Bolsonarismo se aproveitou do descontentamento de parte da população para conquistar adeptos em diferentes estratos sociais, diz analista
Valor Econômico, 12/01/2022
Nos ataques de domingo, em Brasília, apoiadores radicais do ex-presidente Jair Bolsonaro fizeram questão de exibir o rosto nas redes sociais, mas decifrar a face do extremismo no país ainda é uma tarefa difícil. Afinal, o que pensam radicais criminosos que se orgulham de incendiar os símbolos da democracia brasileira? E como cidadãos comuns se tornam terroristas?
“Existe muito ressentimento nessa trajetória”, diz o psicanalista Christian Dunker, professor de psicologia clínica da Universidade de São Paulo (USP). O bolsonarismo se aproveitou do descontentamento de parte da população — cujos projetos pessoais de ascensão econômica foram frustrados pela crise global — para conquistar adeptos em diferentes estratos sociais, afirma Dunker. Essas pessoas, que se consideram desprezadas ou injustiçadas pelo Estado, viram no movimento de extrema direita o que seria um raro acolhimento de suas queixas, num endosso à desconfiança nutrida por instituições como o Congresso e a Justiça.
O discurso de extrema-direita também ganhou força em meio ao desconforto crescente de segmentos da população com avanços sociais que passaram a desafiar convenções de gênero, etnia, orientação sexual, classe econômica etc, observa Dunker.
Ao capturar essas inquietações e pregar o retorno aos valores mais conservadores como resposta, o bolsonarisno se posicionou como portador de uma verdade única e imutável em um mundo no qual tudo o mais é mentira ou dissimulação.
“Essa certeza absoluta é o que, na psicanálise, chamamos de paranoia”, diz o psicanalista Daniel Kupermann, professor do Instituto de Psicologia da USP. É uma ameaça à democracia. “Se alguém é o único portador da verdade, a lógica democrática — do voto soberano, da escolha pela maioria, da alternância de poder — não funciona mais”, afirma o especialista. “A certeza paranóica é a de que só você e seu grupo sabem o que é certo. E que, por isso, cabe a você impor a verdade, se necessário pela violência”.
Quanto maior a angústia vivida pela sociedade, mais o discurso conservador tende a ser apaziguador para o indivíduo, diz Kupermann, o que o torna mais atraente “Os últimos anos foram muito difíceis, com as pessoas perdendo emprego, familiares e amigos, além do receio de perder a própria vida enfatizado pela covid-19”, diz o psicanalista.
Em cenários como esse, o discurso progressista é menos alentador porque traz à tona inquietações profundas, que se somam à angústia dominante. “Por exemplo, é preciso perguntar o que é um homem e qual o papel da masculinidade. Já no discurso conservador, que tem menos códigos, a resposta é mais simples: homem é azul e mulher, rosa.” Kuperman usa o terraplanismo como metáfora para esse cenário, caracterizado pelo que ele chama de “achatamento da vida mental”. Como a Terra é uma esfera, tudo se trata de uma questão de perspectiva. Quando é noite no Ocidente, é dia no Oriente e quando é inverno no hemisfério Norte, é verão no Sul. Já no terraplanismo, compara, tudo é plano, sem espaço para nuances ou variações.
A base do bolsonarismo engloba grupos com recortes diferentes, diz Kupermann. Entre eles estão evangélicos e trabalhadores que temem perder benefícios, ainda que ilusórios, porque os setores de atividade em atuam poderiam ser prejudicados pelo governo atual, como trabalhadores rurais, mineradores, caminhoneiros e forças policiais.
Também integram essa base pessoas que temem o que consideram a “ameaça comunista”, como ocorreu no golpe de 1964, que abriu caminho para a ditadura militar.
Radicais como os que invadiram o Congresso, o Palácio do Planalto e a sede do STF no domingo são um estrato pequeno, embora perigoso, desse grupo. Para esse contingente, em especial, o bolsonarismo funciona como um resgate da valorização individual, capaz de tirar o indivíduo de atribuições do dia a dia e colocá-lo no centro de decisões históricas. “É como uma convocação para as Cruzadas medievais. Vamos reconquistar Jerusalém!”, diz Dunker. “A crise identitária é curada por uma epopeia de salvação do Brasil.” Parece contraditório, mas Bolsonaro conseguiu convencer seus seguidores de que é um homem conservador, com bandeira pela defesa da religião, da família e da pátria, expondo os piores instintos, com declarações de preconceito racial, homofobia e misoginia.
Na figura do ex-presidente, no entanto, essas características passaram a ser vistas como sinais de autenticidade, diz Kupermann. “Ele se mostra como um homem que se apresenta como um homem que sabe ter falhas, mas cujo projeto é melhorar, diferentemente do hipócrita civilizado que vive de aparência.” Os ataques em Brasília, no entanto, podem ferir essa percepção e, por extensão, o próprio bolsonarismo. Ao explicitar a violência, os terroristas provocaram uma desaprovação generalizada, bem diferente do que vinha sendo tratado até então como “manifestações pacíficas”. As fotos do cavalo machucado pelos vândalos, dos vidros estilhaçados e das obras de arte aviltadas provocaram reações de outros bolsonaristas, que não querem ser vistos como baderneiros.
“Isso vai começar a dissolver o bolsonarismo por dentro”, diz Dunker. Apesar disso, mesmo sem Bolsonaro, a previsão é que o bolsonarismo vá sobreviver.
“Trata-se de um processo social. Será preciso fazer algo semelhante à desnazificação na Alemanha”, diz o psicanalista.