Há momentos da vida política em que o futuro parece caber inteiro dentro de uma escolha. Minas Gerais vive exatamente esse ponto de inflexão. E, como costumava dizer Carlos Drummond — mineiro que sabia decifrar silêncios —, “as coisas findas, muito mais que lindas, essas ficarão”. Sim, as escolhas, mesmo que circunstanciais, produzem permanências que serão sentidas por muito tempo. É verdade que tudo muda, mas o ritmo das mudanças também é condicionado por escolhas, por decisões, logo pela política.
Me preocupa as escolhas de hoje porque me preocupo com o amanhã. Tenho no “esperançar” ativo a forma de transformar as preocupações em ação concreta em benefício da coletividade. É por meio desse olhar que procuro entender o quadro atual de Minas.
Nas últimas semanas, dois aspectos da conjuntura política me chamaram a atenção. O primeiro foi a aprovação da PEC do Cala Boca pela Assembleia Legislativa. Proposta do governador Zema que permite a privatização da COPASA sem a realização do referendo popular, contrariando a Constituição Mineira. O segundo ponto é a criação do “Consórcio da Paz”, iniciativa do governador de Minas Gerais articulada a outros governadores de oposição ao governo Lula, que, na prática, instrumentaliza a área de segurança pública em benefício de interesses eleitorais. Uma espécie de “palanque de sangue” ou “espetáculo da morte”.
Estes dois pontos são retrocessos democráticos e ameaças autoritárias ao projeto de país soberano que precisamos. É um ultraje eliminar os mecanismos de participação direta da cidadania na gestão do patrimônio público, como ocorreu no caso da COPASA. Além disso, a utilização de uma ação policial brutal, mal planejada e ineficaz no combate ao crime organizado no Rio de Janeiro como palanque eleitoral é um desvio moral e uma distorção do conceito de “uso legítimo da força” policial. Não há legitimidade em promover um massacre de faccionados, a morte de policiais e o pânico em comunidades numa operação que não resulta em desmantelamento das organizações criminosas.
Ao criar um bloco de governadores em favor de uma perspectiva de segurança punitivista, violenta e espetaculosa, Zema se alinha completamente à extrema direita impulsionando sua candidatura à presidência em 2026. O que poderia implicar na reprodução de operações desastrosas como essas em Minas. E o palco para tal estratégia seria, previsivelmente, as periferias da RMBH.
O desmonte como método de governo
Enquanto tenta ocupar o centro do debate nacional com o Consórcio da Paz, Romeu Zema move um projeto mais profundo: o desmonte sistemático do Estado de Minas Gerais. A aprovação da retirada da exigência de um plebiscito para privatização da Copasa é um episódio dessa trama ultraliberal que busca entregar os ativos estratégicos do estado para a iniciativa privada.
Para compreender a dimensão desse feito — que não é apenas administrativo, mas ideológico e afirma a agenda entreguista do governador — precisamos lembrar que o plebiscito era o instrumento de proteção popular sobre um dos bens mais estratégicos que existem: a água. A Constituição mineira estabelecia que qualquer tentativa de privatizar empresas de saneamento deveria passar antes pelo crivo direto da população. Esse instrumento democrático não surgiu por acaso; surgiu do entendimento que a liquidação de bens públicos estratégicos não pode estar sujeita a governos de ocasião: o povo precisa ser chamado a debater e decidir sobre o seu patrimônio coletivo.
Zema sabia que dificilmente convenceria o povo mineiro a entregar a Copasa nas mãos do mercado — afinal, onde as privatizações avançaram no Brasil, as tarifas subiram, os serviços pioraram e a universalização virou ficção, como o caso emblemático de Manaus. Por isso, optou por outro caminho: enquadrar a Assembleia, pressionar parlamentares, criar um ambiente de urgência artificial e, assim, obter maioria para mudar a regra do jogo. A aprovação da PEC 24/23 não só aboliu o plebiscito, mas abriu a porteira para a privatização acelerada da companhia.
Esse movimento revela um método: quando a vontade popular atrapalha, Zema remove o povo do processo decisório.
O episódio dos documentos sigilosos da Codemig e da Codemge reforça essa lógica. Ao impor sigilo de 15 anos sobre avaliações financeiras e estudos de mercado — muitos deles produzidos por consultorias estrangeiras —, o governador impede que a sociedade saiba quanto valem, de fato, os ativos que ele deseja entregar, como a Copasa. E, paralelamente, tenta justificar todo esse processo como parte das exigências do Propag, o programa federal de renegociação da dívida. O que o Governo Federal já desmentiu, afirmando publicamente que não exigiu a privatização da Copasa para adesão ao programa.
Ou seja, a pressa e o segredo não são técnicas contábeis: são escolhas e métodos políticos.
A Copasa, que deveria ser tratada como ferramenta de soberania hídrica, virou peça central do projeto ultraliberal mineiro. Nas mãos de Zema, a água deixa de ser direito humano e passa a ser mercadoria — talvez a mais valiosa do século XXI.
Ao observar esse cenário, impossível não lembrar de Guimarães Rosa, quando dizia que “o real não está na superfície das coisas”. Zema oferece barulho na superfície — o Consórcio da Paz, a retórica punitivista, as provocações ideológicas — e, no subterrâneo, desmonta estrategicamente os pilares do Estado mineiro. Tira a voz do povo, oculta valores estratégicos, flexibiliza licenças ambientais, ameaça o patrimônio público na tentativa de entregar o futuro de Minas para a iniciativa privada.
O palanque eleitoral de sangue
Depois da operação policial mais letal da história recente do país — 121 mortos no Rio de Janeiro — Zema articulou um arranjo que reúne governadores da extrema-direita ao redor de uma pauta única: disputar corações e mentes pela via do punitivismo. O nome é sedutor, “Consórcio da Paz”, mas a prática lembra mais o que Darcy Ribeiro chamaria de estratégia para manter intocados os mecanismos de violência estrutural.
Ao elogiar a operação como “bem-sucedida”, o governador mineiro não falava aos fluminenses — falava ao país, posicionando-se como porta-voz nacional da lógica da força e da violência desproporcional. É uma tática antiga: transformar medo em capital político. Da ditadura civil-militar às políticas de encarceramento dos anos 1990, as elites sempre recorreram à promessa de ordem como forma de consolidar projetos de poder. Agora, a extrema-direita tenta reorganizar sua identidade em torno desse discurso e Zema quer ser o arquiteto dessa narrativa.
A adesão do governador mineiro ao punitivismo se tornou explícita após sua viagem a El Salvador em maio. Na ocasião, Zema elogiou o modelo de segurança que, embora tenha reduzido os homicídios, é marcado pela suspensão de direitos, prisões em massa (mais de 80 mil desde 2022, incluindo 3 mil crianças) e um estado de exceção. Organizações internacionais denunciam esse sistema, que só foi viável devido à extrema concentração de poder em Nayib Bukele e à subsequente ruptura institucional.
Essa instrumentalização, que vende soluções simplistas, transforma experiências autoritárias em propaganda eleitoral e justifica a regressão de direitos. Zema tem como alvos principais o presidente Lula, o PT e a esquerda como um todo. Ele chegou a acusar Lula de “negociar a paz na Ucrânia enquanto o povo morre nas ruas do Brasil”, utilizando o anseio popular por segurança para fragilizar a esquerda associando-a à tolerância ao crime organizado. O governador ignora deliberadamente as ações federativas de prevenção, inteligência e proteção social desenvolvidas pelo governo Lula. Na prática, Zema transforma tragédias em palanque, buscando preencher o vácuo deixado pela inelegibilidade de Bolsonaro e oferecer ao eleitorado uma versão mineira do discurso punitivista, apresentando-se como o “defensor da ordem” contra um inimigo que ele próprio constrói.
É fundamental destacar que o campo progressista não produz, e nem poderia, propostas de segurança pública com forte apelo midiático e popular. A abordagem da esquerda, em geral, concentra-se em dois pilares: o combate às causas estruturais do crime, frequentemente ligadas à desigualdade social e à marginalização histórica de grandes parcelas da população, e o uso de inteligência para desmantelar a cadeia de comando e a infraestrutura financeira das organizações criminosas.
Naturalmente, essa estratégia exige uma abordagem transversal, demandando reformas sociais de base e um modelo de segurança focado na investigação, e menos no policiamento ostensivo. O desafio reside no fato de que essa abordagem não gera o mesmo impacto de “espetáculo” na televisão; uma obra de infraestrutura em uma área marginalizada não ganha destaque nos programas de horário nobre.
O que prevalece é a opção pelo grotesco, com a exposição midiática de armas e corpos negros abatidos, o que é assimilado pela população como sinônimo de combate ao crime. Tal exposição tem como consequência a desumanização cotidiana, o aprofundamento do sentimento de crise de segurança, medo e o desejo de vingança. A extrema-direita sabe disso e usa esse contexto em seu benefício.
Zema pode arriscar reproduzir essa política desastrosa e perigosa de segurança em Minas. O cenário mais provável para a implementação dessa política de segurança pública espetaculosa seria a RMBH e suas periferias. Essas áreas, historicamente negligenciadas e estigmatizadas, tornam-se o palco ideal para ações de “guerra às drogas” que, sob o pretexto de combater o crime, resultam em massacres, vitimando principalmente a população negra e pobre. Transformando a segurança pública em uma plataforma de campanha baseada na força bruta, completamente ineficaz para o combate à facções criminosas, mas promissora do ponto de vista eleitoral.
A encenação de uma “guerra” contra o crime nas periferias da RMBH poderia funcionar desviando o foco dos problemas estruturais e da ineficácia do governo Zema nessa região.
O Papel da RMBH e de Contagem na luta pela Assembleia Legislativa
A Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), com sua pluralidade, contradições e potência, é o cenário onde o conflito de projetos em Minas Gerais se manifesta de maneira mais evidente e radical. É uma região com peso econômico, populacional e eleitoral decisivo. Precisamos ter formulação e ação política na dimensão metropolitana para reverter os malfeitos do ultraliberalismo no estado.
A RMBH constitui um território imbricado e muitas das soluções necessárias dependem de uma articulação institucional e regional sólidas. O que ocorre em um município, sem dúvida, impacta os demais, que formam essa imensa teia urbana com população de quase 6 milhões de habitantes.
O ponto de partida é entender que a RMBH passa por um distanciamento crescente entre as necessidades das cidades e a agenda do governo estadual. Exemplos disso são a imposição do Rodoanel sem diálogo adequado com as cidades mais impactadas, a pressa na privatização da Copasa sem consulta às cidades que são principais concedentes, as PPPs dos Terminais de Transporte rejeitadas em audiências públicas — tudo isso revela um padrão: o Estado toma decisões unilaterais, enquanto os municípios ficam com o ônus social, ambiental e financeiro.
A fragmentação política na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH) é um fator crucial que dificulta a dinâmica regional e a capacidade de resposta a projetos de nível estadual. As administrações municipais da RMBH possuem dificuldade de articulação entre si e isso diminui seu potencial de negociação frente ao governo estadual.
Temos pelo menos três diferentes abordagens políticas por parte dos municípios de maior porte da região.
Municípios, em especial dirigidos por partidos do chamado “centrão”, como BH, Betim, Nova Lima – tendem a adotar uma postura predominantemente mais conservadora. Embora não se posicionem de forma explícita ou frontalmente contra as políticas de Zema em todas as ocasiões, esses municípios mantêm uma margem de manobra política para defender seus interesses locais e a manutenção dos serviços públicos essenciais. Porém, não atuam como um campo, dispersando a força que possuem.
O campo ultraliberal/conservador está isolado no caso de Ibirité, que possui adesão automática à agenda do governador. E no campo progressista, Contagem se afirma como uma experiência estratégica de municipalismo desenvolvimentista, inovador e democrático, que influencia o contexto metropolitano. O município não apenas resiste ao desmonte estadual, mas prova, na prática, que é possível governar com eficiência sem sacrificar direitos, transformando-se em laboratório vivo de um projeto progressista para o futuro de Minas Gerais.
Contagem registrou aumento de 53% na arrecadação nos últimos quatro anos sem aumento de impostos, resultado de investimentos em infraestrutura, modernização administrativa e ampliação da base de contribuintes. A administração das contas públicas de Contagem foi considerada como de excelência pela Firjan, superando Belo Horizonte, Uberlândia e Betim, provando ser possível cuidar das contas públicas sem vender patrimônios e nem abrir mão de políticas sociais.
Em paralelo, Contagem assumiu a liderança regional na segurança pública com a criação do 1º Consórcio Intermunicipal de Segurança Pública de Minas Gerais, com adesão inicial de 26 municípios. O consórcio, pioneiro no estado, busca aproximar os municípios para desenvolver ações integradas de prevenção, cooperação e enfrentamento à violência, reforçando a rede de proteção e potencializando resultados no combate à criminalidade. Um contraponto fundamental ao modelo punitivista, autoritário e espetaculoso de segurança pública proposto por Zema.
Sob a liderança de Marília, Contagem manteve o foco estratégico em infraestrutura, mobilidade urbana e segurança cidadã, consolidando parcerias federativas e institucionais que garantem autonomia administrativa em meio à retração dos investimentos estaduais. A disputa entre o neoliberalismo fiscalista de Zema — que sacrifica ativos e patrimônios públicos em nome do suposto equilíbrio da dívida — e o municipalismo progressista de Marília — que aposta na indução estatal e na cooperação federativa — é um elemento central do panorama político da relação RMBH x Governo de Minas.
Acredito que utilizar a força da experiência contagense para ampliar a capacidade de construir consensos sólidos entre os diferentes atores municipais torna-se uma necessidade vital. A defesa dos bens públicos, do meio ambiente e do interesse coletivo na RMBH exige uma articulação política que reconheça e transcenda as filiações ideológicas individuais de cada prefeitura para se concentrar nos benefícios de uma gestão metropolitana coesa e integrada. Sem esse esforço de unificação e diálogo, a região corre o risco de ter seus bens e serviços essenciais sucateados ou privatizados, enfraquecendo o tecido social e econômico de toda a área metropolitana.
Para que possamos avançar no diálogo político metropolitano, não basta apenas uma articulação entre prefeituras, precisamos também reconhecer o papel estratégico da Assembleia Legislativa neste projeto. A ALMG, que em sua composição majoritária atual, não foi capaz de resistir ao projeto ultraliberal de Zema. Precisamos de um legislativo estadual combativo e com vocação para o diálogo com as prefeituras da região e o ano de 2026 será decisivo para isso. Reconhecemos o papel de resistência fundamental da bancada progressista que lá está, mas sua atuação foi insuficiente para barrar a sanha entreguista de Romeu Zema.
O campo progressista precisa ampliar e fortalecer suas bancadas legislativas para barrar a venda de Minas e sustentar um projeto estadual democrático que esteja à altura do povo mineiro. Nessa atual composição, a Assembleia se mostrou fraturada e permitiu o avanço irrestrito do privatismo, o sigilo sobre documentos públicos e a entrega acelerada de ativos estratégicos. É nela que se decidirão, novamente, os rumos da Copasa, da política de segurança, da mobilidade e da governança metropolitana.
A RMBH terá papel central nessa disputa e na nova composição da Assembleia Legislativa. É aqui que os conflitos mais estruturais se manifestam — e é daqui que podem emergir as soluções mais consistentes para reverter o ciclo de desmonte. Nesse sentido, Contagem hoje é farol. Como diz Guimarães Rosa, “o real não está na saída nem na chegada; ele se dispõe é no meio da travessia.” Estamos nesse meio. Portanto, construir legislativos fortes e articulados às administrações municipais é uma travessia necessária.
Adriana Souza é graduada em história e vereadora de Contagem (PT)