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Aldo Fornazieri: A república depredada

O golpismo permanecerá latente enquanto o povo continuar entregue a um estado social andrajoso

CartaCapital, 12/01/2023

A vandalização das sedes dos Três Poderes da República por hordas golpistas em 8 de janeiro não foi apenas física ou material. Foi também uma depredação política e moral de uma democracia frágil, cambaleante, quase indefesa. Como consequência dos ataques, formalmente, a democracia saiu fortalecida com a união de todos os poderes, de quase todos os políticos, dos governadores, com as manifestações e posicionamentos das entidades da sociedade civil e com os atos de rua.

Mas que democracia é essa, à qual todos se uniram? É uma democracia que não vem conseguindo resolver os problemas básicos da população. É uma democracia que vive uma crise prolongada de dez anos, que semeia o desemprego, a miséria, a fome, a pobreza, a desindustrialização e a falta de perspectivas de futuro. Uma democracia que oferece migalhas aos pobres e enriquece ainda mais os ricos.

Dizer que a democracia brasileira é sólida e que as instituições funcionam é mentira. Ainda assim, a depredação dessa frágil democracia, alheia aos problemas de seu povo, é imerecida, criminosa, monstruosa. Isto porque depredadores querem substituí-la por um regime tirânico, violento, contrário à dignidade humana e aos valores universais.

A democracia brasileira não será sólida enquanto continuar legado um estado social andrajoso. Não será sólida enquanto a sua existência depender apenas de dois tribunais e, principalmente, de um ministro — Alexandre de Moraes. Não será sólida quando a área de segurança do Exército servir de quintal para terroristas. Não será sólida enquanto as forças policiais protegerem vândalos para que pratiquem a depredação física e moral da República. E não será respeitada enquanto alimenta privilégios criminosos dos políticos e da aristocracia funcional e mantém uma situação inaceitável de pobreza e de desigualdade.

Os atos de depredação física e moral dos Poderes tiveram um evidente comando político, a começar por Bolsonaro.

Têm cúmplices notórios no governador afastado de Brasília, Ibaneis Rocha, e em Anderson Torres. Têm comandos operacionais nos financiadores e nos coordenadores desses atos. Têm apoiadores em setores do Exército e das polícias Militar e Civil de Brasília. Se os culpados, principalmente os mentores, os operadores e os financiadores não forem punidos com a implacabilidade da lei, o Brasil ficará à mercê do crescimento da violência política criminosa.

A responsabilização precisa, porém, ser diferenciada: é preciso distinguir os mentores políticos, os operadores, os conspiradores e os financiadores em relação à massa de manobra, que foi jogada nas depredações acreditando em fantasias mirabolantes. O bolsonarismo usa de uma máquina criminosa de manipulação, de mentiras, de fanatização e de ódio para conseguir os préstimos ilegais de gente simples e humilde. Ao destruírem o patrimônio arquitetônico dos prédios, obras de arte e de cultura e representações da história, os bolsonaristas assumiram a feição de um Estado Islâmico tupiniquim, pois aquele agrupamento terrorista destruiu a cidade histórica de Palmira e outras relíquias do passado, estimulando o embrutecimento, o anticulturalismo e a desumanização.

Ocorreram falhas graves na segurança da República. Não era necessária a existência da Abin, do GSI, do Ministério da Justiça, das inteligências das Forças Armadas e das diversas polícias para saber que os prédios públicos iriam ser invadidos. Qualquer cidadão que se informasse pela imprensa e acompanhasse as redes bolsonaristas saberia disso.

Os cidadãos pagam impostos para manter estruturas de segurança incompetentes, omissas, quando não coniventes.

Os chefes dos Três Poderes precisam restabelecer o senso de ordem, da validez da lei e de normalidade. Caso contrário, o Brasil passará a ser visto como um país politicamente instável, circunstância que prejudicará a sua imagem no exterior, os investimentos e o desempenho da economia. Se a situação do País e do Estado encontrada pelo governo Lula era difícil, agora ficou algo pior.

Faz-se necessário recuperar logo a agenda social, econômica e ambiental, deixando o golpismo para um plano secundário. Garantidos recursos para os programas sociais, o governo precisa, agora, dar uma demonstração de competência e agilidade na área econômica. Somente a percepção de prosperidade com sustentabilidade, inclusão e bem-estar pode estabilizar mais rapidamente o ambiente político e reduzir as tentações do oposicionismo radical.

Além das apurações das responsabilidades, os Três Poderes deveriam criar uma força-tarefa para sanear o País, tanto nas questões operacionais organizacionais dos órgãos de segurança pública quanto no aperfeiçoamento da legislação para proteger a democracia. É preciso coibir terminantemente o envolvimento político, partidário e eleitoral dos membros das forças militares e de segurança. E é preciso criar uma quarentena para que integrantes dessas forças, do Judiciário e do Ministério Público possam ser candidatos depois de deixarem de exercer suas funções.

Os Três Poderes precisam também criar um consenso acerca da necessidade de extirpar o artigo 142 da Constituição.

Ele é a porta de entrada do golpismo na democracia e no Estado brasileiro. A Constituição democrática não pode abrigar um artigo que seja o seu algoz, o seu cavalo de Troia, que seja uma ameaça permanente contra a ordem constitucional e o Estado de Direito, que seja o estandarte dos golpistas.Sem a remoção do entulho autoritário que ainda existe na legislação e sem uma subordinação definitiva das Forças Armadas ao poder civil da República, a sombra da ameaça golpista continuará se projetando sobre o Brasil. Mas o Estado de Direito só será defendido se valer o império da lei e se o povo estiver organizado e mobilizado para fazer valer seus direitos.

Aldo Fornazieri é professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo e autor do livro Liderança e Poder (Editora ContraCorrente).

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