Minas Gerais enfrenta um momento crítico: a tramitação da PEC 24/23 na Assembleia Legislativa do Estado está na reta final. A proposta revoga os parágrafos 15 e 17 do artigo 14 da Constituição Estadual, eliminando o quórum qualificado de três quintos para mudanças societárias em estatais e a obrigatoriedade de referendo popular para desestatizações de empresas estatais. Em 15 de setembro último, a PEC foi aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da ALMG e, agora, segue para análise de uma Comissão Especial. Se aprovada, irá a plenário, onde precisará de 60% dos votos (48 dos 77 deputados) em dois turnos para ser transformada em lei.
Inicialmente, a PEC foi apresentada como parte da agenda ultraliberal do governador Romeu Zema. Mas, com o Programa de Pleno Pagamento de Dívidas dos Estados (PROPAG), que permite a renegociação das dívidas dos estados com a transferência de ativos estaduais para a União, o governador passou a ver um meio, na federalização, para se livrar dessas empresas, que ele nunca quis. Vinculada ao PROPAG, ganhou novo fôlego, mas, ainda assim, a aprovação da federalização da Cemig, da Copasa e da Gasmig de uma só vez era vista como difícil. Por isso, em uma manobra para facilitar sua aprovação, o relator, deputado Thiago Cota (PDT), apresentou um substitutivo, restringindo o foco da PEC à Copasa, mantendo proteções para a Cemig e a Gasmig.
A revogação dos dispositivos constitucionais proposta pela PEC 24/23 será, em primeiro lugar, um claro ataque à democracia ao eliminar o referendo popular, uma conquista histórica de 2001 implementada durante o governo Itamar Franco. Essa exigência constitucional reflete o reconhecimento de que as estatais representam um recurso estratégico do povo mineiro e que, portanto, não podem ser alienadas sem a expressa anuência da população.
Em segundo lugar, autorizará o governo estadual a negociar com a União a federalização da Copasa e, caso o governo federal não a aceite, a concessionária de água e esgoto poderá ser privatizada. Essa não é apenas uma questão econômica, afeita ao equilíbrio das contas do Estado. Trata-se de um erro estratégico que coloca em risco a soberania estadual, a capacidade de planejamento de longo prazo e o desenvolvimento social e econômico de Minas Gerais.
GEOPOLÍTICA
A água e a energia limpa são recursos estratégicos neste século XXI. A água, bem cada vez mais escasso, já provoca tensões geopolíticas em várias regiões do mundo, como o Oriente Médio e a África, onde o acesso a aquíferos e rios determina poder político e estabilidade social (VICTRAL, 2024). Sua gestão eficiente, em consonância com o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 6 (ODS 6) da ONU, é decisiva para garantir segurança alimentar, industrial e sanitária, além de prevenir crises humanitárias de grandes proporções (GUTIERREZ, 2025).
Paralelamente, as energias renováveis — solar, eólica e hidrelétrica — impulsionam um mercado multibilionário, resultado da urgência em descarbonizar a economia e mitigar os efeitos das mudanças climáticas. Essas cadeias produtivas não apenas reduzem a dependência de combustíveis fósseis, mas também redefinem fluxos de investimento e de inovação tecnológica, reposicionando países e blocos regionais no tabuleiro econômico mundial. A China, por exemplo, consolidou-se como líder global na produção de painéis solares e baterias de lítio, atraindo investimentos massivos e estabelecendo vantagens estratégicas em setores-chave da transição energética (AIE, 2024). Da mesma forma, a União Europeia, com o Pacto Ecológico Europeu (European Green Deal), busca garantir autonomia energética e reduzir a dependência do petróleo e gás externos, sobretudo após a guerra na Ucrânia, o que a reposiciona frente aos Estados Unidos e à Ásia no mercado global de energias limpas (CONSELHO DA UNIÃO EUROPEIA, 2019).
Nesse contexto, parece evidente a necessidade de políticas que protejam a água e as fontes de energia limpa contra interesses mercantis de curto prazo e as coloquem à disposição do bem comum. Apenas o Poder Público pode fazer isso. Cabe, portanto, ao Estado elaborar e conduzir planos de desenvolvimento que articulem segurança hídrica, energética e climática, garantindo acesso universal e equitativo e inclusão de comunidades vulneráveis.
A PEC 24/23
É sob a luz desses cenários globais que deve ser debatida a PEC 24/23. É um contrassenso que, ante esse panorama, Minas Gerais se disponha a renunciar a um de seus principais instrumentos de controle sobre recursos críticos — a Copasa. Perder esse controle significa passar a depender de decisões externas, muitas vezes orientadas por objetivos mesquinhos. A consequência é a fragilização da capacidade de Minas Gerais implementar políticas de longo prazo que atendam às necessidades da população e promovam inclusão social, proteção ambiental e crescimento econômico sustentável.
Este ponto é decisivo. Minas Gerais é um dos estados mais ricos em história e recursos naturais do Brasil, mas enfrenta desafios estruturais que comprometem seu futuro. Sua vasta extensão territorial — quase 587 mil quilômetros quadrados distribuídos em 853 municípios organizados em 10 Regiões de Planejamento —, somada a profundas desigualdades regionais, dificulta a formulação de políticas integradas e efetivas. A isso se acrescenta uma dívida pública gigantesca que pode alcançar R$ 180 bilhões até dezembro deste ano (O Tempo, 2025). É a terceira maior do país, atrás apenas de São Paulo e Rio de Janeiro.
O processo de desindustrialização em ritmo acelerado e a dependência crônica de commodities reduzem a capacidade do Estado de sustentar um desenvolvimento de base produtiva diversificada. Tragédias como a de Brumadinho, em 2019, expõem de maneira dramática os custos sociais e ambientais de uma matriz econômica ainda marcada pela exploração predatória dos recursos naturais.
Como tem alertado o amigo José Prata, Minas Gerais precisa urgentemente de um “plano de resgate”, algo que nenhum governo estadual conseguiu colocar em movimento nas últimas três décadas. A ausência de uma estratégia consistente e de longo prazo perpetua os problemas e limita o potencial de um estado que já foi motor industrial do país.
O PAPEL DAS ESTATAIS DE ÁGUA E ENERGIA
É exatamente nesse cenário que as estatais de água e energia podem desempenhar um papel central. Empresas como a Copasa, a Cemig e a Gasmig não são apenas prestadoras de serviços: elas podem se tornar protagonistas de um ciclo virtuoso de desenvolvimento estadual.
É importante observar que não estamos falando de empresas pequenas, ineficientes ou deficitárias, mas de organizações com alta capacidade de mobilização de recursos. A Cemig ocupa a sexta posição no Top 10 das maiores empresas do setor elétrico do país, segundo o ranking Valor 1000 (VALOR ECONÔMICO, 2024a). A Copasa é a terceira maior do país na cadeia produtiva de água, saneamento e serviços ambientais (VALOR ECONÔMICO, 2024b). A menor delas, a Gasmig, figura na 25ª posição entre as 46 maiores empresas de petróleo e gás do Brasil (VALOR ECONÔMICO, 2024c).
Essas empresas têm a capacidade de financiar e viabilizar projetos de infraestrutura em setores essenciais. Podem integrar geração de energia limpa, segurança hídrica e inovação tecnológica, além de levar investimentos a regiões menos favorecidas, como o Norte e o Vale do Jequitinhonha, onde o setor privado hesita em atuar. Com isso, podem estimular a geração de empregos qualificados, atrair investimentos privados e promover inclusão social, contribuindo para reduzir desigualdades regionais por meio do acesso equitativo a serviços de água, energia e gás em municípios historicamente marginalizados (DIEESE, 2023).
Em suma, Cemig, Copasa e Gasmig não são meros ativos econômicos: são ferramentas de planejamento estratégico, capazes de articular desenvolvimento regional, proteção ambiental e bem-estar social. Mantê-las sob controle público é, portanto, assegurar que Minas Gerais disponha de instrumentos estratégicos para conduzir seu próprio desenvolvimento.
Portanto, o debate sobre a PEC 24/23 não pode se restringir a meras questões fiscais. Trata-se de decidir se Minas Gerais continuará a dispor de instrumentos estratégicos para garantir sua autonomia, segurança hídrica e energética, inovação tecnológica e inclusão social, ou se entregará esses ativos a interesses externos, comprometendo o futuro sustentável do Estado e sua capacidade de planejamento de longo prazo.
A vinculação da PEC ao PROPAG não elimina os riscos. Embora a federalização possa aliviar parcialmente a pressão sobre as finanças estaduais, ela transfere para a União o controle de ativos críticos, sem garantir necessariamente que sua gestão atenderá aos interesses de Minas Gerais. A privatização, por sua vez, transformará recursos essenciais em mercadorias sujeitas às leis de mercado, podendo resultar em tarifas mais altas, redução da cobertura de serviços em áreas periféricas e perda de capacidade do Estado de investir em inovação tecnológica e infraestrutura sustentável. Em ambos os cenários, o impacto negativo para o desenvolvimento regional, a soberania econômica e a justiça social é significativo.
CONCLUSÃO
Não se trata aqui de menosprezar a importância de um entendimento entre a União e o governo estadual quanto à dívida de Minas Gerais — um fator crucial no estrangulamento da capacidade de investimentos do Executivo. Ocorre que não há necessidade de federalizar ou vender empresas cruciais como a Copasa, a Cemig ou a Gasmig para se chegar a um acordo no âmbito do PROPAG. Além da transferência de imóveis, o programa oferece múltiplos instrumentos de negociação — desde o pagamento direto em dinheiro até créditos previdenciários, os recebíveis da Lei Kandir, fluxos de dividendos das próprias estatais, direitos creditórios, dentre outros. Há também a possibilidade de redução do saldo devedor por meio da aplicação de parte dos recursos economizados com a redução de juros em despesas específicas do Estado, como educação e infraestrutura, e em aportes no Fundo de Equalização Federativa (FEF).
A questão, portanto, não é a inexistência de alternativas, mas a falta de interesse. A pressa em transformar as estatais mineiras em moeda de troca revela o viés do neoliberalismo radical do governo Zema. O PROPAG não pode servir de pretexto para que o governador, enfim, concretize sua meta mais persistente desde que assumiu o cargo: livrar-se das empresas públicas.
Ivanir Corgosinho é sociólogo
REFERÊNCIAS
AGÊNCIA INTERNACIONAL DE ENERGIA (AIE). Relatório energias renováveis 2024. Paris: AIE, 2024. Disponível em: https://www.iea.org/reports/renewables-2024/executive-summary. Acesso em: 20 set. 2025.
CONSELHO DA UNIÃO EUROPEIA. O que é o Pacto Ecológico Europeu? Bruxelas, 12 dez. 2019. Disponível em: https://www.consilium.europa.eu/pt/policies/european-green-deal/. Acesso em: 20 set. 2025. DIEESE. Nota técnica 280. São Paulo, dez. 2023. Disponível em: https://www.dieese.org.br/notatecnica/2023/notaTec280SetorEletrico.html. Acesso em: 20 set. 2025.
GUTIERREZ, Maria Bernadete Gomes Pereira Sarmiento. Energia e sustentabilidade no Brasil: desafios e perspectivas num contexto de transição energética. Brasília, DF: IPEA, jun. 2025. 28 p. (Texto para Discussão, n. 3130). Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/publicacao-item?id=52ab3e66-34f7-44d5-9e24-7dd66514d7df. Acesso em: 20 set. 2025.
O TEMPO. Estado projeta dívida de R$ 180 bi e garante que entregará apenas ativos exigidos no Propag. Belo Horizonte, 2 jun. 2025. Disponível em: https://www.otempo.com.br/politica/2025/6/2/estado-projeta-divida-de-r-180-bi-e-garante-que-entregara-apenas-ativos-exigidos-no-propag. Acesso em: 20 set. 2025.
VALOR ECONÔMICO. As 41 maiores empresas de energia elétrica do Brasil. São Paulo, 13 nov. 2024a. Disponível em: https://valor.globo.com/empresas/noticia/2024/11/13/as-maiores-empresas-de-energia-eletrica-do-brasil.ghtml. Acesso em: 20 set. 2025.
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VALOR ECONÔMICO. As 46 maiores empresas de petróleo e gás do Brasil. São Paulo, 12 nov. 2024c. Disponível em: https://valor.globo.com/empresas/noticia/2024/11/12/as-maiores-empresas-de-petroleo-e-gas-do-brasil.ghtml. Acesso em: 20 set. 2025.
VICTRAL, Davi. Para uma radiografia das guerras pela água. Outras Palavras, 20 ago. 2024. Disponível em: https://outraspalavras.net/terraeantropoceno/para-uma-radiografia-das-guerras-pela-agua/. Acesso em: 20 set. 2025.