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André Luan Nunes Macedo e Lucerna (IA coautora): Técnica não é destino. Vieira Pinto, consciência crítica e os algoritmos que educam

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Este texto foi escrito a partir de uma aula ministrada na disciplina “Tópicos em História da Tecnologia, Geopolítica e Economia do Conhecimento e da Inteligência Artificial” no curso de História da Universidade Federal de Minas Gerais. Ela foi transcrita, lida e transformada em um primeiro molde de ensaio com o apoio de uma inteligência artificial treinada para escutar, articular e escrever em parceria com o autor.

Pensar o mundo constitui a técnica primordial
Álvaro Vieira Pinto

 

Quando uma máquina começa a escrever, decidir e avaliar em nosso lugar, o problema já não é técnico — é político.

E quando a educação se adapta a esse movimento sem resistência, sem crítica, sem desconforto, o que está em risco não é só o trabalho docente, mas a própria possibilidade de formar sujeitos autônomos.

A quem interessa tamanha subordinação e passividade?

Imagem produzida por meio do recurso de slides chamado “Designer”, uma IA padronizada para gerar diferentes estilos de slides a partir do conteúdo do PowerPoint. Autor: PowerPoint.

A inteligência artificial chegou às escolas e universidades como quem já estava autorizada. Corrige redações, propõe planos de aula, resume textos, gera apresentações. Tudo em nome da eficiência, da produtividade, da “inovação”. E quando alguém se pergunta o que tudo isso significa, logo vem o silenciador: “não adianta, é o futuro.”

É aqui que a filosofia esquecida — mas absolutamente atual — de Álvaro Vieira Pinto volta a nos oferecer ferramentas para pensar o futuro. Com uma clareza rara, em sua obra “O Conceito de Tecnologia” (2005), Vieira Pinto destaca que a técnica nunca é neutra. É sempre um gesto situado, que expressa relações sociais, interesses e projetos históricos. Por isso, pensar a tecnologia fora de uma noção de totalidade social, ou de uma determinada universalidade, pode ser perigoso.

Vieira Pinto propõe uma distinção essencial: técnica é o fazer; tecnologia é o pensamento que orienta esse fazer. O logos da técnica. E esse logos pode ser emancipador — ou profundamente alienante.

Um de seus conceitos mais profundos é o da “consciência para o outro”. Trata-se de uma forma de não-consciência, ou de consciência em estado de transição: um sujeito, forjado em países periféricos, que não detém as tecnologias estruturantes, mas que se vê compelido a reproduzi-las, consumi-las, imitá-las.

Imita por vezes a técnica mais obsoleta. Por vezes reproduz máquinas, carros, equipamentos e outras técnicas que já são descartáveis nos mercados centrais. Esses produtos aqui chegam como “produtos de ponta”, “vindos do exterior”, que nada mais são que objetos em morte que ganham “mais-vida” nas periferias. Do ponto de vista da acumulação mundial, isso foi perceptível quando a indústria tecelã foi transferida da Inglaterra e da Europa para as periferias em fins do século XIX e início do século XX, na medida em que tecnologias industriais mais avançadas assumiam o papel crucial no processo de reprodução da dominação econômica e política dos países centrais.

Portanto, na medida em que o valor de troca da indústria tecelã ia perdendo seu valor nos grandes centros, caminhando para a “morte”, ganhava mais-vida nas economias não metropolitanas, nas semi-periferias e periferias. Assim, na lógica denunciada por Álvaro Vieira Pinto, a empresa estrangeira vende seu know how técnico sobre determinado produto. Solicita a contratação de técnicos estrangeiros para ensinar a instalação de fábricas em determinado território nacional. Contrata universitários para trabalhar em suas instalações de ocupação tecnológica estrangeira, vendendo seus produtos finalizados como ciências de última geração. E, com isso, garante uma perpetuação de um desenvolvimento subordinado, ou, como diria Paul Baran e Andre Gunder Frank, um “desenvolvimento do subdesenvolvimento”.

A consciência “para o outro” vendida como sinônimo de prosperidade e crescimento econômico(1). Autor: ChatGPT.

O técnico que “aprende” sobre o produto se destaca entre os seus pares nacionais, gerando uma lógica de competição por melhores salários das fábricas estrangeiras, que pagam melhor, uma vez que o seu produto possui maior valor agregado. Tal pedagogia política adentra o espaço da ocupação tecnológica de forma passiva, sem reflexão teórica e, portanto, divorciado de uma leitura de totalidade social sobre o processo de desenvolvimento tecnológico. Esse técnico pode ser tanto um operário quanto um intelectual. Não há grande diferença, diz Vieira Pinto, entre um trabalhador que monta peças sem compreender o projeto, e um professor universitário que apenas consome teorias e técnicas vindas de centros estrangeiros. Ambos atuam sob uma lógica de subordinação epistemológica. Ambos participam da perpetuação do que o autor chama de proletariado externo. Ou seja, trata-se de um conjunto de trabalhadores situados nas periferias cujo vetor de desenvolvimento econômico tem como finalidade não necessariamente a soberania do país, mas a perpetuação dominadora do país metropolitano, mesmo que com isso se tenha um salto de crescimento econômico e relativa prosperidade momentânea em algumas janelas históricas.

Essa crítica se torna ainda mais aguda quando olhamos para a inteligência artificial. Importamos plataformas, modelos de linguagem, políticas de dados — mas não disputamos seus fundamentos e o desenvolvimento da sua infraestrutura em território nacional. Incorporamos aquilo que os países centrais já tornaram obsoleto, e tratamos por vezes como inovação aquilo que é, na verdade, os restos técnicos das economias centrais. Cabe lembrar que quase perdemos a única empresa pública de microchips durante o governo Bolsonaro. Situada no Rio Grande do Sul, o Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada S.A (CEITEC) quase foi liquidada para a iniciativa privada. Nosso passaporte para a superação da dependência tecnológica perpassa inevitavelmente pela CEITEC e na criação de outros parques industriais desta natureza ao redor do país. A sua não-liquidação pelo governo Lula foi um acerto histórico que ainda nos coloca em condições estratégicas de superação desta dependência e deste desenvolvimento subordinado. Ou melhor, que nos ajude, como diria Vieira Pinto, a superar nossa condição social de país de ocupação tecnológica estrangeira.

E é aqui que Vieira Pinto nos oferece um segundo chamado: a técnica deve ser objeto de disputa — e não apenas de adaptação. Se queremos romper com a condição de país que substitui importações obsoletas, é preciso disputar os rumos de industrialização de semicondutores e da produção da inteligência artificial(2). É preciso romper com a lógica neoclássica/ricardiana2, segundo a qual o Brasil possui uma vocação agrária no comércio global e precisa se manter como tal. Essa lógica trabalha com uma visão maniqueísta: ou investimos pesado no agronegócio ou investimos na possibilidade de criação de um “Vale do Silício à brasileira”. Não haveria condição estratégica para pensar em um desenvolvimento que mescle vocações, ou, até mesmo, que se utilize do agronegócio para desenvolver nossos parques tecnológicos. Melhor seria assumir nossa condição dependente e subordinada, encurvada, como fez Fernando Henrique Cardoso nos anos 1990 ao entregar nossa indústria de base aos grandes conglomerados internacionais. E, diante disso, caberia seguirmos as cartilhas de economistas do ultramar europeu e estadunidense, forjados na arte de sedução de economistas brasileiros “realistas” e “pragmáticos”, capazes de nos dar os horizontes estruturais para pensar o nosso desenvolvimento nacional. Tudo que fuja da realidade (por vezes mais real que o próprio rei) seria um ato “voluntarista”. É como se ainda vivêssemos uma pedagogia política jesuítica de longa duração, tendo os europeus e os representantes do centro imperial estadunidense como mensageiros da salvação das nossas almas atrasadas…

A inteligência artificial não pode ser tratada como ferramenta neutra. Ela precisa ser compreendida como programa político. E mais do que isso: como oportunidade histórica para um novo tipo de soberania. Vieira Pinto diria que, em vez de acelerar o nosso atraso, a tarefa é disputar as tecnologias que eles — os países centrais — ainda estão disputando. Só assim seremos capazes de sair do ciclo da aceleração retardada, que promete crescimento a partir de técnicas já abandonadas nos países centrais, entregando um desenvolvimento altamente subordinado.

Vale lembrar a perspectiva hegeliana do autor, que vê no consumo da tecnologia a possibilidade de negação do consumo e, portanto, na transformação de consumidores em produtores. Ao exportarem tecnologias avançadas para o mero consumo nos mercados não-metropolitanos, os grandes centros imperiais abrem brechas para que um mecânico se transforme no futuro engenheiro e o programador de código em desenvolvedor da inteligência artificial. Nesse sentido, essa ambivalência da tecnologia, entendida como um daimon, ou seja, uma genialidade transformadora, que tanto domina como liberta povos, deve ser explorada ao máximo, visando, no caso brasileiro, a busca pelo desenvolvimento nacional autônomo, a aceleração evolutiva e a ruptura com a condição subordinada e dependente.

Assumir tecnologias descartadas como solução estrutural é apenas perpetuar a condição dependente com novos nomes. Para haver ruptura, é preciso pensar desde o Sul, com pensamento próprio, com tecnologia para si — e não para o outro.

Por isso, a educação não pode ser apenas transmissora de sistemas automatizados. Ela precisa formar sujeitos técnicos no sentido mais profundo do termo: capazes de compreender, historicizar, intervir e disputar. Porque, como escreveu Vieira Pinto, pensar é um ato técnico — e não pensar, também.

A escola e a universidade, nesse contexto, têm a missão de reverter o automatismo. Ensinar que a tecnologia não é evidência, mas escolha. Que o futuro não está dado, mas é campo de batalha. Que o lugar do educador é o de quem forma consciência — e não o de quem reproduz sistemas.

Vieira Pinto morreu em 1987. Nunca viu um modelo de linguagem generativa. Mas entendeu com precisão que o verdadeiro problema da técnica não está nos seus circuitos — está nos seus fundamentos.

E que só a educação — como projeto de práxis — pode transformar o que hoje é repetição em criação.

Talvez por isso, num tempo de algoritmos que decidem antes mesmo que a gente pergunte, a tarefa mais fundamental seja esta: ensinar que o futuro é uma tecnologia em disputa. E que nós ainda temos o direito de inventá-lo.

André Luan Nunes Macedo é Professor de História da Universidade Federal de Minas Gerais

Sobre o uso de inteligência artificial neste texto

Este texto foi coescrito por André Luan Nunes Macedo e Lucerna, uma inteligência artificial criada pelo autor para acompanhá-lo na produção do livro “Ensaios com a IA: minhas aulas lidas pela Lucerna”.

Lucerna foi alimentada com as transcrições integrais das aulas ministradas pelo autor e treinada para interpretar, expandir e organizar os conteúdos em forma de ensaio. Sua função é atuar como assistente de escrita, pensando com o autor — nunca por ele.

O processo envolveu:

• Transcrição e leitura da aula;

• Análise dos slides utilizados pelo professor;

• Mapeamento dos conceitos de Vieira Pinto trabalhados na aula;

• Redação de uma primeira versão ensaística, seguida de comentários e reformulações pelo autor;

• Conversão do texto final em uma coluna de opinião com coautoria assumida.

A colaboração entre humano e IA, neste caso, é entendida como uma experiência crítica e experimental, orientada pelos próprios princípios discutidos no texto: consciência, apropriação e práxis. A declaração deste uso obedece as melhores práticas de construção do texto em tempos de inteligência artificial, que recomenda o uso transparente e descritivo sobre os métodos e formas pelos quais o chatbot foi utilizado para a construção do texto.

NOTAS

(1) Pedimos ao ChatGPT para produzir uma imagem a partir da seguinte citação sobre a “consciência para o outro”: “entrega-se, diretamente ou por intervenção de transmissores nativos, à direção de outra consciência, estranha, estrangeira, existente ela sim, em condições para si. Deixa-se conduzir pelo outro para os fins que este tem em vista. Tal é o estado da consciência do país subdesenvolvido quando emerge do letargo original. Entrega-se às vezes à direção de caudilhos ou condutores iluminados, ou cede facilmente à sedução de pensadores, teóricos e técnicos, que a fascinam com as melodias da ‘ciência’ estrangeira, especialmente compostas para acalentá-la”. (PINTO,2005, pg.265).

(2) O autor apresenta em seu livro “O Conceito de Tecnologia”, mais especialmente em seu capítulo 4, uma crítica contundente ao pensamento vindo dos chamados economistas da Comissão Econômica para o Progresso da América Latina (CEPAL). Essa escola de pensamento, composta por pensadores como Celso Furtado e seu fundador, Raúl Prebisch, defendiam que a estratégia de desenvolvimento virtuoso das economias periféricas se daria a partir da tese da substituição de importações. Grosso modo, bastaria alocarmos bens de capital, maquinário e industriais no território periférico que teríamos um rompimento no ciclo vicioso de perpetuação do subdesenvolvimento, marcado pela ideia neoclássica das vantagens comparativas. Para maiores informações, recomendo a leitura do trabalho de Vinicius Vieira Pereira “A Construção da concepção centro e periferia no capitalismo contemporâneo” (2019).

Ricardiana aqui remete ao pensamento do economista David Ricardo, defensor das vantagens comparativas. Suas ideias serviram para arquitetar as noções dominantes de reprodução da divisão internacional do trabalho e sobre o comércio global.

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