topo_M_Jose_prata_Ivanir_Alves_Corgozinho_n

SEÇÕES

Octavio Amorim: “Lula se fortalece, mas precisa reforçar frente democrática”

Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on whatsapp
Share on telegram
Share on print

Entrevista Octavio Amorim diz que presidente deve manter união de forças para buscar bons resultados

Valor Econômico, 12/01/2023

O diagnóstico do cientista político Octavio Amorim Neto sobre o terrorismo de domingo em Brasília passa por diferentes esferas: política, militar e diplomática. No campo político, o professor da Escola de Administração Pública e de Empresas (Ebape) da FGV do Rio avalia que o presidente Lula saiu fortalecido do 8 de janeiro, mas precisa aproveitar o momento para reforçar “o caráter de frente democrática” do governo e entregar bons resultados econômicos e sociais.

“Bolsonaro está isolado nacional e internacionalmente, mas continua com base social expressiva. Essa base poderá ser uma alavanca importante para ele se o governo não entregar bons resultados em termos de política econômica, social e de defesa da democracia”, afirma o professor.

Estudioso das relações entre a política e as Forças Armadas, Amorim diz que o ministro da Defesa, José Múcio, “queimou a largada” ao alegar que as manifestações nas portas dos quartéis eram democráticas. “A leitura do ministro se revelou completamente equivocada e isso tira a autoridade dele”, observa, ao pintar o chefe da pasta como um dos perdedores do episódio.

Lula, observa o cientista político, tem uma dificuldade comum aos demais presidentes desde a rede-mocratização, que é a falta de “fraquejo e autoconfiança” para lidar com as Forças. A exceção foi o capi-tãojair Bolsonaro, que o fez, contudo, de forma distorcida ao politizar os militares e militarizar a política.

Na arena global, Lula se depara com um “coco de coqueiro baixo”, classifica Amorim. Não tende a ter obstáculos para exercer a diplomacia, dada a boa vontade do mundo com o Brasil no pós-Bolso-naro. Veja a seguir os principais pontos da entrevista ao Valor: Valor: Houve omissão, conivência por parte da PM do DFe das Forças Armadas no domingo?

Octavio Amorim: Da PM do DF, houve omissão e, em alguns momentos, confraternização com os golpistas. Com relação às Forças Armadas, a situação é mais nebulosa, mas obviamente houve tolerância enorme com as manifestações e os acampamentos em frente aos quartéis e às unidades militares.

Valor — Como fica a imagem das Forças?

Amorim: Fica associada ao bol-sonarismo, ao golpismo e ao radicalismo de seus apoiadores. Por outro lado, houve um silêncio do Alto Comando durante o domingo, o que é positivo porque significa que não houve apoio explícito dos novos comandantes, ao contrário do que aconteceu sob Bolsonaro. Isso é positivo, mas a associação das Forças com o bolsonarismo ainda persiste. Esse vai ser um dos grandes desafios não apenas de Lula, mas de todas as forças democráticas que se uniram desde domingo: a separação institucional entre For ças Armadas e política partidária.

Valor — Passa a ser um problema para o novo governo?

Amorim: Essa é uma situação que sempre foi muito difícil para Lula, desde o primeiro mandato. Ele sempre respeitou as Forças, teve postura de consideração com elas, de aceitação das praxes militares, como a nomeação dos mais antigos para os comandos. No segundo mandato, investiu pesadamente nos projetos das Forças Armadas. Lula tem esse crédito a seu favor, mas, ao contrário do que fez na política externa, Lula nunca “presidencializou” a política de Defesa. Sempre foi deixada para o ministro da Defesa e para as três Forças, ainda que, sob Lula e Dilma Rousseff, tenha havido um grande avanço no controle civil sobre os militares. Apesar de todos esses avanços e do respeito que Lula teve pelas Forças Armadas, elas sempre foram um vespeiro para o presidente, que procurou se manter distante.

Valor — A dificuldade, então, não é inédita?

Amorim: Fernando Henrique foi assim também. Isso é uma marca dos presidentes desde a transição de 1985, uma herança do regime militar. A elite civil tem muita timidez, insegurança para lidar com as Forças e questões ligadas à Defesa. Diante dessa nova crise, da ameaça à democracia, da politização das Forças pelo bolsonarismo, da militarização da política, falta ao novo governo traquejo e autoconfiança para lidar com as Forças Armadas.

Valor — A indicação do Múcio para a Defesa foi para ter essa interlocução. Como avalia a atuação dele?

Amorim — A proposta inicial do Múcio, de dizer que os acampamentos se esvairíam naturalmente, fracassou. A ideia de nomeá-lo tinha uma intenção positiva, de pacificar as relações do novo governo com as Forças Armadas. Múcio, porém, não é um político com experiência em Defesa. Assim como os outros líderes políticos, não tem autoconfiança, traquejo. Pode ser que venha a aprender. Todos os problemas, que não nasceram agora, têm sido magnificados nesse contexto de crise gravíssima no início do mandato. A nomeação do Múcio dava sinal de que reformas que poderíam ser feitas para democratizar as relações civis-militares e restabelecer o controle civil ficariam para depois. Ao nomear Múcio, Lula sinalizou que queria pacificar as relações e que não investiría capital político para mudar o artigo 142 da Constituição, criar a carreira de analista civil dentro do ministério, investir esforços para proibir oficiais da ativa em postos civis na administração pública. Depois do lamentável 8 de janeiro, essa estratégia vai ter que ser repensada, e o governo Lula deverá investir mais capital político para reorganizar o setor de Defesa.

Valor — O ministro sai menor desse episódio?

Amorim: Múcio queimou a largada ao dizer que as manifestações eram democráticas e se esvairíam naturalmente. A leitura se revelou totalmente equivocada e isso tira a autoridade dele. Pode ser que a retome, mas é um dos perdedores do trágico 8 de janeiro. Agora, houve equívoco também no setor de inteligência. Importante relembrar que a área de Defesa e a de inteligência não tiveram equipes de transição nomeadas por Lula. Claro que era dificílimo o governo entrante dialogar com o pessoal do governo Bolsonaro nessa área, que era a mais radical, mas agora vê-se que a ausência cobrou um preço muito alto.

Valor — Faltou a Lula assumir o papel de comandante em chefe das Forças neste início de governo?

Amorim: Esse problema vem de longe. Por conta dos traumas do regime militar, presidentes civis não vestiram o manto de comandante em chefe. Com exceção de Bolsonaro, que o fez de forma totalmente equivocada e, em vez de assumir o manto para implementar uma política de Defesa, valeu-se da sua posição de comandante para politizar as Forças Armadas e militarizar a política. Foi uma distorção.

Valor — Legado da era Bolsonaro para as Forças pode ser a perda de credibilidade?

Amorim: Temos que esperar as pesquisas de opinião. Minha impressão é de que a popularidade das Forças continuará alta na opinião pública em geral, mas é fundamental levar em conta a opinião das elites políticas. São elas que decidem o orçamento e a política de Defesa. Acho que as Forças estão com a imagem dizimada aos olhos das forças políticas e também de outros setores das elites brasileiras — econômicos, acadêmicos, empresariais —, que passaram a ter muita desconfiança delas. Isso é um passivo, vai levar um tempo para as Forças recuperarem. É fundamental que os novos comandantes se esforcem nesse sentido, mas não sabemos como é a correlação de forças no Alto Comando. Esse é o problema de se ter as Forças Armadas no meio da arena política: as organizações militares são opacas, ao contrário dos partidos. O diálogo entre o Alto Comando e o novo governo parece ser ainda muito difícil. O resultado está aí: o 8 de janeiro, uma confusão generalizada.

Valor — Lula acertou ao decretar intervenção no DF?

Amorim: Claro. O DF, por lei, recebe do governo federal uma verba enorme para sua segurança, algo em torno de R$ 15 bilhões por ano. Para quê? Para ter uma polícia tolerante com golpistas, partidarizada em relação às grandes questões da República? O que é isso? Policiais tirando selfie enquanto as sedes dos três Poderes eram depredadas. Isso é a polícia da capital que é a mais bem paga do país e é paga pelo orçamento da União? Sem a menor sombra de dúvidas, a intervenção é plenamente justificada.

Valor — Lula teve uma vitória política depois disso tudo?

Amorim: A curto prazo, Lula se fortalece, sem dúvida. Mas, como o país continua muito dividido, a manutenção da popularidade e do apoio que tem de governadores, do Congresso e do Judiciário vai depender também do desempenho do governo em outras áreas. Não à toa, na segunda Lula já falava que queria que a agenda política não fosse totalmente dominada por questões de lei e ordem, de defesa da democracia; que o governo também tem que discutir política econômica, social, de saúde.

Valor — Manter o amplo leque de apoios e a ideia de união é decisivo para o futuro político do governo?

Amorim: Sim. A curto prazo o cenário político é bom para o governo, que enfrenta um problema muito hostil por conta da radicalização promovida por Bolsonaro e o bolsonarismo, mas Lula tem que aproveitar isso e entender que tem que fortalecer o caráter de frente democrática do governo. Novos setores devem ser incluídos para que a frente ampla realmente se constitua ao longo de 2023, garanta a estabilidade do governo, a defesa da democracia e a boa execução das principais políticas públicas, de modo que o governo entregue bens públicos palpáveis para a população. Até porque o apoio a Bolsonaro e às principais propostas do bolsonarismo continuam altos. Pesquisa Atlas mostrou que o apoio a uma intervenção militar para invalidar as eleições de 2022 chega a 36,8%. É uma minoria, mas uma minoria substancial.

Valor — Esse seria o tamanho real do bolsonarismo?

Amorim: Isso significa que há uma minoria substancial do país que apoia medidas autoritárias. Coisas radicalmente inconstitucionais, que seriam a morte da democracia. A situação do país ainda é complicadíssima. Esperava-se que o terceiro mandato de Lula seria muito difícil, mas as dificuldades chegaram muito antes do esperado. Esperava-se que aquele clima de congraçamento da cerimônia de posse daria lastro para uma navegação política por alguns meses. Uma semana depois, o ambiente foi destruído pelo bolsonarismo e agora precisará ser reconstruído. Lula tem que aproveitar essa crise para fortalecer o caráter de frente ampla e democrática do governo.

Valor — Quais são os simbolismos e o impacto real da reunião dos 27 governadores com Lula?

Amorim: Para Lula, isso foi muito bom; para a democracia, idem, porque significa não só a retomada do diálogo do governo federal com a federação, abolido por Bolsonaro, mas também de um diálogo entre esquerda e direita, também abolido no governo anterior. Tivemos outros presidentes populistas de extrema direita na nossa História, Jânio Quadros e Fernando Col-lor. Duas experiências também radicais e fracassadas, mas os dois dialogaram com a esquerda. Bolsonaro é o presidente mais radical da História democrática brasileira. Nunca houve um presidente que se recusasse peremptoriamente a ter qualquer diálogo com o campo político oposto. Bolsonaro é único, é uma experiência muito radical.

Valor — Como avalia a situação política de Bolsonaro hoje?

Amorim: Ele ainda tem apoio social, mas está isolado. As pesquisas mostram que a população massivamente não apoiou o assalto à República e à democracia. Bolsonaro está isolado nacional e internacionalmente, mas continua com base social expressiva. Essa base ainda poderá ser uma alavanca importante para ele se o governo não entregar bons resultados em termos de política econômica, social e defender a democracia. A incerteza é muito grande hoje no Brasil. A democracia venceu de novo, mas temos um regime democrático permanentemente ameaçado por forças autoritárias com apoio social substancial.

Valor — Além da responsabilização política de Bolsonaro, vê espaço para responsabilização jurídica?

Amorim: A responsabilidade política é óbvia. A jurídica, levá-lo às barras dos tribunais, vai ser muito mais difícil. Há todo um universo de leis que podem lhe dar algum amparo legal.

Valor — Explique melhor o porquê da responsabilidade política.

Amorim: Desde o primeiro dia do mandato dele até o último, mobilizou seus apoiadores para investirem contra as instituições e a Constituição. E continua fazendo isso lá da Flórida. Acontece que ele, ao contrário de Collor e Jânio, tem uma base social muito sólida e uma relação muito mais íntima com as Forças Armadas, que se transformaram novamente num ator político doméstico fundamental. Ele fez tudo isso e não pagou o preço que deveria ser pago porque tem apoio político e social substancial, ainda que minoritário. Se esse apoio começar a se diluir, aí a situação não apenas política, mas também jurídica, deve piorar.

Valor — Na diplomacia, a repercussão de domingo deixou o caminho ainda mais pavimentado para Lula reforçar a imagem de reinser-ção do Brasil no mundo?

Amorim: Sem dúvida. O mundo quer que o governo Lula dê certo. Até governos da China e da Rússia se manifestaram contra o assalto à República. O apoio que o Brasil teve no domingo foi maior do que o que Lula teve quando ganhou a eleição. A área de política externa é caracterizada hoje pela expressão “coco de coqueiro baixo”. Vai ser muito fácil para o governo Lula extrair benefícios de uma diplomacia rigorosa em defesa dos interesses nacionais e da defesa da democracia no plano global.

Octavio Amorim é cientista político.

Outras notícias