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Fernando Luiz Abrucio: Não haverá cidadania com racismo

Lei de Cotas é importante, mas é preciso que os reformadores, principalmente a universidade e o movimento negro, levem esse avanço para a educação básica.

Portal da FGV, 21/08/2023

O Brasil teve uma enorme perda com a morte do historiador José Murilo de Carvalho, um dos maiores estudiosos dos períodos imperial e das origens de nossa República. Foram muitas as questões tratadas por ele, mas uma lhe chamava muito a atenção: por que a cidadania se desenvolveu aqui tão lentamente e num caminho marcado por enormes desigualdades? Se quisermos homenagear essa angústia que incomodou tanto Zé Murilo, como carinhosamente era chamado, vale escolher uma das mais relevantes raízes da fragilidade cidadã do país: o racismo persistente e profundo. A escravidão deixou marcas que foram muito além do processo de Abolição. Zé Murilo gostava muito do pensamento de Joaquim Nabuco,um abolicionista que sabia que as consequências do modelo escravocrata não sairiam tão rapidamente do DNA do país, e por isso disse: “a escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”. No fundo, ela é a mãe de uma sociedade que não teve como base de construção um projeto de igualdade.

A Constituição de 1988 foi a maior ruptura histórica neste longo caminho de cidadania rarefeita que tanto incomodava Zé Murilo. Entre os vários avanços, e não foram poucos, derivados dessa Carta de Direitos e das legislações que vieram posteriormente no seu bojo, destaca-se o ataque ao racismo. Recentemente, a renovação da Lei de Cotas pela Câmara Federal por mais dez anos – o projeto ainda tem de passar pelo Senado – mostrou como a luta antirracista tem avançado no Brasil para as questões estruturais que causam a discriminação racial. Junto com avanços legais, houve melhoras na atuação da sociedade contra o racismo. O movimento negro tem se fortalecido e ampliado sua pauta, assim como governos, empresas e entidades do Terceiro Setor têm cada vez mais adotado políticas afirmativas para ampliar oportunidades e reduzir barreiras à inserção social da população negra. É importante frisar esseponto porque a cidadania se alcança combinando políticas públicas garantidoras de direitos contra transformações na visão social dominante em relação à igualdade dos cidadãos.

Novamente retomo Zé Murilo, que sempre acreditou no efeito das instituições, mas sabia que é preciso alcançar os valores dasociedade e de suas elites para fazer mudanças mais profundas. Sem prejuízo da admissão dos avanços, o racismo ainda se faz presente em várias dimensões da sociedade brasileira. Os negros têmos piores salários quando comparados com pessoas com mesmo posto e/ou escolaridade (pior ainda sefor uma mulher negra); são os que mais sofrem com a violência no país, particularmente a policial; aindaestão pouco representados na elite do país quando se coteja com seu tamanho populacional; e, por fim,continuam sendo os que menos têm oportunidades para ascender na escala educacional. Ressalte-seque mesmo num espaço em que sempre tiveram presença marcante, como o futebol, pululam constantemente exemplos de racismo. O fato é que a luta antirracista precisa ocorrer em várias frentes. A primeira é da percepção social do fenômeno. Aqui acontece um paradoxo que revela o quão sorrateira é essa discriminação. Pesquisa recente do Ipec revelou que 81% dos brasileiros afirmam que o Brasil éracista, mas, ao mesmo tempo, apenas 11% admitem ter esse preconceito. Onde está, então, a origem do problema?

Diante desse paradoxo, algumas pesquisas recentes revelam que a maioria dosbrasileiros quer corrigir desigualdades e injustiças vinculadas à questão racial. Uma delas, feita pelo Datafolha em março deste ano, revelou que 60% das pessoas acreditam que é necessário ter maisnegros ocupando postos de chefia. A mesma pesquisa do Ipec citada anteriormente não só realça que os negros são os mais discriminados nas mais diversas situações sociais – na escola ou pela polícia, porexemplo -, como também revela um sentimento amplamente favorável a vários tipos de política de açãoafirmativa. O sentimento reparador está crescendo, mas muitas vezes ele não é capaz de enxergar as incongruências valorativas que estão na cabeça dos brasileiros. O maior exemplo está na questão dasegurança pública.

A maior parte da população sabe que há uma discriminação evidente da polícia em relação aos negros, sobretudo (mas não só) se morarem nas periferias e favelas dos principais conglomerados urbanos. Só que o mesmo público que aponta essa injustiça também é o que aceita oumesmo apoia visões de policiamento em que vale a lógica do “atirar primeiro” para garantir a vida dos cidadãos, quando o resultado disso tem sido o assassinato de jovens pretos e pobres em larga escala, cometido por governos de direita e de esquerda. No fundo, todos nos definimos contra o racismo, mas osserviços públicos, as empresas, os comércios e muitos dos cidadãos têm uma referência sorrateira enem sempre implícita de qual cor deve ter, de antemão, um tratamento privilegiado ou de inferioridade – ea população negra ainda é vista como de segunda classe na nossa escala de cidadania, tomada comomenos “igual” do que os outros, o que revela o quanto a escravidão continua entre nós. O saudoso Zé Murilo, inclusive, tinha uma história pessoal, que depois transformou em pequeno artigo, para contar como a Justiça e o Estado brasileiros não são cegos em relação à questão racial. Dizia que encontrara,ao sair de seu sítio, uma senhora negra que estava desesperada porque seu jovem filho acabara de serpreso.

Por conta disso, Zé Murilo foi à delegacia com ela e constatou que o poder público, na suaprática, define uma tipologia de cidadãos. Ele procurou entender a situação e usou a linguagem de umapessoa com alta escolaridade, geralmente branca, e por conta disso foi tratado pelo delegado como“doutor”, o primeiro tipo de cidadão. Depois, o delegado contou qual fora o crime: um roubo de galinhas.Relatou ainda que primeiro a polícia entrara numa casa em que havia uma senhora, que ficou desesperada com a situação, pois não sabia como lidar com a quebra de seus direitos. Logo os policiais perceberam que se tratava de “gente de bem”, pois ela era crente, o segundo tipo de cidadão – alguém que não tem o privilégio a priori de tratamento, mas que não é tratada como culpado de antemão.Continuaram atrás do meliante, como diria o jornalismo policial de outrora, e entraram na residência mais precária daquela senhora negra encontrada pelo Zé Murilo. Lá, viram o jovem negro na sala, junto comvárias estátuas vinculadas à umbanda. Pronto, pensou a equipe policial: roubo de galinhas só pode sercoisa de macumbeiro, o terceiro tipo de cidadão, geralmente preto ou pardo, que normalmente não tem apresunção da inocência a seu favor. Obviamente que a Constituição brasileira definiu um modelo decidadania igual a todos, mas quem faz valer a lei são os valores de quem está na linha de frente das políticas públicas, bem como os representantes do pensamento mediano da sociedade, que são ospolíticos, apresentadores populares na mídia e outros influenciadores em larga escala. Todos esses grupos vão dizer que são contra o racismo, mas efetivamente não são antirracistas.

O processo detransformação dessa camada profunda de racismo passa certamente pela educação. Por isso a Lei deCotas é tão importante, não só porque aumenta o percentual de pretos e pardos com ensino superior, num país em que o “diploma” tem um significado positivo para além do conhecimento embutido nele,mas especialmente em razão de criar referências para os negros mais jovens, para que estes consigam sobreviver no difícil caminho infantil e juvenil pelo qual passa a maioria da população negra. Só que essapolítica afirmativa no plano educacional tem de ir além: é preciso que os reformadores, principalmente a universidade e o movimento negro, levem esse avanço para a educação básica. É preciso um currículo que trate efetivamente das injustiças raciais, do mesmo modo que é necessário ter mais negros e negras como professores(as), diretoras(es) e comandantes das secretarias municipais e estaduais deEducação. Sem se alastrar para todos os ciclos de ensino, inclusive chegando fortemente à primeirainfância, o caminho das cotas será mais lento na transformação do racismo. Afinal, além de aumentar a igualdade de oportunidades, é fundamental ter ações educacionais para criar uma nova geraçãoantirracista.

A questão racial também precisa estar mais presente em outras políticas públicas para alémda educação. Os serviços públicos são um canal fundamental para aumentar a equidade na sociedade brasileira. Mas também é preciso ter agendas antirracistas que se realizem nas organizações dasociedade civil, nas empresas privadas e nas igrejas. Políticas governamentais são centrais para a cidadania, mas sua feição mais profunda depende igualmente da transformação dos valores sociais e davisão das elites de um país. O sonho de uma cidadania mais plena foi o mote da obra de Zé Murilo. Ela melhorou nos últimos 35 anos, mas há ainda muita desigualdade, e a questão racial é um dos maiores exemplos disso. O processo de mudança antirracista será longo e múltiplo. Não obstante, perseverar nele é sair da armadilha da escravidão que nos aprisiona há séculos.

Fernando Abrucio é doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.

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