade processual” (GALA, 2003; NORTH, 1993) que possua maior objetividade.
Ao citar o PC Chinês, não quero de forma alguma endeusá-lo ou concordar com todas suas práticas. Mas fato é que é preciso estudar essa experiência mais a fundo, sem enxergá-la com as lentes maniqueístas de certo pensamento ocidentalizante, que por vezes contribui para uma decodificação política muito rasteira e precipitada sobre a experiência chinesa. Como pode uma experiência desta envergadura conseguir criar grandes transformações econômicas e impulsionar de forma massificada a melhoria das condições de vida das maiorias? Como pode a China conseguir criar uma infraestrutura de inteligência artificial que é acompanhada pari passu às transformações da então maior potência tecnológica do planeta Terra, como são os Estados Unidos da América? De acordo com Eric X. Li, um venture capitalist chinês, hoje o PC tem uma estrutura de recursos humanos interna de fazer inveja a qualquer empresa estadunidense(5).
Sem dúvidas, essa estrutura tem consigo um complexo de alta tecnologia a sua disposição para qualificar sua tomada de decisão. A IA não está fora disso, uma vez que ela pode nos ajudar a entender as tendências sociais com mais precisão, identificar as angústias e desejos da população, e construir políticas mais adequadas ao nosso tempo. Grosso modo, pode ser uma aliada para formular uma nova linha de massas, enraizada nas novas contradições do século XXI.
Conclusão: disputar o futuro exige formação no presente
Formar-se em Inteligência Artificial não deve ser luxo acadêmico ou uma competência vinculada somente aos dirigentes aliados às grandes forças de mercado, em especial àquelas vinculadas ao sistema rentista. Deve ser uma tarefa, dialogando com Gramsci, do “intelectual orgânico” do século XXI. Portanto, estudar IA a partir do pensamento dos “de baixo” deve consolidar um ato de resistência e de projeto de futuro. O projeto CUT Inteligente acerta ao colocar essa pauta como prioridade para o sindicalismo. Mas essa semente precisa ser multiplicada nas bases, nos partidos, nos territórios.
Precisamos de uma militância que compreenda a IA não como fetiche, mas como ferramenta a ser disputada. Uma militância que una a crítica política à compreensão técnica. A luta pelo trabalho digno, pela justiça social e pela soberania nacional passa, hoje, por entender e disputar a Inteligência Artificial. E essa luta, como sempre, se faz com formação, organização e construção de uma nova maioria política.
André Luan Nunes Macedo é professor de História Econômica e Ensino de História da Universidade Federal de Viçosa.
NOTAS
(1) Para maiores informações, ver: Trabalho digno na era da IA: um teste para os direitos humanos.
(2) Recomendo mais uma vez a entrevista de Paulo Gala com Caetano Penna sobre o tema: O plano de IA do Brasil.
(4) Para maiores informações, ver: Declaração de São Luís: recomendações estratégicas para o futuro da Inteligência Artificial
(5) Para começarmos a entender melhor o sistema político chinês, recomendo esse Ted Talks: Eric X. Li: Um conto de dois sistemas políticos.
DECLARAÇÃO:
Para ajudar a montar o sentido organizativo deste texto, contei com uma assistente de inteligência artificial que programei para me ajudar a pensar textos (Lucina). Ela me deu uma linha geral que foi aprofundada na medida em que fazia as edições. A tarefa de inclusão das referências das notícias e da pesquisa foi sugerida por ela. Entretanto, coube a mim todo o trabalho de curadoria e edição final.
Sugestões de leitura:
Sugiro leitura do livro “Serving the People: The Governance Philosophy of the CPC”, de 2012. Não consegui encontrá-lo em português. Mas para aqueles que queiram entender melhor a visão do PC Chinês através das lentes de quem o constrói, acho uma boa pedida.
Referências bibliográficas:
GALA, P.. A teoria institucional de Douglass North. Brazilian Journal of Political Economy, v. 23, n. 2, p. 276–292, abr. 2003.
GRASMSCI, A. Os intelectuais e a organização da cultura.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.
NORTH,D. Institutional Change and Economic Performance. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.