O sociólogo brasileiro Jessé Souza, no seu livro A classe média no espelho, diz que em todos os tempos e lugares os seres humanos compartilham de duas necessidades permanentes. Ou seja, na condição humana, atravessam todas as épocas uma “necessidade externa” e uma “necessidade interna”. A primeira diz respeito às demandas mais básicas no campo material, imprescindíveis para a sobrevivência. A segunda diz respeito ao campo simbólico, necessário para dar sentido à própria vida. Segundo Jessé “desde o início, a construção e a interpretação da necessidade interna são determinadas pela religião”. (ZOUZA, p. 25) (1)
Para fins didáticos, consideramos que a gestão pública organiza suas intervenções objetivamente tendo como referência as necessidades internas dos individuas em cada tempo e lugar. Consideramos também que cabe à esfera política interpretar as necessidades internas, pois estas incidem sobre as políticas públicas. Isso posto, o trabalho desenvolvido pela gestão da Prefeita Marília Campos com o segmento evangélico que aqui será relatado situa-se no entremeio (interno e externo), tendo em vista o papel da religião e, particularmente, do segmento evangélico, nesses tempos de disputas ideológicas contundentes que atravessam todos os campos da vida social, política econômica e cultural.
Nesse sentido, a religião desempenha um papel fundamental na formação de valores sociais e na influência sobre políticas públicas, especialmente em países com forte tradição religiosa, como o Brasil. As instituições religiosas não só moldam opiniões e comportamentos, mas também atuam como agentes de mobilização. No cenário político, líderes religiosos e grupos de fé têm poder para articular demandas populares, legitimar ou questionar medidas governamentais e influenciar eleições. Neste contexto é preciso compreender o cenário religioso e sua relevância política para estabelecer canais promissores de diálogo. Desprezar esse campo é negar inciativas de despolarização tão necessárias em nosso tempo. Neste sentido, o governo popular liderado pela Prefeita Marília Campos, mais uma vez, sai na frente ao estabelecer um caminho institucional de valorização, aproximação e reconhecimento de instituições que prestam serviços essenciais para a população, tanto no campo espiritual como social.
A construção de políticas públicas efetivas pressupõe a capacidade do Estado de reconhecer a pluralidade de atores sociais que compõem o tecido da cidade. Em Contagem, esse princípio foi levado a sério por meio de uma iniciativa institucional de aproximação entre o poder público municipal e as instituições evangélicas. Trata-se trabalho que resultou no “Diagnóstico das Instituições Religiosas de Contagem – Segmento Evangélico” coordenado pela Diretoria de Movimentos Sociais da até então Secretaria de Governo e Participação Popular (que passa a integrar a Secretaria-Geral).
Em termos de construção de política pública o trabalho não deixa a desejar em nenhum aspecto. No campo político, partiu de uma determinação direta da prefeita Marília Campos e com orientações e diretrizes precisas, para quem
A aproximação com esse segmento não deve ser vista apenas sob uma ótica eleitoral; trata-se de uma questão estratégica. É fundamental fortalecer esse diálogo, pois essas lideranças são parceiras na implementação de políticas públicas e ações sociais. Deixá-las exclusivamente sob influência de discursos que propagam ódio, egoísmo e intolerância é um erro grave. (2)
No terreno propriamente da gestão, contou com minucioso trabalho de construção de metodológica, de pesquisa de outras experiências e de levantamento de dados internos e de iniciativas da própria gestão da Prefeita Marília. Nesse percurso, tivemos acesso a um trabalho realizado pelo Centro de Estudos da Metrópole da Universidade de São Paulo (USP), que, por meio de algoritmo, categoriza as instituições religiosas a partir da base de dados disponíveis no CNPJ. Tivemos também acesso ao trabalho de cartografia dos movimentos sociais de Contagem desenvolvido pela UFMG em parceria com a Secretaria de Governo e Participação Popular.
Depois de levantados todos os dados, desenvolvida a metodologia, por meio de acurada escuta interna, foi realizada a capacitação dos Assessores Políticos das Administrações Regionais, que realizaram (com o apoio e empenho dos Administradores Regionais) o trabalho de campo. Nesse período realizamos reuniões quinzenais de alinhamento e troca de experiências, o que contribuiu para aprimorar a metodologia e, sobretudo, quebrar barreiras e resistências.
O trabalho partiu inicialmente do número oficial de templos religiosos evangélicos registrados na Fazenda Municipal, que contabilizava 560 instituições. No entanto, o levantamento de campo mapeou 867 igrejas e conseguiu estabelecer diálogo com 738 pastores. Nas visitas buscou-se estabelecer um canal de diálogo e conhecer os trabalhos realizados. Destes encontros, 583 igrejas informaram realizar trabalhos sociais em diversas áreas como doação de alimentos, roupas, apoio psicológico e jurídico.
A iniciativa, cumpre reforçar, foi conduzida com total transparência sem desprezar as inciativas anteriormente realizadas de criar um ambiente de aproximação entre lideranças religiosas e membros do poder público. O propósito também foi apresentar as possibilidades de parcerias e construir um canal de diálogo que permita às igrejas acessar editais e recursos públicos voltados para atividades culturais, sociais e comunitárias, ampliando sua capacidade de atuação em favor do bem comum.
Contudo, é preciso reconhecer um desafio histórico: superar a subestimação em relação diálogo dos governos democráticos de esquerda com lideranças religiosas, sobretudo evangélicas, justamente em locais periféricos onde a presença do poder público se mostra mais necessária. Tal distanciamento pode ser um dos motivos do grande número de fiéis se identificarem mais com políticos de direita e extrema direita, motivados pelos pastores, que além das pautas conservadoras, caras aos evangélicos, conseguem influenciar a vida dos fiéis através da proximidade gerada pelo apoio material e emocional estabelecido nas igrejas.
Ao compreender que muitas lideranças políticas se aproximam desse segmento apenas para alimentar o ódio e reforçar a rejeição aos movimentos sociais (injustamente acusados de promover pautas contrárias à religião), o poder público de Contagem escolheu um caminho distinto. Ao invés de se aproximar para explorar o medo ou manipular a fé, buscou-se construir pontes baseadas no reconhecimento mútuo, na ética do diálogo e na aposta em parcerias que fortaleçam o senso de responsabilidade coletiva.
É preciso destacar que existe grande atuação dos pastores sobre seus fiéis numa diversidade de igrejas para vários estilos e necessidades. Compreender essa pluralidade ajuda a entender que não basta um discurso único de abordagem, mas uma abertura para se aproximar e conhecer, sem preconceitos, um universo amplo de interesses diversos, desde aqueles mais comprometidos com as causas sociais aos que lamentavelmente fazem da religião um comércio. Para Anna Virginia Balloussier, autora do livro O púlpito: fé, poder e Brasil dos evangélicos, o clima de “customização da fé” (BALLOUSSIER, p. 12) (3) favorece o aparecimento de grupos diversos que se adequam a vários espaços, temáticas e públicos variados, fazendo da religião uma oferta de mercado que se adapta em cada território. A multiplicidade de expressões religiosas no universo evangélico impõe ao poder público uma postura de sensibilidade e escuta atenta, capaz de perceber as especificidades de cada comunidade de fé e seu modo singular de atuar nos territórios. O Diagnóstico mostrou que existem pastores formados em grandes institutos teológicos, mas também muitos homens e mulheres trabalhadores do dia a dia, que após a labuta do trabalho se dedicam ao cuidado dos fiéis especialmente nas periferias.
Diante das disputas de narrativa que marcam o cenário político nacional, o caminho percorrido por Contagem se destaca por apostar na construção de uma cultura de harmonia e cooperação. Como já foi dito, é desejável “que dessa conversa advenha a possibilidade de substituir a retórica do ódio pela ética do diálogo. Em lugar do desejo perverso de aniquilação do outro, visto como inimigo a ser eliminado, vale apostar no reconhecimento do outro como um outro eu – e precisamente a diferença amplia meu horizonte existencial, enriquecendo minha visão de mundo.” (ROCHA, p. 24) (4)
Ao estabelecer mesas de conversa com pastores e lideranças religiosas, o poder público municipal afirma que a democracia se fortalece quando reconhece os diferentes atores sociais como parceiros legítimos na construção da cidade. O segmento evangélico, com sua forte atuação comunitária e seu compromisso com a transformação de vidas, tem muito a contribuir. A aproximação, portanto, não é um fim em si mesma, mas um passo na direção de um novo modo de fazer política: um modo que escuta, que aprende, que compartilha responsabilidades e que coloca o bem público acima de qualquer disputa ideológica.
Este texto é escrito no momento em que a Prefeita Marília realiza com pastores nas Regionais para promover um ambiente de escuta e informação sobre os canais de acesso aos recursos e parcerias possíveis. Também, está previsto, como forma de continuidade do Diagnóstico, capacitações para formalização de instituições religiosas e instruções acerca dos requisitos para estabelecimento daquelas que desejam criar Organizações da Sociedade Civil com finalidade social.
Contagem, com Marília, mais uma vez emite sinais de que, em termos de diálogo e da construção de entendimentos, pode contribuir muito com Minas e com o Brasil.
Fagner Sena – Superintendente de Participação Popular da Prefeitura de Contagem
Jean Aguiar – Assessor da Secretaria-Geral da Prefeitura de Contagem.
REFERÊNCIAS
1) SOUZA, Jessé. A Classe média no espelho. Sua história, seus sonhos e ilusões, sua realidade. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2018.
2) Fala da Prefeita Marília Campos em reunião de equipe em 10 de junho de 2025.
3) BALLOUSSIER, Anna Virginia. O púlpito. Fé, poder e o Brasil dos evangélicos. São Paulo: Editora Todavia, 2024.
4) ROCHA, João Cesar de Castro. Guerra cultural e retórica do ódio – crônicas de um Brasil pós-político. Goiânia: Editora e Livraria Caminhos, 2021.