Quando escutou pela primeira vez a música, como bom mineiro, matutou. Será coincidência? A Lígia da letra seria mesmo a sua Lygia, companheira inseparável, companhia de tantas batalhas no corre-corre da vida? Parou quieto por um tempo e foi revendo cada pedaço da letra. Os olhos verdes da amada eram descritos como castanhos. Disfarce? Amigo íntimo das letras sabia lá o que era subterfúgio e as fórmulas para encobrir com roupa de personagem o que da vida real era cópia fiel de sentimentos. Suas mulheres feitas de ficção tinham muito da tia, da vizinha, da antiga namorada. Não seria de espantar se Tom tivesse mesmo se inspirado em sua musa. Com tantas e justo ela, pensou. Por delicadeza, decidiu que não tocaria no assunto. Recolheu-se ao silêncio quanto ao tema e até o fim de seu casamento, nunca tocou no assunto.
Enquanto durou o seu sentimento pela carioca Lygia Marina de Moraes, ele continuou a mergulhar em seus olhos verdes com ânsia de mar. Coisa de quem nasceu cercado de montanhas, diriam os mais sagazes. Hábito de quem sabe mergulhar no outro em busca de tesouros inimagináveis, observariam os românticos. Fato é, que a paixão dele por ela durou exatos 19 anos e a história da canção acabou sendo colocada de lado, enquanto passavam os dias, nasciam os filhos e a convivência transcorria solta, como tinha que ser.
Muitas ondas depois, antes de voltar para o apartamento em Ipanema, comprou por acaso uma revista, dessas de distrair o tempo com fofocas sobre a vida alheia, e leu então a confirmação que adiara enquanto eterno foi o casamento. Tom admitia, pela primeira vez, que a sua Lygia era a musa inspiradora do samba-canção gravado por Chico Buarque no LP “Sinal Fechado”, dez anos antes, em 1974. Agora, não importava mais, para ele, Lygia era feita apenas de lembranças. Boas lembranças. Mas não mais do que isso. E, tinha que admitir, a música era mesmo muito boa, digna da mulher com que havia dividido uma parte grande da existência. O texto despretensioso da revista ignorava a sua presença. Dizia apenas que a mulher que tinha motivado o maestro era casada e nem se dava ao trabalho de citá-lo. Preferiu assim, permanecer nas sombras, se é que isso era possível. Mas não pode deixar de ler o resto da matéria que dizia que “Tom e Lygia, professora de pré-primário de uma das filhas do compositor, se conheceram em 1968, no bar Veloso, em Ipanema. Nunca houve nada entre os dois, mas aquele encontro daria origem a homenagem transformada em canção…” Pouco mais adiante, vinha uma afirmação do jornalista Ruy Castro: “O Tom vivia de olho nela”.
Ao virar a página, ele sentiu um nó no peito. Uma foto de Lygia ilustrava uma das páginas e ao lado, as palavras eram derramadas para desfazer qualquer dúvida que ainda pudesse pairar no ar daquela tarde quente no Rio de Janeiro. O que leu primeiro foi: “Ela recorda com orgulho os detalhes de seu caso jamais consumado com Tom Jobim”. Sorveu de um gole o resto do depoimento, sem a mesma calma que teve durante as décadas em que transformou o assunto em tabu. Lygia dizia, com todas as letras:
“Conheci o Tom em uma tarde chuvosa. O bar Veloso estava vazio, era junho e fazia frio. Eu e uma amiga, Cecília, nos sentamos na varanda e vimos o Tom conversando com Paulo Góes [fotógrafo]. Os dois acabaram se sentando na nossa mesa. Quando contei ao Tom que era professora da sua filha Beth, ele teve um ataque de riso e disse: ‘É a primeira vez que paquera vira reunião de pais e mestres!’. E eu babando: imagine, em 68, Tom era um dos homens mais lindos do Brasil”.
A coisa continuava. “Ele tinha que dar uma entrevista a Clarice Lispector para a ‘Manchete’, e convidou a mim e a Cecília para ir com ele. Fomos no fusquinha azul-claro do Tom. Eu usava uma saia de lã e um suéter de cashmere. Ao abrir a porta, Clarice fez cara de mau humor. Tom, abraçado comigo e com Cecília, disse: ‘Trouxe minhas amigas’. Ela ficou mais furiosa quando pediu a Tom que fizesse um poema para ela, como Vinícius [de Moraes] teria feito em entrevista anterior, e ele disse: ‘Não sou poeta, se tivesse um violão…’. Mas aí pegou um bloco de papel-jornal e escreveu um poema para mim, que guardo até hoje: ‘Teus olhos verdes são maiores que o mar/ Se um dia eu fosse tão forte quanto você/ Eu te desprezaria e viveria no espaço/ Ou talvez então eu te amasse/ Ai que saudades me dá/ Da vida que eu nunca tive’, e assinou: A.C.J.”
Neste ponto, interrompeu a leitura e mergulhou em reminiscências. Talvez o poema estivesse naquela caixa de guardados que nunca abriu. Menos por curiosidade, mais por respeito. Tinha aprendido a respeitar a privacidade dos entes queridos e aprendido que em determinadas coisas era melhor não mexer.
Voltou à leitura, inquieto, ansioso para chegar ao final. “Saindo de lá, Tom me levou em casa. Nos despedimos no carro, com um beijinho no rosto. Fiquei nervosíssima, mas parou ali. Tom era casado… Aquela carona foi nosso único encontro a sós. A música fala de tudo o que não aconteceu: o cinema, o passeio na praia… Depois nos encontramos muitas vezes, mas sempre em grupo”.
Ia prosseguir a leitura quando foi fisgado por uma recordação inesperada. Certa vez, um sujeito tinha ligado para ele para pedir o telefone da mulher. Achou um desaforo e resolveu sacanear com o cidadão. Deu o número errado e em seguida, ligou para o telefone que tinha dado e avisou: ‘Vão ligar aí procurando uma Lígia, mas o telefone é tal’, e deu outro número errado. Cantarolou a música e fez a associação. Talvez tenha surgido daquela brincadeira perversa a frase na música que fala do telefonema que foi engano. Involuntariamente, tinha participado da homenagem à sua musa de outrora. Não conteve a gargalhada.
“Estava sozinha em casa quando ouvi no rádio o Chico cantando ‘Lígia’, pela primeira vez. Fui correndo comprar o disco. Na hora, me vi na letra. Ser homenageada já é maravilhoso, ainda mais pelo Tom, com uma música linda e sofisticada… É uma glória. Claro que a música rendeu comentários e Fernando ficou uma fera. Durante os 19 anos em que fui casada, Tom evitou o tema. Estivemos juntos em vários lugares, tipo réveillon na casa de Jorge Amado, eu com Fernando e Tom com Ana, sua segunda mulher. Mas ninguém falava nisso. Um dia, Tom me encontrou por acaso na Cobal [sacolão e ponto de encontro] e falou: ‘Está chegando minha musa!’. Foi a primeira vez que admitiu para mim. Até hoje, em cada boteco que entro tocam ‘Lígia’. Faz parte do meu show. Fiquei imortal. Tenho quase todas as gravações de ‘Lígia’. Existe até uma versão do João Gilberto em que, ao contrário da oficial, o romance acontece e Tom até se casa comigo. As pessoas me cobram o fato de nunca ter acontecido nada entre a gente. Mas será que não foi melhor ter ficado essa fantasia? Talvez tivesse de ser essa a história: eu virar musa, entrar em um restaurante e me lembrar do Tom, cheio de charme.”
Fechou a revista. Colocou-a de lado no banco e ia saindo despercebido. Poucos passos depois, teve a trajetória interrompida. Alguém lhe puxava pela camisa. Achou estranho. Não tinha nenhum encontro marcado, não esperava ninguém. Virou-se como num passe de dança e deu de cara com a menininha que estendeu o braço e lhe entregou a revista que havia deixado propositadamente para trás. “Você esqueceu”, disse ela. Sorriso sem graça, agradeceu. Não pôde deixar de notar os curiosos olhos verdes, e, num impulso perguntou-lhe o nome. “Ligia”, ela respondeu. E completou: “Já até tenho música. Conhece? E começou a cantarolar, com uma voz suave e doce, partes da canção.
Ele sorriu. Beijou-lhe a testa e seguiu em frente. Depois atravessou a rua e antes de chegar em casa, foi abordado por um casal de turistas. Sacou de um bloquinho que sempre carregava na bermuda, anotou nomes e endereços. Tinha adquirido o hábito de enviar pelo correio aos fãs, obras autografadas. A dedicatória era uma forma de expressar o carinho e a gratidão que tinha ao ser reconhecido.
Mas nada haveria de salvar a tarde. Afagou o gato e se viu como o menino diante do espelho. Haveria de ser para sempre aquele menino. Se pudesse, morreria menino. Naquele momento, sentiu o peso da revelação, enfim consumada. E decidiu. Daquele dia em diante, retiraria o nome Lygia de sua obra. Tentaria apagar o que fosse possível do passado. A felicidade de 19 anos de união tinha virado mágoa. Uma única mentira. E, no entanto, ela parecia avolumar-se a ponto de ir apagando o que restava do que tinha sido amor. Ciúmes tardios lhe inflaram o peito. Uma sombra de dúvida não se dissipava. Sorveu o vinho e sentiu na boca um gosto de fel. Sentiu-se nu. Um homem diante de seu destino. Orgulho ferido e uma ponta de inveja. Escrevera livros e livros e agora sucumbia diante de um poema. Procurou o disco. Sabia que tinha um. Com dedicatória de Chico Buarque “ao amigo querido e companheiro de tantas aventuras”. Colocou para tocar. Uma derradeira vez.
Hamilton Reis. Jornalista e advogado.