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Fernando Abrucio: Lula precisa de novas ideias e de boa gestão

São fundamentais a definição clara de metas e indicadores, monitoramento contínuo, articulação de organizações e dos entes federativos, engajamento da burocracia e construção de lideranças em vários níveis

Valor Econômico, 26/01/2024

Se Lula tivesse um espelho mágico para o qual pudesse perguntar o que deveria fazer para ter sucesso no terceiro mandato, a resposta poderia ser a seguinte: “Presidente, é necessário corrigir os males deixados pela gestão bolsonarista, além de recuperar bons programas e políticas que foram criados e desenvolvidos depois da Constituição de 1988, inclusive em alguns dos seus mandatos anteriores. Mas o futuro está batendo à sua porta e é preciso decifrá-lo antes que ele devore seu governo”.

O enigma proposto ao final pelo espelho mágico é a grande questão do governo Lula III: o passado, tanto o recente desastre bolsonarista quanto as respostas bem-sucedidas e saudosas dos outros dois mandatos, não serão suficientes para melhorar o desempenho governamental e garantir um fôlego político maior ao lulismo. É possível até obter a reeleição do presidente em 2026jogando quase parado, sem grandes mudanças, mas tudo será mais difícil com essa estratégia, seja na construção da governabilidade nos próximos anos, seja num possível resultado eleitoral que não seria muito diferente do quase empate de 2022.

O governo Lula III precisa ter uma agenda específica voltada à realidade do século XXI, o que exige um novo impulso inovador e reformista. Trata-se de montar uma agenda com prioridades claras e foco preciso, baseada em ideias novas e bons mecanismos de gestão. Afinal, o sucesso do Plano Real e do Bolsa Família não derivou apenas de concepções econômicas e sociológicas corretas. A administração cuidadosa de todas as dimensões da implementação foi fundamental nesses dois casos bem-sucedidos.

Abrir novas frentes de atuação não quer dizer que se deva abandonar por completo os vetores do passado. Há, em primeiro lugar, uma longa lista de tarefas para atacar o legado deletério do bolsonarismo na agenda pública. Por exemplo, combater o desmatamento e o garimpo ilegal, recompor a burocracia pública, atacar o modelo de fake news que se multiplicou com a liderança bolsonarista e, o mais importante, julgar e prender quem comandou a tentativa de golpe de Estado.

Entretanto, ficar só nessa agenda contra os males legados pelo bolsonarismo é uma armadilha. É preciso não só retirar os detritos deixados no caminho pelo antigo governo, mas ter uma nova rota a propor. Se o governo Lula III ficar só olhando no espelho de problemas deixado pelos bolsonaristas, o país avançará pouco. Mais do que isso, a polarização, que aparentemente favorece os dois polos porque cria uma barreira de entrada a novos líderes e grupos, diminui a amplitude de inovações e mudanças possíveis, tornando o lulismo uma força apenas de retaguarda em relação à democracia. Sem negar a importância desse papel histórico, o fato é que ele não garante o futuro político dos aliados e herdeiros de Lula nem gera uma marca melhor para o presidente na comparação com seus outros dois mandatos.

Trazer ideias e práticas que foram construídas durante o lulismo ou mesmo a partir da Constituição de 1988 é uma agenda por vezes também necessária. Os sistemas nacionais de políticas públicas precisam voltar a guiar a articulação federativa, a participação da sociedade civil nos assuntos governamentais tem de ser retomada, a defesa dos direitos humanos merece voltar ao centro das preocupações governamentais e a área social necessita ser o coração do governo como foi antes da gestão Temer-para não falar no seu completo abandono por Bolsonaro. Não obstante, nem o que foi bem-sucedido no passado deverá ser feito da mesma maneira. O governo Lula III percebeu isso logo no início no caso do Bolsa Família, mas demorou para entender a nova institucionalidade do Banco Central.

Uma nova realidade, muito mais complexa, estruturou-se no país desde o final do segundo governo Lula. Isso já tinha ficado claro durante a crise iniciada em 2013, mas o petismo até hoje não entendeu boa parte daquele processo. Para citar alguns dos principais elementos do cenário atual que não tinham um lugar central há dez anos, há a informalização de amplos setores urbanos, o crescimento de grupos evangélicos mais conservadores, uma geopolítica mais intrincada e com maiores riscos, a manutenção de altas taxas de jovens fora da escola e do mercado de trabalho, o aumento da importância da questão ambiental e sua difícil resolução num país ainda viciado no atraso, bem como o vertiginoso crescimento do crime organizado por todo o país, do Oiapoque ao Chuí.

Além disso, se é verdade que houve avanços significativos durante o bi-partidarismo presidencial de PSDB-PT, muitas questões não foram resolvidas durante aquele período. A desindustrialização, com todos os seus efeitos negativos em termos econômicos, sociais e políticos, só aumentou nos anos FHC, Lula e Dilma. O saneamento básico avançou quase nada desde a redemocratização e a questão da segurança pública sempre teve um lugar menor na agenda de reforma das políticas sociais.

Tanto um avanço maior do país quanto a construção de um mandato que não reduza o lugar de Lula na história dependerão, assim, de uma reconfiguração da agenda pública, com novas soluções. Já há exemplos interessantes, como a política de permanência de alunos do ensino médio, por meio de uma bolsa mensal e uma poupança ao longo desse ciclo escolar. Ainda falta definir como isso se casa com a própria reforma curricular, a ampliação do ensino profissionalizante e da escola de tempo integral. De todo modo, neste caso, há mais clareza sobre os caminhos do futuro do que noutras áreas governamentais.

A exigência de uma reforma administrativa é outra questão que o governo deve enfrentar. Não que o projeto em discussão na Câmara Federal seja de boa qualidade. Na verdade, ele é péssimo, porque se concentra numa discussão de redução de custos que não é resolvida pelo que é proposto. Pior: favorece a elite do funcionalismo em detrimento dos carregadores de piano que garantem, com maior ou menor qualidade, os serviços públicos aos cidadãos.

A despeito disso, os serviços públicos têm de melhorar, e muito, de qualidade, bem como a transparência dos atos e da posição da burocracia constitui uma exigência cada vez maior dos cidadãos. Se o governo não mostrar os caminhos novos, de forma sistêmica, poderá deixar que uma discussão torta, criada por bolsonaristas que odeiam o Estado e os mais pobres, ganhe o debate público. A proposta do concurso unificado é interessante como outras ideias fragmentadas que têm surgido do Executivo federal, mas falta aqui a apresentação de um projeto, com objetivos e instrumentos definidos num pacote só. Há espaço aqui para o governo Lula III mostrar que tem soluções e instrumentos que respondem às demandas do século XXL Faltam ideias novas em campos importantes como segurança pública, primeira infância e criação de empregos para jovens que estão fora da escola, para ficarem exemplos que têm um duplo impacto. São questões relevantes para o futuro social e econômico do país, como também atingem um eleitorado que em boa medida não votou em Lula em 2022. Óbvio que o caminho não é a pirotecnia ou a defesa de uma panaceia que resolva tudo de uma vez só. Mas são campos que podem gerar soluções engenhosas como foi o Bolsa Família, que ia direto ao problema de forma inovadora e tinha uma gestão muito bem articulada, com consequências positivas para o Brasil e para o lulismo.

Diagnosticar que há um problema não resolvido é essencial, mas não é suficiente. Sem ter uma maior densidade industrial e tecnológica, em temáticas atinentes à realidade atual, não haverá desenvolvimento no Brasil. E a ideia de que o Estado não deve fazer nada e o mercado resolverá tudo não tem base na realidade empírica – é só uma ideologia. No fundo, o governo sempre é interventor, o que distingue os casos é se a ação governamental foi bem ou malsucedida.

Dito isso, propor uma nova política industrial não é um erro. Estudos recentes realçam a necessidade desse tipo de política pública, com destaque para os trabalhos de Dani Rodrik, de Harvard. A questão é, primeiramente, se o governo Lula está propondo a ideia correta nesse sentido. A proposta apresentada se preocupou em se concentrar em temáticas vinculadas a novas tendências, com grande conexão em relação àquilo que o Brasil pode ter de vantagem comparativa, como a questão da transição energética. Além disso, em vez de uma lista sem fim, foram escolhidos poucos setores, o que facilita ter efetivamente uma estratégia. Porém, o modelo de gestão dessa política está, ainda, bastante vago, sem clareza de como será sua engrenagem.

Novas soluções só darão certo com instrumentos bem alinhados de gestão. Nessa linha, são fundamentais a definição clara de metas e indicadores, monitoramento contínuo, articulação de organizações e dos entes federativos, engajamento da burocracia e construção de lideranças em vários níveis das políticas públicas. Aliás, mais importante do que ficar discutindo uma proposta mágica e redentora de reforma administrativa é estruturar novos padrões de governança e gestão, capazes de alavancar boas ideias e garantir melhores serviços aos cidadãos.

Para chegar ao futuro, Lula terá que apresentar novas ideias e os meios para viabilizá-las. Não é uma tarefa fácil, mas é inadiável, dirá o espelho mágico ao presidente.

Fernando Abrucio é doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.

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