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Guilherme Jorgui: “Não é só comércio, é resgatar nossas memórias

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Promovida pela Prefeitura de Contagem, 5ªedição da Feira Mercado Afro reúne histórias inspiradoras de superação e enfrentamento ao racismo

A noite daquele sábado (18/11) tinha acabado de começar e a prefeita Marília Campos percorria todas as barracas da 5ª Edição da Feira Mercado Afro, cumprimentando a todos os expositores. Com dois dias de duração, quem visitou a feira pode saborear o bom e o melhor da ancestralidade dos pratos servidos nas barracas de alimentação; a exuberância das cores e das formas dos artesanatos e o estilo e a identidade do espaço de vestuário.

Marília foi convidada para subir ao palco e, numa mensagem breve, explicou que aquele evento era a celebração de lutas diárias, e, sobretudo, a luta contra o racismo. “Trabalhamos todos os dias para construir uma cidade com mais igualdade racial e sem preconceitos”.

Do outro lado do balcão, como destacado pela prefeita, a maioria dos expositores trás histórias de luta e de superação de racismos e preconceitos. É o caso, por exemplo, da cozinheira Kelbia Cristine, carinhosamente conhecida como Kel, que comanda a barraca Sabores da Kel. Na área de alimentação da feira era difícil não ter a atenção sequestrada por suas panelas de barro que ofereciam, numa delas, uma feijoada carnuda, e, na outra, um belo cozido de pescoço de peru com pedaços de milho verde.

Kelbia Cristine, a Kel

Usando uma touca de cozinheira vermelha, avental da mesma cor e uma máscara cobrindo o nariz e a boca — ou seja, tudo dentro do melhor cuidado sanitário — Kelbia é quem lidera a barraca que é um empreendimento de um núcleo familiar. Participam dos trabalhos dois dos seus irmãos, seu esposo e sua mãe. Além de empreender no ramo alimentício ela é uma das coordenadoras do Fórum de Economia Solidária de Contagem. Todos os ganhos da sua família vêm desse empreendimento gastronômico, com participação em feiras e demais eventos. “A gente vive disso, literalmente”, explicou Kel.

Seu primeiro contato com a cozinha foi muito cedo, aos doze anos. Foi menos por vontade, ensaio de uma aptidão, e mais por necessidade. Filha mais velha de cinco irmãos, ela assumiu cedo os afazeres da casa para que sua mãe pudesse sair para trabalhar. Ela ainda se lembra que suas primeiras receitas foram o “capitão” (bolinho feito de feijão e farinha de mandioca) e o fubá suado (receita de angu preparada com banha de porco ou manteiga, historicamente consumida por trabalhadores do campo). “Hoje nós trabalhamos com comida, mas já vimos a fome de perto. Teve dia que minha mãe saia de casa de manhã para trabalhar para voltar com o básico para nos alimentar”, relembra Kel.

A “inspiração” que recaiu sobre Kel é a mesma que incidiu sobre sua mãe, Dona Margarete Campolina. Ela sempre fora muito elogiada pelos pratos que preparava, mas nunca fez disso uma profissão. Teve de arregaçar as mangas quando se viu desempregada e com cinco filhos para criar. Recebeu ajuda de um amigo que a indicou para trabalhar num bar que havia perto do seu trabalho. “Era um boteco. Fiquei lá de cozinheira por cinco anos. Aí saia e como a Kel era a mais velha, ela tomava conta dos irmãos dela pra mim”.

Depois dessa experiência no bar, dona Margarete foi contratada para trabalhar numa rede de churrascarias em Belo Horizonte. Prestigiadíssima no seu desempenho culinário, ela teve a oportunidade de indicar para trabalhar três dos seus filhos, entre eles, Kel. “Eu já tinha minhas duas filhas e precisava de trabalhar. Comecei nesse restaurante como atendente, servindo os clientes”. Muito esperta e interessada na cozinha, não demorou para que ela mudasse de setor. “Aprendi cozinhar na prática, vivenciando o batidão de uma cozinha de restaurante”, relembra Kel.
Mas como toda narrativa sobre a jornada dos heróis, Kel também teve seu momento de “provação”. Há cerca de três anos ela atravessou uma fase delicada de saúde por um problema no útero. “Fiquei muito mal, tive perda de cabelo e fiquei muito deprimida”.

Certo dia, juntando intimamente suas expectativas e olhando para sua própria história, Kel se levantou diferente, mais determinada. Aquele exato momento em que a amargura se transforma num grande impulso transformador e ela decidiu que não trabalharia para mais ninguém.

Coincidentemente a esse seu momento, como uma espécie de providência divina, uma das suas primas teve notícias sobre a abertura da Feira da Economia Solidária (Ecosol) e comentou com ela, que procurou a Regional, tomou conhecimento do que era o projeto e se inscreveu – tudo na cara e na coragem. “Não tínhamos nada para começar, nem dinheiro”, relembra Kel.
Ela tinha acabado de passar por uma bateria de exames de saúde que levaram todos os seus recursos financeiros. Mas estava decidida a participar.
Seguindo a risca o ditado que ensina que “quem quer arruma um jeito, e quem não quer arranja uma desculpa”, Kel pediu emprestados os utensílios que ela usaria na feira. Na sua rede de apoio familiar, conseguiu que sua cunhada parcelasse a compra de um pequeno fogão industrial de duas bocas.

Quando questionada que receita serviria, lembrou-se das muitas macarronadas que fazia para um dos seus filhos. Daí ela registrou junto à coordenação da Ecosol que faria macarrão na chapa – preparo que ela nunca tinha feito antes. Em casa, começou a estudar como fazê-lo, testando diferentes temperos e os pontos de preparo dos ingredientes. “Eu lembro que queimei a ponta dos dedos porque não sabia mexer na chapa. Mas eu tinha vontade, não tinha preguiça”, relembra, às gargalhadas.

No primeiro dia, sucesso total. Na medida em que as pessoas foram experimentando seu macarrão, começaram a recomendar no “boca a boca” entre o público presente. A demanda foi tanta que pintou nervosismo e ela chorou. “A chapa era muito pequena e como o pessoal gostou do macarrão não conseguíamos suprir a grande demanda do primeiro dia. Comecei a chorar”.

Era um “problema bom”, preditivo da viabilidade do negócio.

O perfil de Kel, mulher negra e mãe, ilustra a constatação feita pelo Instituto Rede Mulheres Empreendedoras (IRME), que no total de mulheres empreendedoras brasileiras, 60% são negras. Ou seja, a maioria. Ainda nesse universo de mulheres empreendedoras, 37% são brancas, 2% são de descendência asiática e 1% de origem indígena.

Ainda segundo o relatório do IRME, a análise das classes sociais dessas empreendedoras registra que metade (50%) das empreendedoras pertence à classe C (famílias da classe que ganham entre R$ 5,2 mil e R$ 13 mil mensais), 34% são oriundas da classe A (renda mensal domiciliar superior a R$ 22 mil) e B (renda mensal domiciliar entre R$ 7,1 mil e R$ 22 mil) e 17% às classes D e E (renda mensal domiciliar até R$ 2,9 mil).

As mulheres casadas também são maioria entre as empreendedoras (57%), assim como as mães (73%). Nesse universo de mulheres que se desdobram entre a rotina e mãe e empreendedora, 51% têm filhos com mais de 18 anos.

“NINGUÉM ME TRATAVA COMO A EMPREENDEDORA QUE SOU”

Kel fez questão de destacar que a Feira Mercado Afro não é apenas um espaço para a comercialização dos seus produtos. “É onde estou com pessoas que me fazem sentir acolhida”. Essa sensação guarda referência com experiência oposta que ela vivenciou em outros eventos.

No início do ano ela foi indicada para participar de um grande evento gastronômico na capital. Ela foi indicada pelo dono de um restaurante que é um cliente seu – e grande fã do seu tempero. Como ele não estava familiarizado com o prato que lhe ofereceram para produzir e comercializar, articulou para que ela ocupasse o espaço que lhe fora oferecido. E assim aconteceu.

Mas desde os primeiros momentos Kel foi sentindo preconceitos nem tão sutis. Isso porque no racismo estrutural que permeia a sociedade brasileira, é como se a presença dos negros em certos espaços só fosse possível em uma posição subalterna – como se fosse difícil encará-los como iguais. “Ninguém me tratava como a empreendedora que sou”, criticou.

Quando chegou para uma das reuniões de organização do evento, Kel foi advertida por uma secretária que era uma reunião para os donos de empreendimentos.

– Você tem que falar com a Kel, ela é quem tem que vir à reunião – disse a secretária.

Kel respondeu simpática, mas firmemente.

– Eu sei, por isso mesmo estou aqui. Eu sou a Kel.

Depois de um olhar perplexo e sem jeito, pedidos pouco convincentes de desculpas pelo “mal-entendido”, Kel entrou.

Mas não fora o único “engano”. A todo tempo as pessoas que experimentavam suas receitas a elogiavam de um jeito torto, desqualificador. Coisas como “sua patroa deve ficar orgulhosa de você!”.

A princípio Kel optou por não entrar em discussão, afirmando sua condição de empreendedora. Mas aquilo foi a incomodando, até que recebeu uma proposta indireta de trabalho de uma cliente que disse “que precisava de uma menina como ela em sua loja”. Foi o seu limite.

– Eu não trabalho para mais ninguém, trabalho para mim mesma. Eu sou a Kel, dona dessa marca e desse empreendimento – respondeu.

Mas Kel lida com essas adversidades fazendo ainda melhor aquilo que veio fazer: cozinhar afetivamente. Sua barraca bateu meta de vendas, com um dos maiores faturamentos do evento – tudo com a devida porcentagem paga à organização.

Sua barraca chamou tanto a atenção que o Jornal o Tempo, que cobria o evento, deu destaque a sua receita.
Quando indagada sobre qual é o maior segredo das suas receitas, ela abre um belo sorriso e responde: “Na ancestralidade a alma cozinha e o coração tempera”.

A MODA É UM ATO POLÍTICO

Noutro ponto da feira, na área destinada à venda de vestuários, José Correa Domingos, carinhosamente conhecido como “Juca”, participa da Feira Mercado Afro desde a sua primeira edição. Seus produtos se destacam pelo designer e pela qualidade. Ele reuniu elementos da estética africana com elementos da moda brasileira. Estudioso, ele dá detalhes da origem e da influência de todas as suas peças de roupa. “O bubu, por exemplo, que é uma bata um pouco mais longa. Tem alguns modelos em que ele vai até o pé, muito usado pela realeza africana”, explica ele um interessado, e completa: “Tem o saruel, que é uma pegada africana, que vem de uma colonização árabe, mas que a cultura africana absorveu. Tem também a excelência, que nós chamamos de coroa, que e o turbante. É a coroa a mulher negra”.

José Correa Domingos, carinhosamente conhecido como “Juca”

Mas para Juca seu trabalho vai além do comércio, puro e simples. “No meu caso, é um movimento a partir de uma militância. E que agora estamos colhendo os frutos. É toda uma convivência, uma troca, e um conhecimento adquirido a partir de discussões e debates. Principalmente da galera que vem do continente africano. É um intercâmbio cultural e também educacional”.
Parte desses frutos, como não poderia deixar de ser, também passa pelo faturamento cada vez mais crescente. Não são tecidos baratos, até por serem importados. “Mas para garantir aos nossos produtos qualidade e um preço justo, nos desenvolvemos peças que misturam tecidos brasileiros e africanos”.

Mas ele ressalva que não faz nenhum tipo de segregação. “Claro que nós costuramos para qualquer um que queira comprar. Mas o povo para o qual a gente costura, o nosso cliente idealizado, é o povo preto”.

Juca explica a um grupo de clientes que a moda é um ato político, mas também um ato econômico. “Ela não é só o vestir de um corpo. Quando vejo alguém, a forma como ela se veste comunica o conjunto das suas ideias. Eu sei o que ela defende e o que ela pensa. E isso é muito legal. Ou seja, é sair do seu quadrado. Aquele que tentaram nos colocar, um quadrado principalmente eurocêntrico”.

Ele comemora a promoção da Feira Mercado Afro, defendendo que a iniciativa fosse seguida por outras cidades. “É uma política pública que contribui para o empoderamento da população minorizada, e que também combate o racismo. As demais cidades brasileiras deveriam investir em ações como essa, que promovem a visibilidade, a diversidade. Isso é fundamental. Porque se a gente fala de democracia a gente tem que atender a todas, todos e todes. Se não estamos falando apenas palavras bonitas”.

ANCESTRALIDADE: “A VENDA É CONSEQUÊNCIA DA HISTÓRIA QUE EU PASSO”

Kenia Ferreira

Na área destinada aos artesanatos, em frente a uma barraca, clientes observam atentas a explicação de Kenia Ferreira, de 32 anos, empreendedora e dona da marca Black 3.0 Acessórios, sobre como amarrar o turbante de modo a dar lhe um nó de rosa. Didática e simpaticamente, ela explica o tempo certo dos laços e entrelaços dados na peça, deixando parecer muito fácil. Ela efetiva as vendas, entrega um cartão com seu contato e completa: “Qualquer dúvida podem me ligar. Eu faço novamente o nó para verem como é”.

Sua barraca tem um conjunto variado de acessórios femininos. Além dos turbantes, ela confecciona brincos com formas variadas – com especial destaque para os de argola – colares, pulseiras, dentre outras peças. Ela estuda a história e a moda africana em diferentes tempos para desenvolver suas peças. “Eu fiz uma pesquisa inicialmente para saber o que era usado, e as argolas já faziam parte. Os adornos de pescoço, também. Os grandes colares eram usados em festas de casamento e outras festividades importantes”, explica Kenia.

Ela também transcende a sua relação do seu empreendimento do comercial para o resgate das tradições e da ancestralidade do povo negro. “Não é só uma venda, é trabalhar com a história para que as pessoas a conheçam. Não é só comercializar, e resgatar nossas memórias. Esse é o meu diferencial. A venda é consequência da história que eu passo. Isso para mim é o mais importante”.
Kenia, também participa da Feira Mercado Afro desde a sua primeira edição, conclui destacando a importância dessa iniciativa. “Considero-me filha da feira. Eu a conheci na sua primeira edição.

Participei, me apaixonei e continuei. A importância dessa feira, não só para mim mas para todos os artesões que estão aqui hoje, é a abertura de uma porta. Quem trabalha com vendas sabe a dificuldade que é ter um bom cliente. E a Feira Mercado Afro tem bons clientes”.

Ela deu início ao seu negócio durante a pandemia, colocando-se no mesmo grupo de mulheres que foram forçadas a empreender por necessidade. De acordo com uma pesquisa realizada pelo Instituto Rede Mulheres Empreendedoras (IRME), 46% se encontram nessa situação. Embora a proporção de empreendedoras que optaram por empreender por oportunidade seja igualmente de 46%, existe uma notável discrepância no perfil desse grupo.

Entre as que empreenderam por oportunidade, 67% delas são da classe A e B e não negras (54%). Entre essas, 55% abriram seus negócios há mais de cinco anos; e cerca de 64% delas têm ensino superior.

Já as mulheres que empreenderam por necessidade vem sobretudo das classes D e E (71%). Nesse universo, o tempo médio de abertura dos seus negócios é de dois anos, exatos 51% – o que indica que foram abertos no período da pandemia de Covid-19.

Guilherme Jorgui é jornalista.

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