Contra o empobrecimento da política e a renúncia à totalidade
Há uma pergunta que paira como espectro sobre os debates contemporâneos e da política: quem tem medo do universal? Essa nos parece ser a preocupação da prefeita de Contagem. Em algumas de suas entrevistas, Marília Campos faz um elogio e uma defesa sobre a busca por uma política universal do campo progressista. Preocupação essa que também é nossa e que enxergamos semelhanças incríveis entre sua práxis política e a da vereadora mais votada da história de Contagem, Adriana Souza.
A pergunta, por si só, já parece deslocada num tempo em que as identidades se sobrepõem, as subjetividades se fragmentam, e qualquer apelo à totalidade é rapidamente associado a uma ambição autoritária. E, no entanto, é justamente por isso que ela precisa ser feita. Porque o medo do universal, hoje, é também o sintoma de uma política acuada — capturada por armadilhas conceituais e pragmáticas que nos afastam da tarefa de pensar e realizar a justiça social em em escala. Pensamos que por vezes a soma do vareja conseguirá produzir um pensamento no atacado, quando, diferentemente da matemática, na teoria social a ordem dos fatores altera em larga escala o produto que oferecemos. Nesse caso, o produto seria a política e a organização de um amálgama social mobilizador amplo, que isole a violência política, a falta de tolerância, a excrescência e a falta de pudor civilizatório.
Para responder a essa pergunta, precisamos retornar ao próprio conceito de universalidade. E ao fazer isso, não se trata de repeti-lo como foi imposto, mas de rastrear sua história e disputar seus sentidos. O monopólio do universal, como bem nos alerta a crítica decolonial, é uma invenção moderna europeia, consolidada com a expansão imperialista — ou, como diria Enrique Dussel (1993), com o Encobrimento do Outro iniciado em 1492. O europeu ocidental, ao atingir todas as partes do globo, passou a se ver como o único sujeito legítimo da universalidade. A razão, a ciência, o direito, a história — tudo sob sua chancela tornou-se universal, enquanto os demais saberes e práticas foram reduzidos à condição de local, cultural, ou simplesmente “primitivo”. Como nos alerta Samir Amin (1989), em contraposição ao universalismo eurocêntrico só nos restaria singularidades provinciais.
A crítica a esse eurocentrismo é fundamental. Mas ela nos coloca diante de uma encruzilhada: ao desmascarar o monopólio do universal, devemos também abandonar a própria ideia de universalidade? Minha tese é que essa renúncia seria empobrecedora1. Abandonar o universal é entregar à extrema-direita e aos setores mais conservadores o monopólio da discussão sobre o todo que nos organiza do ponto de vista econômico, político e social. Seria entrar na arena de combate dos estereótipos e maniqueísmos particularistas produzidos pela extrema-direita, que a todo momento quer identificar uma “mulher de esquerda” como alguém que só quer falar de “feminismo”, por exemplo. Em vez disso, propomos uma outra via: reconstruir o universal. É o caso da proposta metodológica feita por Andre Gunder Frank (1998) ao contrapor o eurocentrismo a uma perspectiva globalcêntrica de visão de mundo. Nesse caso, o holismo reaparece como teoria e que desenha um método. Para traçar uma estratégia política, é preciso, portanto, compreender como as partes se conectam em um todo.
Nesse sentido é preciso reconstruir o universal desde outras práticas e experiências, a partir de uma política que não tema o todo, mas que o requalifique com base na escuta, na justiça e na complexidade. Na escuta porque é impossível fazer isso sem ouvir a informação e decodifica-la para nossa gramática política; na justiça porque é sempre importante ter a temperança e moderação para conseguir avaliar a informação que nos é dada pelo conjunto da população; e na complexidade porque não é possível vislumbrar justiça social sem entender as múltiplas variáveis que compõem um determinado fenômeno ou problema. Carlos Matus (1996; 1996) também apela para essa visão, buscando traçar um Planejamento Estratégico Situacional que tenha como princípio uma horizontalidade científica, capaz de promover diálogos interdisciplinares. Em linhas gerais e a título de exemplo, nem sempre o Ministro da Saúde consegue resolver os problemas semi-estruturados2 que envolvem compreender uma pandemia se não conta com uma troca dinâmica e rápida entre diferentes departamentos, como de infraestrutura, educação e indústria.
Essa aposta se torna mais concreta quando olhamos para experiências reais, como a que ocorre em Contagem, onde a prática política de figuras como a Prefeita Marília Campos e a vereadora Adriana Souza oferece uma chave para repensar o universal. Marília, com sua escuta atenta e ação resolutiva, não atua apenas em nome de uma identidade ou de uma pauta fragmentada: ela articula o tecido social em sua diversidade e se projeta como agente de um cuidado comum. Adriana, por sua vez, atua na perspectiva de um todo — busca interpretar o território na sua multiplicidade de classes, de demandas, de sensibilidades, construindo uma fala que não se curva à lógica das trincheiras, particularismos. Ambas não permitem se essencializarem. Não falam somente de um lugar social. Pelo contrário. Pelo que tenho percebido e vivido, sabem que falam do lugar das mulheres, mas não se permitem aprisionar a esse local. São hábeis ao driblarem o essencialismo e não aceitam serem julgadas por uma única representação.
Aqui, o universal não é abstração, mas prática situada. No caso do mandato da Adriana, a prática universal se dá por meio do uso das tecnologias, que nos ajuda a ter uma visão do tatu e do pássaro: o tatu que rastreia o chão da cidade, colhendo as demandas, e o pássaro — neste caso, uma inteligência artificial como o Juscelino — que sistematiza, visualiza, organiza. Uma dialética do território, onde tecnologia e política se combinam na construção de um olhar holístico.
E é justamente esse olhar holístico que permite compreender as contradições sociais em movimento. O marxismo, nesse ponto, continua sendo uma referência inescapável — não como dogma, mas como método. O Marx que nos interessa não é o maniqueísta de folhetim, mas o analista das classes em movimento, das contradições entre capital e trabalho, e das possibilidades históricas de transformação. Pensar o universal é também reivindicar esse método de leitura totalizante da realidade, sem o qual ficamos reféns da pulverização dos discursos e da impotência das lutas.
Por isso, a extrema-direita se vê tão incomodada com figuras como Marília e Adriana: porque elas não aceitam a armadilha da fragmentação. Porque se recusam a responder apenas por particularismos e afirmam, com coragem, um projeto político de cidade — onde o todo é mais que a soma das partes. E onde o universal não é a repetição do mesmo, mas a construção comum do diverso.
Concluímos, então, que o medo do universal não pode ser o nosso. Ele pertence àqueles que temem o comum, que rejeitam a redistribuição, que preferem o conforto das bolhas à aventura da democracia real. Assumir a tarefa do universal no século XXI é um gesto de ousadia política e de responsabilidade ética. É a escolha de quem quer, enfim, reorganizar o mundo — e não apenas descrevê-lo em sua fragmentação.
André Luan Nunes Macedo é Professor de História da Universidade Federal de Minas Gerais
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Referências bibliográficas
AMIN, Samir. El eurocentrismo. Cidade do México: Siglo Veintiuno editores, 1989.
DUSSEL, Enrique. O Encobrimento do Outro (a origem do “mito da modernidade”). Petrópolis: Vozes, 1993.
FRANK, Andre Gunder. Reorient: global economy in the Asian Age. Berkeley & Los Angeles: University of California Press, 1998.
Matus C. Estratégias Políticas: Chimpanzé, Maquiavel e Gandhi. 2ª edition. São Paulo: Fundap; 1996
Matus C. O Método PES: entrevista com Matus. 2ª edition. São Paulo: Fundap, 1996.
MARX, Karl. A ideologia Alemã: Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.