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Cidade dos Sonhos, por Lucas Fidelis

Mudei-me para Contagem aos quatro anos. Em 1988. Ano em que Ulysses Guimarães hasteava a Constituição Cidadã com a promessa de tempos melhores. Os anos de chumbo deixavam marcas indeléveis na aura de toda uma gente.

Tempos antes, no pós-guerra, e década de 60, desenhava-se um turbilhão de movimentos e sentimentos. A efervescência de uma década inteira, inexoravelmente, reverberava aos quatro ventos.

Na onda beatnik, Jack Kerouac guiava Allen Ginsberg, Neal Cassady, e tantos outros, cruzando a Rota 66 californiana, na busca espiritual, do não-conformismo e da liberdade.

Joe Cocker interpretava “With a little help from my friends” no alucinante e lisérgico Festival de Woodstock.

Em Paris, Maio de 68, Daniel Cohn-Bendit, o “Dany Le Rouge”, enfrentava as estruturas conservadoras e autoritárias, em meio a barricadas, na Quartier Latin, com a imponente retaguarda da Sorbonne.

Já sob a égide da ditadura civil-militar, a industrial Contagem de 68, intrínseca ao espírito do espaço-tempo, não se quedou inerte. Muito antes pelo contrário. Tomou as rédeas e, em um ato de inconformismo e coragem, promoveu a primeira greve pós-golpe militar, culminando num precursor e fundamental movimento operário do país, do qual foi tomado como inspiração e alastrado para diversos cantos do nosso continente.

Uma grande conquista. Jarbas Passarinho baixou o tom de seu arrulho. O general Costa e Silva cedeu. Uma ruptura sem precedentes.

Nos tempos seguintes, o desenrolar da Guerra Fria. O boicote nas Olimpíadas de Moscou. As lágrimas do Ursinho Misha. Em 1982, a “Tragédia do Sarriá”- um divisor de águas do futebol-arte e da prevalência da racionalidade estratégica e tática. Logo depois, o “chumbo trocado” nas Olimpíadas de Los Angeles, em 1984.

Das primeiras lembranças políticas, o impeachment de Fernando Collor de Mello. No extinto, Colégio Anchieta, assistíamos ao começo do fim do mandato do “Caçador de Marajás”. Na descaída da Rua do Registro. A cada “sim” uma comemoração, mesmo compreendendo muito pouco ou quase nada do que se passava na Câmara Baixa do país. Decerto, a primeira instabilidade política da recente democracia brasileira.

Lembro-me, daquele governo, de ter ficado bastante impressionado com as usuais declarações firmes da então Ministra da Fazenda, Zélia Cardoso. E de uma capa da Revista Veja estampando os cadáveres de Paulo César Farias e Suzana Marcolino estirados sobre a cama de uma casa de veraneio.

Da década de 90, as recordações da política local, na cidade de Contagem, eram, tão somente, de nomes de governantes, santinhos e imagens.

Naquela época, naturalmente, não tinha condições de um aprofundamento sobre os meandros e pormenores políticos; e nem de quais caminhos trilharíamos. Era apenas uma noção superficial de que prefeitos e vereadores promoviam mudanças na cidade.

Percorrendo mais sobre as memórias e nostalgias políticas e gerais, sem o rigor da cronologia, recorre-se aos muros grafados com as insígnias de Altamir Ferreira e Ademir Lucas. Num nível federal, um incessante: “Quércia vem aí”. Ilumina-me pela clarividência as intensas e profícuas exposições e vernissages na Casa da Cultura. E a faixa anunciando o show de Belchior ou Nicki French. Lembranças das aulas de catecismo na antessala da sacristia da Matriz de São Gonçalo do Amarante. As eleições de Newton Cardoso e a posterior assunção de Paulo Mattos. Em 1996, o início da trajetória política na cidade da então candidata à Prefeitura, Marília Campos.

Da Casa Legislativa, nos anos 2000 em diante, uma proximidade com o saudoso Ailton Diniz; um tipo deveras sábio e generoso, o que rendia boas conversas; muito embora, como já mencionado, não tivesse a maturidade suficiente para uma grande imersão nas questões mais complexas. Da “velha guarda”, daqueles tempos de Câmara Municipal, Arnaldo e Teteco seguem firmes.

Nunca tive- à época- um grande interesse ou envolvimento na política municipal- o que é um grande equívoco; sabia por alto dos andamentos das políticas públicas da municipalidade e de seus personagens. Muito embora tivesse ímpeto e curiosidade por assuntos políticos, e sobre vários temas, mas em um cenário mais amplo e menos específico.

Os anos se passaram, o amadurecimento recrudesceu; a leitura, quase que obsessiva, fez-se práxis; O ano de 2019 tornou-se um período de muita incredulidade em nossas perspectivas. De um mandatário federal caricato eleito, oriundo do mais baixo clero político, estimulado e incessantemente divulgado em programas popularescos nos idos de 2010; ato contínuo, o fortalecimento de ideias de Olavo de Carvalho e seus sectários; tudo isso acompanhado de um novo ciclo de extrema direita mundial, como Viktor Orbán, Andrzej Duda, Rodrigo Duterte e, sobretudo, Donald Trump, guiado por seu guru, Steve Bannon, o qual exerceu, também, movimentos e fundamentais influências na eleição do Brasil.

De fato, uma época atípica, insólita, mormente, para minha geração- Millennials-, de intensa polarização, reflexão, revisão e reconstrução das bases políticas.

Nesse ínterim, da angústia de tempos soturnos, por meio de uma Conselheira Tutelar da época, Iara Librelon, conheci o perspicaz professor José Rodrigues da Silva, a quem tenho um grande apreço- acriano de Porto Walter; contemporâneo e com influências de Chico Mendes e da militância dos seringueiros; sempre atuante e presente nos governos progressistas da cidade- que promovia no “Empório do Zé”, um reduto localizado à Rua Monsenhor Bicalho, eventos culturais, históricos e políticos.

Eram dias e noites de desfrutes, debates, palestras, com a presença de políticos, militantes, acadêmicos, intelectuais, membros da comunidade; com um clima sempre harmônico, e, de certa forma, um bálsamo para nossos anseios e receios. Deleitávamos ao som de Chico Buarque, Belchior, Clube da Esquina, Caetano e Gil, Novos Baianos, Buena Vista Social Club, Mercedes Sosa, Cidadão Quem, Los Hermanos, e tantos mais; vez ou outra, Mojitos acompanhavam os eventos ao bom estilo “Ernest Hemingway”, com as boas referências das boemias e madrugadas da “La Bodeguita del Medio”.

De todo um clima, polarizado e deturpado, no país, e com as eleições municipais iminentes, a Cidade clamou pela candidatura da psicóloga Marília Aparecida Campos.

De trabalhos extremamente consolidados de anos anteriores- seja na militância do Sindicato Bancário, na Prefeitura de Contagem, no Parlamento- a ouro-branquense, lapidada em Uberlândia, reluzia credibilidade e confiança.

Com a chancela de um robusto aporte, a declaração contundente de Elio Gaspari- jornalista e escritor conceituado; autor da maravilhosa obra sobre a ditadura; e, de que, certa vez, disse que, a grande prova, de que, não se alinhava, com o futebol, fora pela razão de estar no banheiro do Maracanã no momento do milésimo gol de Pelé.

A enunciação se fez nos seguintes termos:

“Marília Campos talvez seja a parlamentar que mais devolveu dinheiro à Viúva (cofres públicos) desde 1822, quando foi instituído no Brasil o Poder Legislativo. Em dois anos de mandato como vereadora em Contagem, devolveu R$ 63 mil. Nesse total estavam R$ 12 mil de verba paletó e R$ 9 mil de convocações extraordinárias. Em seis meses como deputada estadual, entregou ao Tesouro outros R$ 70 mil. Desse ervanário, R$ 21 mil referiam-se ao auxílio moradia e à verba paletó. Chama-se verba paletó o dinheiro que os legisladores recebem para comprar roupa, consertar os óculos ou engraxar os sapatos”.

Com um sólido respaldo, a única mulher eleita, no cargo maior do Executivo do Município, vencia pela terceira vez. Vitória arrebatadora. Mesmo com as famigeradas e deletérias Fake News e da intensa propagação do que tinha restado da malfadada “Lava-Jato”. Um modus operandi de exceção, com uma total inversão da “ordem social”. O Devido Processo Legal quedou-se ludibriado pelo canto das sereias. Às favas o Estado Democrático de Direito. O lawfare restara instalado.

Sem embargo, a transcendência, da ex-líder do Sindicato Bancário de Belo Horizonte, era tamanha, que, rompeu com ideologias e espectros políticos. Marília realmente é acima de tudo, uma cidadã, que vive a cidade intensamente, e, diante disso, alcançou uma fenomenal convergência histórica.

Não é para menos. A Prefeita pratica o que há de mais refinado na política. A luta pela causa social, identitária, das minorias, da preservação ambiental, dentre várias outras.

Da equidade/igualdade de gênero, formaram-se espaços políticos com paridade na Administração Municipal. Algum tempo depois, Gabriel Boric, no Chile, implementou, em seu governo, um amplo espaço para as mulheres. O Palácio de La Moneda e o Palácio do Registro resplandecem de maneira uníssona. Allende vive.

De mais a mais, basta desfrutar-se das ruas e praças para constatar in loco o delineamento que a Cidade vem tomando.

Retomada de obras, revitalizações de bens públicos, asfaltamento de primeira linha, investimentos intensos na saúde, educação e segurança pública; o interesse e aportes pelo setor privado em expansões, centros logísticos e todo tipo de empreendimento que trará frutos.

Das revitalizações e simbolismos, sublinha-se a restauração da Casa de Cacos. Juntaram-se os cacos, com o perdão do clichê e trocadilho, de anos a fio. Um cartão-postal abandonado à própria sorte.

Outrossim, a decisão para o início da reforma do elegante Cine Teatro Municipal de Contagem, do qual a última vez que pisei, na fase pueril da vida, fora num show de “Nerso da Capetinga”, personagem interpretado pelo humorista Pedro Bismarck. Não nos olvidemos das sessões do oriental Kurosawa.

Ademais, seguindo o raciocínio dos feitos, a realização, de concursos públicos, que reestrutura e aprimora a prestação de serviços e, ainda, enrobustece as contribuições para a Unidade Gestora de Regime Próprio de Previdência Social, auxiliando, assim, no cumprimento dos princípios do equilíbrio financeiro, atuarial, de solvência e liquidez.

Ressaltando e não deixando de mencionar sobre a excelente gestão fiscal, orçamentária e financeira, respeitando os ditames da Lei de Responsabilidade Fiscal, com receitas próprias expressivas, com uma maior autonomia diante das receitas de transferências constitucionais, e uma impressionante redução da dívida.

E se investimentos trazem recursos, realça-se o circuito cultural implantado como um grande projeto das políticas públicas.

E não há que se falar de “panis et circenses”; mas, sim, de uma grande programação contínua de eventos e festivais, de todos os gostos e sabores.

O sociólogo, Ivanir Corgosinho, aponta seu diagnóstico sobre eventos culturais ocupando os espaços públicos urbanos:

“…recriar e reinventar as festas populares é uma prioridade para os governos municipais como meio de conter a crescente mercantilização da vida…”.

Além do mais, complemento com a filosofia de Spinoza sobre a relação dos afetos. E do bom-encontro. Num exato instante em que nos tornamos mais íntimos com o mundo e, consequentemente, com nós mesmos.

E, além disso, em um perene processo de autoconhecimento, a perscrutação das nossas mais profundas contradições.

Num mesmo rumo de espírito coletivo, o “poetinha” já professara sobre a arte do encontro.

De encontros e desencontros, entre abraços e sorrisos, um ponto alto: a maravilhosa atmosfera da musicalidade e êxtase do excêntrico Chico César na Praça da Jabuticaba.

Precisamos, ainda, falar do deslumbrante Natal das Luzes. Da valiosa Feira de Economia Solidária. Dos inebriantes “arraiás” e carnavais. Das vozes e acordes ressoando o cântico de Parintins. Do bumbá do Garantido. E, por que não, do Caprichoso. A festa é de todos. O povo se aliançou, ao rubro do rubor, do amor, da paz, da esperança.

Sem querer soar piegas. Mas, explicitamente, nota-se que a Cidade respira aliviada. Está, decisivamente, mais feliz.

O figurino manda que não se deva revelar algo implícito de qualquer produção. No entanto, no presente contexto, abro uma exceção. Sobre o título, tomo emprestado da excelente película do complexo e enigmático David Lynch.

E, tudo isso, para expressar sobre a Cidade das Abóboras. Das Lutas. Dos Sonhos.

Lucas Corrêa Fidelis é advogado e servidor público do município de Contagem.

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