Introdução
A dualidade entre as duas faces de uma cidade, a cidade legal, moldada pelas normas jurídicas, e a cidade real, constituída pela realidade social e econômica, é um fenômeno que desafia a eficácia do Direito. Esta dualidade, que às vezes se mostra como oposição, tem especial interesse no estudo do ordenamento urbano e do sistema tributário. Partindo da Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen, que postula o Direito como um sistema normativo autônomo e hierárquico, em que o dever-ser representa a estrutura legal idealizada e o ser a realidade, no caso o tecido urbano, percebe-se que esta muitas vezes se distancia daquela. Em cidades como a nossa Contagem, essa discrepância se manifesta de forma clara: imóveis urbanos com proprietários reais diferentes dos que constam nos registros, loteamentos irregulares e conflitos entre posseiros e proprietários formais geram insegurança jurídica e dificuldades na definição dos sujeitos passivos das obrigações tributárias inerentes à propriedade.
A Norma Jurídica e a Realidade Fática em Kelsen
Para Kelsen, o Direito é um sistema de normas que regula a conduta humana, sendo a validade de uma norma dependente de sua conformidade com uma norma superior. No entanto, essa pureza lógica do Direito, que valida uma norma pela sua coerência formal, pode não conduzir perfeitamente a sua adequação à realidade social. O próprio autor identifica dois mundos, o ser (realidade) e o dever-ser (norma/lei). Enquanto a lei estabelece critérios formais para a propriedade, o uso e a tributação de imóveis, a prática cotidiana muitas vezes ignora ou contorna essas regras.
Em Contagem, por exemplo, é comum que imóveis sejam comercializados apenas por meio de contratos de compra e venda, sem a devida averbação no registro de imóveis, processo oneroso e burocrático. Isso gera uma dualidade: de um lado, o animus domini (a intenção de possuir como dono) está com o possuidor real; de outro, o registro cartorário ainda aponta o antigo proprietário como titular formal. Nesses casos, a autoridade tributária enfrenta dificuldades para identificar o sujeito passivo responsável pelo IPTU: o proprietário registral, primeiro na linha de prioridades para figurar como contribuinte do imposto, geralmente não é quem está com o domínio da propriedade, não é o real titular.
Loteamentos Irregulares e a Ineficiência do Poder Público
Outro problema recorrente são os loteamentos não aprovados pela prefeitura, que proliferam em áreas periféricas. Esses territórios, embora ocupados e comercializados, não possuem registro formal, o que dificulta a regularização fundiária e a cobrança de tributos.
Os moradores, mesmo exercendo a posse, não têm segurança jurídica sobre suas propriedades, ficando à margem dos serviços urbanos básicos. Este fenômeno não escolhe classe social: pode aparecer em ocupações de baixa renda ou se expressar em condomínios para classes abastadas. Também não é raro avançar sobre áreas de preservação. O lotador irregular burla não só as regras urbanísticas, como também não demonstra qualquer preocupação com o meio ambiente.
Essa situação cria um paradoxo: a cidade real avança sobre terrenos não regulados, enquanto a cidade legal, por descaso ou ineficiência do poder público, não consegue acompanhar esse crescimento. O resultado é um vácuo de governança, onde direitos não estão disponíveis à população e obrigações não lhes são facilmente exigíveis.
Consequências Tributárias e Urbanísticas
A falta de fidedignidade do registro imobiliário, pela existência de um proprietário diferente de quem detém a posse efetiva, gera impactos diretos na arrecadação municipal. Se o contribuinte não está devidamente identificado, o município perde receita, comprometendo sua capacidade de prover serviços públicos e investir em infraestrutura urbana. Além disso, a irregularidade fundiária dificulta o planejamento urbano, levando a ocupações desordenadas e à precariedade na presença do poder público nos espaços urbanos, sem falar nos danos ambientais.
Ao não identificar o real sujeito tributário, quando o IPTU não é pago, os processos judiciais de cobrança esbarram na lei, que indica aquele que está como proprietário no registro como devedor. Isto dirige os meios de coerção jurisdicional, como a penhora de rendas ou veículos, à pessoa errada, quando o verdadeiro devedor não tem qualquer desconforto pelo não cumprimento de sua obrigação. Além disto, a penhora do próprio imóvel tem pouca efetividade, pois é difícil alguém ter interesse em adquirir em leilões judiciais imóveis em que residem pessoas comuns.
No plano urbanístico, a proliferação de loteamentos irregulares, subverte as regras de posturas, criadas para que seja bem ordenado o espaço urbano. Ruas estreitas, falta de saneamento básico, ausência de rede de drenagem, excesso de impermeabilização do solo em áreas de contribuição de importantes bacias hidrológicas, são exemplos de situações criadas por esta prática. Os problemas vão desde a demanda por serviços ao poder público que deveriam ter sido fornecidos pelos loteadores, até a ocorrência de tragédias decorrentes de eventos climáticos que poderiam ter sido evitadas se os empreendimentos tivessem seguido as regras específicas.
A Atuação da Secretaria de Fazenda de Contagem na Redução da Discrepância entre a Cidade Real e a Cidade Legal
A Secretaria de Fazenda de Contagem vem implementando uma série de medidas com o objetivo de diminuir as consequências da distância da cidade real para a cidade legal, buscando garantir maior efetividade à arrecadação tributária.
Um trabalho que merece menção é o cadastramento de imóveis por fração, realizado por iniciativa dos interessados ou por meio de ações fiscais em áreas com alta informalidade. Este trabalho tem sido feito em diversas regiões da cidade, como Colonial, Xangrilá e Chácaras Cotia, onde os auditores fiscais da prefeitura identificam os ocupantes reais dos imóveis e os cadastram. Essa estratégia não apenas permite a cobrança mais justa do IPTU, mas também estimula os moradores a assumirem a responsabilidade tributária de seus imóveis, por meio da individualização das guias de cada residência e da indicação correta do real proprietário.
No que se refere aos instrumentos legais, a Secretaria de Fazenda os tem aprimorado com o objetivo de facilitar a regularização. A atualização iminente dos Decretos Municipais que tratam da sujeição passiva do IPTU trará avanços significativos, como a aceitação da Escritura Pública Declaratória como documento válido para averbação de propriedade. Essa medida simplifica o processo para moradores que, mesmo sem registro cartorário, possuem contratos de compra e venda ou outros comprovantes de posse.
Outro marco importante foi a Lei Municipal nº 379/2025, que concede isenção tributária a comerciantes prejudicados por obras públicas. Essa legislação, discutida em texto anterior publicado neste mesmo espaço pelos autores, demonstra o compromisso da administração municipal em equilibrar a exigências fiscais com a realidade econômica dos contribuintes.
Conclusão: Rumo a uma conciliação entre o Formal e o Real
Apesar das dificuldades inerentes à complexidade urbana, Contagem tem buscado soluções práticas para reduzir a lacuna entre a cidade legal e a cidade real. As ações da Secretaria de Fazenda, desde o cadastramento por fração até a modernização dos instrumentos legais, mostram que é possível visar a aplicação da norma jurídica à cidade real, na busca pelo aumento da arrecadação com segurança jurídica.
Ainda há um longo caminho a percorrer. A informalidade persiste em muitas áreas, e a efetividade das políticas públicas depende não apenas da atuação do poder municipal, mas também da conscientização dos cidadãos sobre a importância da regularização. O desafio, portanto, é contínuo: fazer com que a cidade legal não seja um obstáculo, mas sim uma ferramenta de inclusão e desenvolvimento urbano sustentável.
Enquanto a teoria de Kelsen nos lembra que o Direito é um sistema normativo autônomo, a realidade de Contagem nos ensina que sua eficácia depende da capacidade de adaptá-lo às necessidades concretas da população. Os trabalhos realizados são passos importantes nessa direção, mas a verdadeira conquista será quando a distância entre cidade real e a cidade legal diminuir a ponto de não interferir na coexistência harmônica entre elas, com direitos e obrigações claros para todos, cidadãos e poder público.
Carlos Frederico é Secretário de Fazenda em Contagem, Auditor Fiscal do Município. Economista (UFJF) e Bacharel em Direito (UFMG).
Keith Richard Brauer é formado na USP e Mestrando em Economia na UFMG. Assessor de Gabinete na Secretaria Municipal de Fazenda de Contagem.