Aos 14 anos morei nos Estados Unidos. Fui com minha mãe, uma cearense de Araripe de olhos claros que foi fazer parte do seu doutorado na Califórnia, na cidade de Santa Barbara. Meu pai largou o emprego e nos acompanhou, um mineiro branco, calvo, de cabelos e olhos escuros. Quando era mais novo, diziam que eu era a cara do meu pai. Agora que a genética resolveu falar mais alto e eu também assumi sua predisposição de fraqueza capilar, creio que fiquei ainda mais parecido.
Na convivência escolar, era visto do ponto de vista étnico como um latino. Nunca me situaram do ponto de vista racial e cultural ao lado de um branco estadunidense, um caucasiano loiro de olhos claros. Convivi, joguei basquete e fiz amizades com filhos de descendentes mexicanos e negros. Mas também não posso dizer que não tive amizades com os brancos, apesar de mais distante. Na escola enorme que estudei, éramos somente eu e a Raquel de brasileiros.
A Raquel era uma paranaense de cor mais escura. À época poderíamos tranquilamente identificá-la pela pele morena, devido a nossa mestiçagem e pela nomenclatura usada à época. Talvez hoje utilizaríamos a palavra negra para identificá-la.
Lembro que o conflito racial nos Estados Unidos me chocou naquela época, fruto de uma brincadeira que não tinha visto graça alguma ao final. Um amigo, o Julyan, resolveu puxar no recreio uma disputa dos latinos e negros contra os brancos. Nunca havia passado por isso, sendo uma criança criada em um ambiente de classe média no Brasil.
Quando comecei a jogar basquete no Brasil percebi o quanto esse novo espaço me proporcionou a conviver com as diferenças raciais e de classe. Tive amigos de diferentes cores, tonalidades e alturas. Joguei rachas na Quadra do Saudade e ali fiz amigos que até hoje são do meu convívio pessoal. Esse convívio infinitamente mais humanizado na quadra do que o ambiente estadunidense foi importante para criar uma identidade de classe, sabendo que vinha de um estrato médio da classe trabalhadora mais intelectualizada. Foi essa diversidade que me mostrou as diferenças de sociabilidade entre nós e os norte-americanos, que tinham um problema racial grotesco, separatista e altamente intolerante, já naturalizado como brincadeira nas escolas.
É certo que no Brasil o problema racial é evidente. Só quem é cego não percebe que também aqui a herança escravocrata criou um sistema meritocrático altamente conservador, de disparidades de berço para quem quer acessar pelo menos os estratos médios da nossa sociedade capitalista.
Entretanto, é inegável que no Brasil produziu-se uma ambivalência racial: uma sociedade de sociabilidade infinitamente mais sincrética do ponto de vista cultural se comparado aos Estados Unidos e, ao mesmo tempo, violenta do ponto de vista das desigualdades materiais. O racismo de classe – como aponta Jessé Souza (2017) – ainda cumpre um papel excludente. Entretanto, se damos uma volta e vivemos o dia a dia da sociabilidade periférica, percebemos que ali existem diferentes colorações, graças a uma mestiçagem de longa duração. Segundo dados de uma pesquisa coordenada por trabalhadores da USP, essa mestiçagem ocorreu sobretudo durante os séculos XVIII e XIX (1). Uma série de inferências podem ser feitas do ponto de vista histórico que infelizmente não poderão ser analisadas nesse texto.
As descobertas da pesquisa ganharam uma repercussão pública na última semana. As manchetes logo vieram dizendo que o “Brasil é o país mais miscigenado do mundo”. Entretanto, a pesquisa confirmou algo que os chamados “freyreanos de esquerda” (2) – situo nesse espectro os admiradores da obra de Gilberto Freyre e que estavam no campo progressista como Darcy Ribeiro, Gilberto Felisberto Vasconcellos e outros intelectuais- tanto diziam e ainda dizem: nossa sociedade produziu uma mestiçagem violenta, fruto dos abusos praticados pela Casa Grande na sua relação com a Senzala. Segundo os pesquisadores, há uma disparidade genética do ponto de vista da nossa descendência quando analisamos o gênero: 77% da nossa herança genética feminina vem de africanas e indígenas, enquanto que 71% da nossa herança genética masculina vem de europeus (3).
Essa dialética do “Senhor e do Escravo” hegeliana e abrasileirada por Gilberto Freyre mostra como a violência sexual foi praticada de forma deliberada em nosso país, gerando o que Darcy Ribeiro chamou de ninguemdade (1970): não sabemos nossas origens, mas temos condições de afirmar que ela foi uma fusão do encontro contraditório e bárbaro destas raças que criou essa brasilidade. Entretanto, o brasileiro fez do limão uma limonada: desta sociabilidade colocou Alan Kardec para dançar macumba, subverteu a ordem dominante da Igreja Católica e as sintetizou com santidades africanas. Produziu com isso uma diversidade.
No Brasil, criou-se um verdadeiro caldo cultural de sociabilidade que os estadunidenses sempre foram forçados deliberadamente a evitar, com leis de segregação racial em vigência no país até os anos 1960 e a ideologia da pureza – a tal da “one drop rule”, ou, uma gota de sangue – que fazia Hitler morrer de inveja. Nunca é tarde para lembrar que o projeto nazista tinha como inspiração a segregação racial estadunidense e que a obra de Gilberto Freyre (2003), à época, representou uma confrontação a ideia racialista dominante, segundo a qual nossa mestiçagem havia produzido uma decadência insuperável…
A pesquisa recente dos geneticistas da USP vem mais uma vez afirmar que nós temos um patrimônio de diversidade não somente genético, mas cultural e social a ser defendido e reivindicado para o resto do planeta. Portanto, temos uma universalidade a ser exportada e reivindicada, algo que nenhum outro país possui como nós possuímos. Aqui foi o encontro de povos que, mesmo estando em continentes semelhantes, não se encontraram. Quão melancólico e, ao mesmo tempo, belo, significa esse movimento?
Por isso, é preciso retomar uma universalidade perdida e que precisa ser ressignificada. Temos todos os povos do mundo em um mesmo corpo. É preciso entender a questão nacional como nosso universal a ser reivindicado. Nesse caso, não deixo de me lembrar de Alberto Guerreiro Ramos (1996) e sua noção de redução sociológica, na qual o autor coloca a questão nacional uma necessidade de mediação para a construção de uma universalidade possível (4). É preciso abraçar a diversidade como utopia que já se concretizou parcialmente, buscando com isso a afirmação de uma sociedade mais tolerante e menos segregada do ponto de vista racial, social e econômico.
Enfim, a pesquisa apresentada deve ser incorporada novamente a nossa narrativa política. Se queremos ganhar do extremismo e da falta de educação, nada mais justo que fazê-lo reivindicando nosso patrimônio sociocultural, buscando retomar a partir dos ensinamentos da pesquisa, uma pedagogia política da tolerância que defenda a diversidade como um todo. A extrema-direita não aguenta a tolerância. Aliás, ela não aguenta ser brasileira, por isso está, a todo momento, buscando imitar ou seguir as ordens do Partido Republicano…
André Luan Nunes Macedo é Professor de História da Universidade Federal de Minas Gerais
Notas:
(1) Ver o artigo: Admixture’s impact on Brazilian population evolution and health.
(2) Silvio Almeida em entrevista no Roda Viva é quem faz essa brilhante analogia entre Hegel na Alemanha e Gilberto Freyre no Brasil. Segundo ele, “Hegel está para a Alemanha, assim como Gilberto Freyre está para o Brasil: existem os de esquerda e os de direita”. Apesar de me sentir mal com o fato de ter de citá-lo por conta dos eventos recentes durante sua curta passagem no Ministério da Justiça, seria um ato de desonestidade intelectual não referenciar o responsável pela brilhante sacada
(3) Brasil é o país mais miscigenado do mundo, conclui pesquisa inédita | Jornal Nacional | G1
(4) Diz o autor: “[A redução sociológica] É um procedimento crítico-assimilativo da experiência estrangeira. A redução sociológica não implica isolacionismo, nem exaltação romântica do local, regional ou nacional. É, ao contrário, dirigida por uma aspiração ao universal, mediatizado, porém, pelo local, regional ou nacional. Não pretende opor-se à prática de transplantações, mas quer submetê-las a apurados critérios de seletividade. Uma sociedade onde se desenvolve a capacidade de auto articular-se, torna-se conscientemente seletiva. Diz-se aqui conscientemente seletiva, pois em todo grupo social há uma seletividade inconsciente que se incumbe de distorcer ou reinterpretar os produtos culturais importados, contrariando, muitas vezes, a expectativa dos que praticam ou aconselham as transplantações literais” (RAMOS, 1996, p. 73).
Referências Bibliográficas:
FREYRE, Gilberto.Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal. São Paulo: Global, 2003, 48ª Edição.
RAMOS, Alberto Guerreiro. A Redução Sociológica – Introdução ao Estudo da Razão Sociológica. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996.
RIBEIRO, Darcy. As Américas e a civilização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970.
SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017.