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O  último bastião do neoliberalismo, por Bradford DeLong

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Economia de mercado não pode enfrentar os desafios porque não os vê

VALOR ECONÔMICO, 05/05/2023
Tradução de Anna Maria DalleLuche

A última década não foi boa para o neoliberalismo. Com 40 anos de desregulamentação, financeirização e globalização falhando em não trazer prosperidade para ninguém, exceto para os ricos, os Estados Unidos e outras democracias liberais ocidentais aparentemente abandonaram o experimento neoliberal e retomaram a política industrial. Mas o paradigma econômico que sustentou o thatcherismo, a economia de Reagan e o Consenso de Washington está vivo e bem, em pelo menos um lugar: as páginas da The Economist.

Um recente ensaio celebrando o “espantoso recorde econômico” dos EUA é um exemplo disso. Depois de exortar os americanos desanimados a ficarem felizes com a “história de impressionante sucesso” de seu país, os autores dobram a condescendência: “Quanto mais os americanos pensam que sua economia é um problema que precisa ser consertado, mais provável é que seus políticos estraguem os próximos 30 anos”. Embora reconheçam que a “abertura dos Estados Unidos” trouxe prosperidade para empresas e consumidores, os autores também observam que o ex-presidente Donald Trump e o atual presidenteJoe Biden “voltaram-se para o protecionismo”. Os subsídios, eles alertam, podem impulsionar o investimento no curto prazo, mas também “entrincheirar o lobby esbanjador e distorcido”. Para enfrentar desafios como a ascensão da China e as mudanças climáticas, os EUA precisam “lembrar o que impulsionou sua longa e bem-sucedida jornada”.

Como sempre, a Economist faz sua reverência ao dogma neoliberal com toda a hipocrisia e certeza de um verdadeiro crente. Os americanos precisam sentar, calar a boca e recitar o catecismo: “O mercado dá, o mercado tira: abençoado seja o nome do mercado”. Duvidar de que os problemas atuais da economia dos EUA sejam causados por algo que não seja um governo intervencionista e autoritário é apostasia. Mas, como historiador econômico, o que me deixou sem fôlego foi a conclusão do ensaio, que atribui a prosperidade da América do pós-guerra à sua adoração do Mammon da Iniquidade (mais comumente conhecido como capitalismo laissez-faire).

O ensaio cita três “novos desafios” enfrentados pelos EUA: a ameaça à segurança representada pela China; a necessidade de reorganizar a divisão global do trabalho devido à crescente influência econômica da China, e a luta contra a mudança climática. O desafio climático, é claro, dificilmente é “novo”, visto que o mundo está pelo menos três gerações atrasado em enfrentá-lo. Além disso, nossa falha em agir prontamente significa que o impacto econômico do aquecimento global provavelmente consumirá a maior parte, se não todos, os dividendos tecnológicos previstos para o mundo nas próximas duas gerações.

De uma perspectiva neoliberal, esses desafios são considerados “externalidades”. A economia de mercado não pode enfrentá-los porque não os vê. Afinal, prevenir uma guerra no Pacífico ou ajudar o Paquistão a evitar destrutivas inundações ao retardar o aquecimento global não envolve transações financeiras. Da mesma forma, os esforços colaborativos de pesquisa e desenvolvimento de engenheiros e inovadores em todo o mundo são os principais impulsionadores da prosperidade econômica absoluta e relativa. Mas eles, também, são invisíveis aos cálculos do mercado.

Reconhecer a escala e a urgência dos desafios globais, como a mudança climática, e depois negar, como faz a Economist, que apenas os governos podem enfrentá-los com eficácia equivale a algo semelhante a negligência intelectual. O próprio Adam Smith apoiou os Atos de Navegação – que regulavam o comércio e a navegação entre a Inglaterra, suas colônias e outros países -, apesar do fato de que eles exigiam que as mercadorias fossem transportadas em navios britânicos, mesmo que outras opções fossem mais baratas. “A defesa”, escreveu ele em A Riqueza das Nações, “é muito mais importante do que a opulência”. Denunciar políticas de segurança desejáveis como “protecionistas” seria irrelevante naquela época e agora.

Além disso, a denúncia da Economist ao suposto protecionismo de Biden é acompanhada pela ambígua observação de que “as políticas de imigração se tornaram tóxicas”. Na verdade, só há duas opções: ou os EUA precisam acolher mais imigrantes (como acredito que devam), porque são altamente produtivos e se integram rapidamente, ou precisam restringir a imigração porque alguns acreditam que o processo de assimilação é muito lento. Ao permanecerem vagos, os autores pontuam, talvez esperando deixar os leitores de ambos os lados da questão convencidos de que a Economist compartilha de seus pontos de vista.

A observação do ensaio de que os subsídios poderiam “aumentar o investimento em áreas carentes no curto prazo”, mas também “entrincheirar o lobby esbanjador e distorcido” no longo prazo é igualmente equivocada. A alegação estrutural parece ser que, embora as falhas de mercado causadas por externalidades sejam ruins, as consequências potenciais das políticas governamentais destinadas a corrigi-las são piores. A aposta mais segura dos americanos é simplesmente manter a fé no mercado.

O argumento da Economist reflete um fundamental mal-entendido da história dos Estados Unidos. A tradição econômica americana está enraizada nas ideias de Alexander Hamilton, Abraham Lincoln, Teddy e Fran-klin Roosevelt, e Dwight Eise-nhower, que reconheceram a necessidade de um estado desen-volvimentista e os perigos do “rent-seeking”.

Certamente, já se passaram 70 anos desde a presidência de Eisenhower, e grande parte da capacidade do Estado americano foi esvaziada durante a longa era neoliberal que começou com a eleição de Ronald Reagan. Mas as políticas de laissez-faire que eram lamentavelmente inadequadas para a economia de produção em massa da década de 1950 são ainda piores para a biotecnologia e a economia baseada em TI do futuro. Em vez de rejeitar as políticas industriais de Biden, os americanos deveriam adotá-las. Para citar Margaret Thatcher, não há alternativa.

J. Bradford DeLong é professor de Economia na Universidade da California, Berkeley; pesquisador associado do National Bureau of Economic Research e autor de Slouching Towards Utopia: An Economic History of the Twentieth Century.

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