A Bloquear Tudo, uma onda nacional de protestos na França contra o plano de cortar gastos sociais para reduzir o déficit público, derrubou o premiê francês na semana passada e deve se estender nesta semana
Valor Econômico, 14/09/2025
O Estado de bem-estar social, um pilar do modelo socioeconômico europeu, está sob intenso ataque, tanto interno como externo. A necessidade de reformar o modelo, para reduzir custos e dar mais competitividade à economia, é um dos principais desafios políticos no continente. O premiê da Alemanha disse recentemente que o modelo atual é insustentável. Mas a crescente fragmentação política torna ainda mais difícil enfrentar esse desafio. Uma proposta de cortes de gasto social gerou protestos e derrubou o premiê da França na semana passada. As divergências e a tensão em relação à reforma dos benefícios sociais serão um tema dominante da política europeia nos próximos anos.
Vigente em quase toda a Europa (ainda que com diferenças de país a país), o Estado de bem-estar social é um modelo no qual o Estado assume responsabilidade central em garantir proteção social ampla à população. Ele combina economia de mercado com forte intervenção pública, oferecendo políticas universais de saúde, educação, previdência, seguro-desemprego, habitação e outros serviços sociais. Sua lógica é reduzir desigualdades, proteger cidadãos contra riscos da vida (doença, velhice, desemprego, pobreza) e promover coesão social. Isso implica um nível elevado de gasto público, que precisa ser financiado com impostos maiores do que no resto do mundo.
O principal desafio interno desse modelo é demográfico, ou seja, estrutural. O envelhecimento da população na Europa implica em gastos cada vez maiores com saúde e aposentadorias. Por outro lado, a queda na natalidade reduz a população economicamente ativa, que financia esses gastos. Resultado: é cada vez mais difícil de fechar essa conta. E os jovens se sentem prejudicados, por terem de financiar para os mais velhos benefícios sociais de que eles provavelmente não terão.
Além disso, há fatores conjunturais. Durante a pandemia de covid-19, os países europeus (como quase todo o mundo) elevaram o gasto social, para proteger suas populações dos efeitos econômicos. Muitos deles estão tendo dificuldade de voltar aos níveis de gasto anteriores. É o caso da França, que continua com déficit público acima de 5% do PIB. A regra da zona do euro (flexibilizada na pandemia) prevê um teto de 3% de déficit.
Já os principais desafios externos ao modelo de bem-estar social europeu têm nome: China, Rússia e Estados Unidos.
O processo de globalização e, principalmente, a ascensão da China trouxeram um poderoso desafio ao sistema produtivo europeu. Empresas migraram para a China (e, mais recentemente, para outros países) em busca de mão de obra barata, mas também atrás de pagar menos impostos. Para estancar essa sangria e melhorar sua competitividade global, os europeus tiveram de reduzir a carga fiscal das empresas. A média da taxação corporativa nos países da União Europeia (UE) passou do pico de 36,8%, em 1995, para 22,2% em 2025, segundo dados da Comissão Europeia. Isso significou uma forte redução da contribuição das empresas para financiar o gasto social. O resultado foi a necessidade, ao longo desse período, de cortar benefícios, como fez a Alemanha com as reformas de 2003. Isso, porém, gerou tensões e insatisfação social, o que acabou favorecendo o surgimento de partidos populistas e uma fragmentação maior do quadro político.
Então veio o desafio da Rússia. A Europa mantinha boas relações com Moscou até 2014, quando o presidente Vladimir Putin ordenou a invasão da Crimeia. E continuou dependendo do gás barato russo para mover o seu sistema produtivo até 2022, quando Putin atacou a Ucrânia, o que levou a um rompimento de relações. Desde então, o custo da energia em boa parte da Europa subiu, prejudicando a competitividade.
Além disso, a crescente percepção de que a Rússia é um risco à segurança europeia está fazendo com que os países europeus tenham de gastar mais com defesa. Em 2014, o gasto militar total dos países da UE foi de 189 bilhões de euros. Em 2024, passou a 343 bilhões de euros. E deve continuar subindo fortemente nos próximos anos. Na cúpula deste ano da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan, a aliança militar ocidental), os países-membros assumiram o compromisso de gastar 5% do PIB com defesa (a maioria hoje gasta em torno de 2%, que era o compromisso anterior).
Assim, uma parcela crescente do orçamento dos países europeus terá de ser direcionado para o gasto militar nos próximos anos. Isso terá de ser financiado ou por aumento de arrecadação (o que é difícil) ou por corte de outros gastos. E o alvo mais óbvio para cortes é o gasto social.
Por fim, chegou o desafio dos EUA. Ainda no governo de Joe Biden, Washington deu uma guinada e adotou um programa agressivo de política industrial, com generosos de subsídios para atrair empresas para o país, especialmente em setores estratégicos, como os de tecnologia verde. Isso fez com que a União Europeia (UE) respondesse com seus próprios programas de incentivos, como o Green Deal Industrial Plan, de 2023, que deve exigir gastos de 1 trilhão de euros em uma década. Neste ano, a Alemanha também reverteu sua política tradicional e aprovou um pacote de investimentos públicos de 500 bilhões de euros, para tentar acelerar o crescimento econômico. Esses novos investimentos precisam ser acomodados nos orçamentos da UE e nacionais, o que também pressiona por cortes de outras gastos.
Donald Trump ampliou ainda mais a pressão sobre o gasto social europeu. Primeiro com a exigência de que os europeus gastassem mais com a própria defesa e assumissem o financiamento à Ucrânia na guerra com a Rússia. Em seguida, com o seu tarifaço global, Trump tornou ainda mais agressiva a busca por atrair produção e empregos para os EUA, em prejuízo dos parceiros comerciais. Além disso, o presidente americano e o seu movimento ultraconservador são inimigos declarados do modelo de Estado de bem-estar social europeu. Julgam que ele desincentiva o trabalho e a responsabilidade individual, dá poderes excessivos ao Estado e exige impostos elevados, justamente o contrário do que quer Trump. Essa oposição ideológica fez crescer o apoio da direita americana a partidos europeus que se opõem ou que buscam conter o modelo de bem-estar social, como o Alternativa para a Alemanha (AfD), hoje o maior partido de oposição alemão.
Esse mix de desafios interno e externos criou uma tempestade perfeita contra o modelo social europeu. “O estado de bem-estar social que temos hoje não pode mais ser financiado com o que produzimos na economia”, afirmou o premiê alemão, o democrata-cristão Friedrich Merz, em 23 de agosto, ao descartar aumento de impostos para as empresas. Sem elevar a arrecadação, Merz provavelmente terá de propor cortes nos gastos sociais.
Foi justamente a proposta de cortar gastos sociais para reduzir o déficit público que derrubou na semana passada o premiê da França, o direitista François Bayrou, após uma onda nacional de protestos chamada Bloquear Tudo, que deve se estender nesta semana, inclusive com a paralisação de voos nesta quinta-feira (18). O novo premiê, o também conservador Sébastien Lecornu, afirmou que mudanças são necessárias, mas deve atenuar as propostas de cortes do governo anterior.
A crise na França mostra como a fragmentação da política europeia, com o aumento do número de partidos e coalizões de governo cada vez mais frágeis, torna mais difícil chegar a consensos sobre o que fazer. Sem uma maioria clara e funcional no Parlamento, a França teve cinco premiês nos últimos dois anos. A agência de classificação de risco Fitch citou essa instabilidade política ao reduzir o rating da dívida francesa, na semana passada. “A derrota do governo em um voto de confiança ilustra a crescente fragmentação e polarização da política interna”, afirmou a Fitch em comunicado. “Essa instabilidade enfraquece a capacidade do sistema político de proporcionar uma consolidação fiscal substancial.”
Essas tensões em relação à reforma do modelo assistencialista devem marcar a política europeia nos próximos anos. Na Alemanha, há o risco de a coalizão de Merz com os social-democratas rachar se o premiê propuser, como já sinalizou, cortes de benefícios sociais.
Humberto Saccomandi é jornalista.