Pense no momento em que acendemos uma luz, seja a do quarto fechado à noite ou a de um farol de automóvel em alta velocidade. O elemento máquina que possibilita ligar a luz para ampliar a visão humana nos torna íntimos dessa tecnologia a tal ponto de nos tornarmos híbridos. Essa mesma visão, quando direcionada para as telas, nos faz íntimos da tecnologia conectada em redes, a ponto de nos transformarmos em extensões dela: De smartphones à inteligência artificial, somos todos híbridos de humano e máquina.
Cada vez mais, nossa biologia e nossas máquinas se entrelaçam. Acordamos com o despertador do celular, monitoramos nossos passos com relógios inteligentes, usamos aplicativos para medir nossa frequência cardíaca e seguimos dietas baseadas em análises de dados. A tecnologia redefine nossa relação com o corpo e com o tempo, o tempo todo!
A metáfora do ciborgue, elaborada por Donna Haraway nos anos 1980 para apontar prioridades feministas sob o governo Reagan, continua mais atual do que nunca. Ser ciborgue hoje não é ter implantes cibernéticos visíveis, mas viver como um híbrido em que a tecnologia molda nossos corpos, nossas escolhas e nossa política.
Cada vez que usamos um aplicativo de mobilidade, seguimos recomendações algorítmicas para o que assistir ou interagimos nas redes sociais, ampliamos nosso corpo com dispositivos digitais e simultaneamente cedemos dados que alimentam sistemas de controle.
O historiador Reinhart Koselleck nos alerta para a importância de situar historicamente cada conceito. A noção de ciborgue carrega, desde sua origem, uma carga temporal que vai do feminismo socialista dos anos 1980 às disputas eleitorais em plataformas privadas sediadas nos Estados Unidos. Movimentos sociais, coletivos culturais, igrejas, torcidas organizadas, professores e estudantes atravessam esse ambiente ciborgue o tempo todo, usando microtecnologias e redes interligadas para resistir, criar e disputar narrativas políticas.
O documentário O Dilema das Redes ilustra com depoimentos de ex-executivos de grandes empresas de tecnologia como algoritmos são desenhados para maximizar o engajamento, gerando bolhas informacionais que acentuam a polarização em períodos eleitorais. Essa produção nos lembra que a cidadania digital não é apenas um exercício de uso de ferramentas, mas um campo de luta: precisamos questionar quem controla esses circuitos e reinventar formas de resistência dentro deles.
As próprias ferramentas que usamos para democratizar a comunicação acabam por restringi-la. Redes privadas confinam nosso discurso a simulacros e audiências segmentadas, criando a ilusão de diálogo com toda a sociedade quando, na prática, nosso alcance é limitado. Para ultrapassar esses limites é preciso investir em impulsionamentos pagos. Mesmo assim, ficamos reféns das plataformas para estabelecer com precisão quem de fato irá receber nossa mensagem.
Além disso, disputamos a atenção de pessoas que muitas vezes acessam essas plataformas em busca de entretenimento, e não de debates políticos. Em feeds lotados de vídeos virais, notícias sensacionalistas e memes, destacar reflexões sobre políticas públicas exige muito mais do que gastar recursos em impulsionamentos. É preciso criar formatos que captem a curiosidade de uma audiência que em sua maioria está desinteressada pelo tema e consiga despertar engajamento consciente.
A presença dos principais CEOs das Big Techs na posse de Donald Trump, sentados em lugares de destaque ao lado do presidente recém-empossado, revela com clareza o lado em que essas empresas se alinham diante do poder político. Se concentrarmos todas as nossas fichas de comunicação nessas plataformas, sujeitamo-nos não apenas aos algoritmos que ocultam nossas mensagens em bolhas segmentadas, mas também ao arbítrio de grupos empresariais cujos interesses podem divergir radicalmente dos princípios democráticos que defendemos.
Esse alerta reforça a necessidade de diversificar nossos canais: da guerrilha digital à conversa de pé de ouvido, dos “três S” da campanha política — saliva, suor e sola de sapato — à mobilização de rua, para garantir que nossas vozes não sejam reféns dos gigantes que detêm o controle dos circuitos de informação. Mas o ideal mesmo seria criarmos nossas próprias redes sociais digitais, sem abrir mão de disputar as narrativas com as já existentes. E isso não é nada novo, eles já fizeram, basta pesquisar o que é a Truth Social.
Ser um ciborgue hoje significa reconhecer nossa condição híbrida, sujeitos imersos em sistemas técnicos que nos atravessam, e ao mesmo tempo usar essa mesma integração para subverter códigos, expandir redes de solidariedade e reinventar práticas coletivas de participação. A teoria do híbrido humano/máquina nos oferece tanto um diagnóstico de dominação quanto um guia para a criação de estratégias de resistência.
Na próxima coluna, vou explorar a metáfora da barriga do monstro e refletir por que estamos todos dentro dela. Acompanhe aqui no Blog do Prata e Ivanir para continuar esta conversa importante sobre tecnologia, política e comunicação.
Cleber Couto é Mestre em Estado, Governo e Políticas Públicas. Assessor da Vereadora Moara Saboia.