Na tarde do dia 16 (dezesseis) de outubro de 2023, a Polícia Civil de Minas Gerais foi a público desmentir uma injúria lançada em redes sociais, contra a Prefeitura de Contagem, cuja repercussão foi tamanha que teve espaço até na grande mídia. A calúnia expunha uma narrativa de que a comida servida no Hospital Municipal de Contagem seria de péssima qualidade visto que foram encontradas larvas em uma das refeições servidas. Pois bem, laudo feito pela Fundação Ezequiel Dias, que é um instituto de ciências biológicas e tecnologia, vinculado à Secretaria de Saúde do Estado de Minas Gerais; pela Vigilância Sanitária de Contagem, órgão pertencente ao Sistema Único de Saúde (SUS) e por um perito da Universidade de Viçosa, uma das instituições mais respeitadas do país, atesta que as larvas foram colocadas na refeição propositalmente. Dada as condições da comida, era impossível a reprodução das larvas. Além disso, o pai da criança que recebeu a comida disse que o gosto estava normal. Não estamos falando aqui de mensagens de whatsapp nem de achismos, mas de instituições sérias e renomadas, com reputações ilibadas emitindo um laudo científico sobre a situação. A mentira está desmascarada, a farsa caiu por terra, a fraude acabou. Só falta, agora quem inventou essa mentira ser pego e arcar com as consequências.
Óbvio que, hoje, muitas pessoas vivem em universos paralelos cuja verdade é muito mais uma escolha da vaidade do que o resultado de uma análise a partir de preceitos racionais.
Existem, também, aqueles que, simplesmente, ignoram a verdade por interesses nefastos, que querem se promover em meio ao “circo pegando fogo”. São esses os agentes do caos, pessoas perigosas que não medem as consequências de uma mentira desse vulto. Giuliano Da Empoli na obra clássica Os Engenheiros do Caos afirma que: “Naturalmente, como as redes sociais, a nova propaganda se alimenta sobretudo de emoções negativas, pois são essas que garantem a maior participação, daí o sucesso das fake news e das teorias da conspiração. (,,,)”
Não existe inocência e nem ingenuidade quando alguém premedita e difunde uma mentira tal qual a das larvas. São muitos os exemplos de mentiras que causam consequências nefastas. Ainda tomando emprestada uma citação de Giuliano Da Empoli: “(…) Na Birmânia, ONGs denunciam, há anos, o papel exercido pelas comunicações via facebook na perseguição da minoria muçulmana dos Rohingyas. Em 2014, um extremista budista provocou uma série de linchamentos ao compartilhar na plataforma a falsa informação de um estupro. As autoridades foram obrigadas a bloquear o acesso ao facebook para interromper o turbilhão. Um estudo sobre milhares de postagens foi capaz de traçar os contornos de uma verdadeira campanha que desumaniza os Rohingyas e promove o recurso à violência até chegar ao extremo do genocídio.” Os Rohingyas são uma minoria muçulmana que vive em Mianmar, país de maioria budista. Eles sofrem perseguições desde 1962 e cerca de um milhão deles vivem no maior campo de refugiados do mundo na atualidade, que fica em Bangladesh, segundo a Organização Médicos Sem Fronteiras. Mentiras propagadas por redes sociais têm tornado a situação desse povo ainda mais difícil. Ou seja, o difusor das mentiras é tão responsável pelo genocídio do que quem aperta o gatilho para matar.
Não precisamos ir até Mianmar para testemunharmos tragédias provocadas por mentiras e conspirações. Em 2014, Fabiane Maria de Jesus, moradora da cidade do Guarujá no estado de São Paulo, foi espancada até a morte por conta de uma fake news postada em maio daquele ano. Ela foi confundida com uma suposta sequestradora de crianças que praticava rituais de magia negra quando saia de casa para ir à igreja. Fabiane não viu a netinha nascer. A mentira difundida resultou em uma vida perdida e numa família destruída. Os cinco principais agressores receberam pena máxima e tiveram que indenizar a família da vítima. O problema é que a vida não é uma graça passível de ser restaurada.
Em 2022, na cidade de Papatlazolco, no México, Daniel Picazo com seus 31 anos foi acusado de estar no local para sequestrar crianças. A notícia foi difundida pelo Whatsapp. Uma multidão de cerca de 200 pessoas encurralaram, o espancaram, jogaram gasolina sobre seu corpo e atearam fogo. Daniel, que jamais se envolvera em qualquer caso de sequestro, foi queimado vivo vítima de uma mentira que, certamente, não surgiu do nada.
A movimentação dos órgãos competentes, no que tange à proposição de leis e condenações por difusão de fake news, evidencia o perigo que ronda o mundo virtual e o extrapola no contexto atual. O perigo não é somente de atentado à honra. As mentiras colocam em xeque as democracias e banalizam a vida humana. É bem verdade que a estratégia de mentir para difamar uma pessoa ou um governo não é nova. Entretanto, hoje, existe um agravante: as novas tecnologias. As mentiras tomam os espaços com vertiginosa velocidade.
Estratégias com base em recursos tecnológicos vêm sendo cogitadas para combater a disseminação de notícias falsas. Seria simples se pudéssemos tratar as fakes com mentiras pura e simplesmente, mas não é assim que as coisas aparecem. Defendemos que Fake News não é antônimo de mentira, mas sim manifestações verossímeis que distorcem a realidade, muitas vezes se ancorando em noções e preconceitos presentes no imaginário da população e que se intensificam em momentos de crises institucionais. Ou seja, existe uma desconfiança das pessoas com o sistema de saúde no geral que não nasceu hoje e que o atual governo, profissionais da saúde e pessoas que valorizam a vida trabalham muito para desconstruir. Se aproveitando dessa fragilidade, onde aparecem as larvas?
Se aparecem em uma escola a repercussão não seria tanta porque boa parte da população cresceu tendo acesso à merenda escolar, portanto existe uma construção de confiança maior. Ou seja, não da para enxergar nesse contexto uma certa lógica de premeditação?
Quando se difunde uma mentira, todos são responsáveis pelas consequências dessa ação. Henry Jenkin, Joshua Green e Sam Ford no livro intitulado Cultura da Conexão, alertam para uma imprecisão interpretativa sobre circulação e notícias na Internet que tem no uso do termo “viralização” a chave para um erro. Viralizar é um termo retirado da bilologia, que pressupõe a propagação de uma doença. A ideia de que um conteúdo pode ser “viral” parte da concepção que o elemento certo jogado nas redes pode ganhar aderência por meio de ações passivas dos usuários. Como se os elementos certos pensados por agentes culturais ganhassem a Internet tendo como base usuários cujo comportamento automatizado e passivo bastasse para a propagação de determinado conteúdo.
Jenkins, Green e Ford, chamam a atenção para a inadequação e para os perigos do uso deste termo, já que em sua essência ele pressupõe a passividade dos indivíduos que difundem as mensagens em suas redes sociais. Usando uma expressão da medicina “diagnósticos errados nos levam ao remédio errado”. “Propagação” seria, na visão dos referidos autores, um termo mais adequado para tratarmos da circulação de informação nas redes sociais. Ou seja, a notícia só se propaga se encontrar um caminho para isso e cada encaminhar, cada pessoa, é detentor de responsabilidade. E se a notícia das larvas desencorajasse um pai a levar o filho para o Hospital agravando um quadro clínico? Ou se essa notícia comprometesse a confiança no Hospital Municipal fazendo com que um indivíduo que pudesse ser tratado em Contagem decidisse se deslocar para Belo Horizonte e sofresse algo no caminho? De quem seria a responsabilidade por essa vida?
Instituições confiáveis comprovaram a sabotagem, a polícia confirmou a sabotagem. A lição que fica é: quantas pessoas poderiam ser prejudicadas com essa mentira? Será que ainda existem indivíduos dispostos a difundir e defender mentiras que matam? Fica a questão.
Chico Samarino é formado em História pela Universidade Federal de Ouro Preto, mestre em História e Culturas Políticas pela Universidade Federal de Minas Gerais. Atualmente, trabalha na Secretaria de Cultura da Prefeitura de Contagem.