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A palavra da vez em Davos é fragmentação, por Humberto Sacomandi

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EUA deixam claro que querem redesenhar as cadeias de produção e o comércio globais. Há riscos e custos, mas também oportunidades

Valor Econômico, 20/01/2023

Fragmentação é a palavra deste ano no Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça. Para alguns ela é uma ameaça à economia global. Para outros, é uma necessidade. Quase todos concordam que trará custos maiores para as empresas e os consumidores. Mas haverá também oportunidades.

Fragmentação econômica é a reversão do processo de globalização e de integração que moldou a economia mundial nos últimos 40 anos. Nesse período, a produção migrou para onde era mais barata, o que gerou uma concentração cada vez maior na Ásia, em especial na China. Um processo simultâneo de abertura comercial garantiu que essa produção circulasse livremente pelo mundo. A instituição símbolo disso foi a Organização Mundial do Comércio (OMC).

Agora os EUA, principalmente, querem reverter esse processo.

Essa nova posição americana começou ainda no governo de Donald Trump, mas ganhou corpo e forma com Joe Biden.

E porque a globalização perdeu apoio nos EUA? A secretária do Tesouro americana, Janet Yellen, explica isso num artigo publicado no site do Valor.

Ela dá duas razões principais.

A primeira é o risco da superconcentração. “Os EUA e seus parceiros têm forte interesse em criar redundâncias em nossas cadeias de suprimentos. Temos de evitar a superconcentração da produção de bens decisivos em um mercado em particular.” Leia-se China. A pandemia de covid-19 expôs os riscos de concentrar demais a produção num único país. Se esse país enfrenta problemas, toda a cadeia produtiva sofre.

“Em segundo lugar, temos de nos proteger contra os riscos geopolíticos e de segurança. A Rússia está movendo uma guerra cruel não apenas contra a população ucraniana; o país também usou as exportações de commodities como arma contra o mundo. Por um tempo excessivamente longo, boa parte do mundo [leia-se a Europa] se mostrou exageradamente disposta a acreditar na afirmação da Rússia de que o país era um fornecedor confiável de energia barata e prática.” Se a Rússia chantageou o Ocidente com energia e grãos, imagine o que a China pode fazer num eventual conflito, é o que Yellen quer dizer.

Ou seja, o que era concentrado e global passa a ser fragmentado, mais local e mais confiável.

Há possivelmente um outro fator, de política interna dos EUA. A globalização se tornou o bode expiatório para os problemas de parte da classe média americana. Isso foi muito bem explorado eleitoralmente por Trump, que prometeu trazer os empregos de volta aos EUA.

Yellen não rejeita a concepção tradicional de livre comércio pautado pelas vantagens comparativas, ou seja, cada país produz aquilo em que é mais eficiente, e assim todos saem ganhando. Mas ela diz que os EUA estão preocupados com “o potencial dos choques regionais e globais de impactar nossas cadeias de suprimentos, inclusive o dos choques movidos pelas políticas de certos governos estrangeiros”. Leia-se Rússia e China. E, por isso, defendem o “enfoque chamado de “realocação da produção para países amigos” (friendshoring).

Como empresas nem sempre percebem e reagem aos riscos geopolíticos, essa mudança na produção e no comércio globais têm de ser estimulada e/ou obrigada pelos governos.

Biden fez isso com a chamada Lei do Chip e a Lei de Redução da Inflação, que tem pouco a ver com inflação e muito com subsídios para trazer estruturas produtivas para a América do Norte. Os europeus se sentiram discriminados e ameaçados, e a União Europeia prepara agora um pacote próprio de subsídios.

Isso tudo significa a volta por cima da política industrial, após décadas de vilipêndio.

As empresas estão se adaptando a essa nova situação.

A taiwanesa TSMC, maior fabricante de chips do mundo, está construindo fábricas nos EUA e cogita também Japão e Europa. A Apple pretende fabricar metade de seus smartphones na Índia até 2027, tirando produção da China.

Em Davos, executivos e o FMI alertaram para os riscos desse processo. Empresas terão de construir fábricas desnecessárias, a chamada redundância, para distribuir a produção, em vez de concentrá-la. Parte desse custo deverá ser absorvido pelas empresas, na forma de lucros menores (o que pode afetar investimentos futuros). Parte será repassado aos clientes, gerando inflação. E parte virá de subsídios públicos, que são impostos que poderiam ser gastos com outras prioridades. Ou nem cobrados.

Além disso, há a questão dos custos diferentes de produção. A TSMC já disse que produzir em Taiwan é mais eficiente. Ou seja, os custos maiores de produção nos EUA (e outros locais) terão de ser absorvidos ou repassados.

“A fragmentação é uma das causas da inflação. Quando você sobrepõe algo mais importante que o preço [na produção], algo como a segurança nacional, você está disposto a substituir ou a sacrificar o preço, e essa é uma das causas da inflação que temos hoje”, disse em Davos Larry Flink, presidente do fundo BlackRock.

“Todos os países estão tentando trazer a inflação para baixo. A fragmentação geoeconômica tornará isso mais difícil”, disse Gita Gopinath, vice-diretora-geral do FMI.

Yellen, porém, é clara quanto a isso. “É importante deixar de lado o comércio que só corre atrás das cadeias de fornecimento mais baratas.” Ao final, com a queda da eficiência e custos maiores, todos saem perdendo. Segundo um relatório divulgado pelo FMI no primeiro dia de Davos, o custo de longo prazo para o mundo de uma fragmentação da economia pode ir de 0,2% do PIB global (num cenário de fragmentação limitada) a 7% do PIB (num cenário grave). E pode ser chegar a 12% do PIB se as cadeias tecnológicas foram divididas em blocos (uma para o Ocidente e uma para a China). O FMI alerta que esse custo pode ser ainda maior, pois esse é um processo complexo, difícil de modelar.

“O risco é que intervenções adotadas em razão de segurança econômica ou nacional podem ter consequências não previstas, ou podem ser usadas deliberadamente para obter ganhos econômicos à custa de outros [países]”, diz o FMI.

Mas há oportunidades. Em visita ao México, na semana passada, o presidente Biden disse que quer ajudar a colocar o país amigo na cadeira de fornecimento do setor de chips.

O Brasil, que perdeu o bonde na globalização, pode se beneficiar dessa reorganização da produção e do comércio mundiais. Um novo mapa de produção está sendo desenhado.

Humberto Sacomandi é jornalista.

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