Às vezes me pego rindo distraída e genuinamente – o que não é raro, confesso – com as lembranças que tenho de Marília I e II e com a proximidade política que temos hoje.
Explico.
Quando Marília se tornou prefeita em 2005, eu era uma menina periférica, mãe de uma criança com menos de um ano e passei a viver a cidade como mãe-cidadã. Ou seja, comecei a usar o posto de saúde, o CEMEI, os núcleos de educação no território, as praças e as mais diversas políticas públicas que foram sendo criadas. Via Marília através das lentes do povo e a enxergava como uma mulher jovem, combativa e corajosa. Desafiou o duelo Ademir x Newton, venceu, fez história e se tornou a maior liderança política que Contagem já viu. Entretanto, ela ainda era uma figura distante, talvez inalcançável. A Adriana de 2005 jamais imaginaria que vinte anos depois estaria tão perto daquela Prefeita que fazia e continua fazendo história. A lembrança dessa trajetória me provoca os risos distraídos e alegres que citei há pouco.
Pois bem, não é fácil arriscar escrever sobre ela, muito menos dividir reuniões, palanques e disputas. Mas segundo Maquiavel, “para conhecer a natureza dos povos, é necessário ser príncipe, e para conhecer a natureza dos príncipes é necessário ser do povo.” Marília conhece bem o povo de Contagem e eu a conheço bem como governante. E essa é a minha principal relação com Marília: sou parte orgânica do povo que ela governou e ainda governa. Não me formei politicamente no PT, não compus seu grupo político, nem tampouco tivemos a oportunidade de sermos amigas. Nossa relação se deu a partir da experiência de governante e governada. E me identifiquei, como grande parte da nossa cidade, com uma cultura política diferente e melhor, liderada por ela.
Sou uma contagense raiz. Nascida, criada e apaixonada pela cidade. Portanto é fácil reconhecer a grandiosidade do legado e do patrimônio político representados por Marília. Mas o fato é que seu estilo e projeto político ultrapassaram os limites geográficos de Contagem e de Minas, não apenas por vencer seguidas eleições, mas por criar sentidos, projetos e caminhos. Prefeita de Contagem por quatro mandatos, primeira mulher a governar a cidade, militante histórica do PT, Marília representa mais do que uma liderança local — ela sintetiza uma forma de fazer política que articula presença forte, escuta ativa, universalidade e projeto de cidade. Seu legado precisa ser compreendido como um patrimônio coletivo de todo campo progressista – partidos, coletivos, tendências, organizações, etc. – especialmente em tempos de fragmentação e enfraquecimento das organizações populares.
Uma liderança forjada na tradição petista
Marília é herdeira direta do modo petista de governar que marcou a história das gestões populares no Brasil desde os anos 1990. Sua trajetória está enraizada na criação dos conselhos populares, no fortalecimento das associações de bairro, na implementação do orçamento participativo e nas lutas por políticas públicas que transformam a realidade concreta da população.
Em Contagem, esse estilo se traduziu em ações como a desprivatização e valorização do SUS, a oferta de uma educação pública de qualidade, a atenção à cultura popular, a geração de emprego e renda, a requalificação urbana com a revitalização de praças e parques, o ordenamento legal da cidade, a garantia do saneamento básico, um ousado programa de regularização fundiária, dentre tantas outras iniciativas que transformaram radicalmente a nossa cidade. Uma política que remonta às tradições do campo nacional-popular brasileiro e que se conecta à luta histórica pela reforma urbana e pela transformação das cidades em lugares do encontro e de garantia de direitos. A experiência de gestão, a tradição do Partido ser visto como a legítima alternativa das maiorias populares, capaz de costurar alianças heterogêneas que tem como finalidade a construção de um governo de mobilização, desenvolvimentista, democratizante, mesmo com amplitude ideológica foi a marca do petismo enraizado nas cidades.
É desta tradição que Marília Campos se alimenta e tem conseguido se manter como uma importante liderança do PT em Minas Gerais. Sua defesa de uma frente ampla combativa, em defesa de um projeto de cidade merece ser estudado, estadualizado e nacionalizado, conforme afirmei em texto desse blog (1).
O universal como prática situada
Uma das marcas mais significativas do legado de Marília é sua aposta na política como construção do universal. Em tempos marcados por lógicas particularistas e essencialistas, ela reafirma o valor de pensar a cidade como um todo. Sua práxis política não se reduz à defesa de demandas particularizadas — embora as reconheça e dialogue com elas — mas atua com a consciência de que a busca por justiça social na gestão da cidade exige uma visão articulada, que conecte territórios, classes, direitos, identidades e pertencimento.
Essa abordagem ficou evidente nas eleições de 2024, quando venceu em primeiro turno com mais de 188 mil votos, superando candidaturas de extrema-direita em todas as regiões da cidade. Sua campanha não se baseou em slogans nem em polarizações artificiais. Como afirmei anteriormente, Marília conseguiu derrotar o extremismo, construindo uma polarização de outro tipo, onde a avaliação da sua gestão foi o cerne da disputa. Ao priorizar a agenda afirmativa do seu projeto de cidade, evitou a nacionalização da disputa, consolidou a municipalização do debate, mantendo sua identidade petista e apresentando as marcas de sua gestão na cidade (2).
Uma prefeita que governou com coragem — e muitas vezes sozinha
Apesar dessa trajetória vitoriosa, não podemos ignorar que Marília enfrentou, em muitos momentos, certo isolamento político. A despeito de seu papel como referência estadual e nacional no campo petista, ela foi, em diversas ocasiões, deixada à margem dos principais debates partidários no estado. Um dos episódios mais emblemáticos dessa negligência foi sua atuação praticamente solitária na defesa de uma distribuição mais justa dos recursos do ICMS da Educação. Mesmo à frente de uma das maiores redes municipais de ensino de Minas, com um dos maiores pisos salariais do país e altos índices de matrículas, Marília se viu sozinha na crítica à fórmula aprovada — inclusive com votos de parlamentares do próprio campo progressista.
Esse episódio não pode ser tratado como um detalhe técnico. Ele revela uma desconexão entre a base gestora do partido e parte de sua direção, além de uma carência de espaços de escuta e articulação que deveriam ser a espinha dorsal de qualquer estratégia democrática. Não se trata de atribuir responsabilidades de forma individual, mas de reconhecer que, para avançar, o PT precisa se reencontrar com sua vocação organizativa, coletiva e democrática. Também por isso, é tão importante que a Prefeita Marília e todos aqueles que defendem seu legado, se envolvam nas definições de rumos do partido a partir de seus instrumentos de democracia interna, como o PED – Processo de Eleições Diretas.
O legado de Marília como energia de futuro
Para mim, o que está em jogo, portanto, não é apenas o reconhecimento de uma trajetória bem-sucedida. É a afirmação de que a experiência de Marília Campos oferece pistas valiosas para a reconstrução do campo democrático e popular e de toda ala progressista em Minas Gerais e no Brasil. A experiência de Contagem mostra que é possível combinar programa de esquerda, tradição de luta, inovações institucionais, política de resultado, universalismo e justiça social. Que é possível articular tradição e projeto de futuro — como demonstram suas práticas em sua quarta gestão, recentemente citadas em artigo de Maria Herminia Tavares (3).
Em meio a tantos ataques e golpes que o PT sofreu nos últimos tempos, Marília traduz o bom e velho “modo petista de lutar e governar”, mostrando que ter tradição não impede a inovação na gestão, nem tampouco a conexão com as agendas contemporâneas. Trata-se da criação de uma linha que liga passado, presente e futuro. Ou seja, a experiência de Marília é uma tradição que gera uma energia de futuro e de alternativa política.
E, justamente, por possibilitar horizonte de futuro, é que a política representada por ela deve estar presente em todos os ambientes de debate e construção política das esquerdas brasileiras. Do ponto de vista do petismo – que é a síntese do campo progressista brasileiro hoje – isso significa que a estratégia política incorporada por Marília Campos deveria ser defendida em todas as alas, campos, tendências e chapas que compõem o PED.
Num tempo em que a política se vê reduzida a gestos performáticos ou marketing eleitoral, Marília representa outra possibilidade: a política como ofício coletivo, projeto contínuo e compromisso com o comum. Seu legado precisa ser defendido, estudado e, sobretudo, multiplicado por toda a diversidade das esquerdas. É necessário que o partido compreenda que esse tipo de experiência não é apenas uma exceção virtuosa, mas deve ser base para um projeto mais amplo. Um projeto que retome a centralidade do município na reconstrução nacional. Um projeto que una o passado de lutas à reinvenção necessária diante dos desafios do século XXI.
Retomando minha relação inicial com Marília, de quem a vê através das lentes do povo, que a conheceu como governante e se identificou, reafirmo que ela é mais do que uma prefeita reeleita em seu quarto mandato. Ela é uma liderança que se sustenta na prática, que oferece horizonte e que reafirma, com serenidade e coragem, que a política só faz sentido quando se conecta às nossas vidas, ou seja, à vida do povo. Portanto, seu legado é patrimônio coletivo e precisa ser defendido e reconhecido como tal.
Adriana Souza é graduada em história e vereadora de Contagem (PT)
(1) Adriana Souza e André Luan: Reconstruir o modo petista de lutar e governar — Blog do José Prata e Ivanir Corgosinho
(2) Idem.
(3) Esquerda deve evitar discussões que dividem os eleitores – 07/05/2025 – Maria Hermínia Tavares – Folha