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Hamilton Reis: Os primeiros beijos

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Quando pulou de novo o muro, o coração estava disparado. Não era apenas a adrenalina do momento, o encontro às escuras na casa em construção. Era bem mais do que isso. Ao amigo que o esperava contou o motivo de tamanha emoção. Ela me beijou. Na boca, quis saber o outro, para em seguida dar com os ombros após a resposta. Não, no rosto. Mais velho e mais tarimbado na relação com as meninas, por certo não poderia entender aquela euforia, a sensação de que o mundo estava começando. Aos dez anos aquele era o gosto bom da primeira vez. E depois dela tinha a promessa de outras muitas ocasiões.

O namoro que tinha principiado na sala de aula era secreto, claro. Era preciso disfarçar aquele sentimento maior do que o menino que começa a despertar para outras dimensões da vida. E aquela era a melhor delas, descobriria mais tarde com o avançar dos anos. A infância agora não era mais apenas futebol na rua todos os dias, brincar de rouba bandeira ou esconde-esconde. Continuavam importantes a bola de gude, a finca, empinar papagaios, a coleção de selos e imitar super-heróis. Mas bastava olhar as páginas dos cadernos para perceber que os poemas tinham se intensificado. E o inevitável desenho do coração flechado com as iniciais dos dois enfeitava cada vez mais lugares.

Aqueles dias eram intensos. Ela tinha cabelos longos, olhos castanhos, vestidos curtos. E ideias avançadas. Vinha de longe, do misterioso universo feminino. E ensaiava seus primeiros passos na arte da sedução, do envolvimento. Precoce, ele diria. Corajosa. Conduzia a, digamos, relação. Aquela coisa incipiente que nomeavam amor, sem ter a exata dimensão de quanto tempo duraria e principalmente, noção do que poderia se tornar.

E foi dela a decisão do próximo passo. Era um início de noite. Os dois ali na penumbra e a voz macia e delicada, propôs a questão. Falta alguma coisa. Ele, instintivamente pensou em sexo, mesmo sem ter exatidão do que isso fosse. Apesar da excitação nada disse. Ficaram naquele jogo de, fala você. Não, fala você. Até que ela pôs fim ao curto impasse. Falta a gente beijar igual artista de novela.

A senha estava dada e as palavras tornaram-se dispensáveis. As bocas se encontraram, os braços se entrelaçaram e as línguas se movimentaram. Pausa. Um nos braços do outro. Silêncio. Ele de calças curtas, ela na ponta dos pés. E o recomeço. A sensação de que ficariam ali no avançar das horas. Até que uma voz imperiosa, vinda da casa dos fundos, os trouxe de volta à realidade e os lábios selaram a despedida rápida que interrompeu aquele momento único.

Era domingo. Ele se deu conta então que o primeiro beijo teve gosto de macarronada com molho de tomate. Naquela época, Ronnie Von era o príncipe em um quadro do programa Silvio Santos e tão certo quanto a sua presença no final da tarde na tevê eram o frango e o macarrão na mesa de grande parte do povo brasileiro. A Avenida João César de Oliveira, no Eldorado, tinha uma pista só e os ônibus da São Gonçalo usavam fichas semelhantes às usadas nos orelhões como passagem a ser paga pelos passageiros.

Mas nada disso tinha importância. Naquela noite tudo estava diferente. A lua tinha um brilho mais intenso. Fez a caminhada de volta para casa levitando. Moravam no mesmo bairro e o retorno pareceu ser mais rápido do que de outras vezes. Ele não conseguia tirar do rosto um sorriso bobo. Ria à toa, ensimesmado. Bastava fechar os olhos e via o rosto dela. Como se aquele calor pudesse ser retido indefinidamente. Ou que pelo menos pudesse durar até que aquela chama fosse de novo acesa.

E aqueles momentos mágicos continuaram a acontecer. Outros beijos. Muitos. Um desejo crescente de estarem juntos, de encurtar distâncias, de apressar as horas nas quais estavam longe um do outro. Então aquilo era amor, concluiu. Como nos filmes, como nos romances que devorava, como nas músicas que embalavam as tardes na Kombi velha do pai, que lavava em troca do poder de controlar o rádio e viajar nos pensamentos, percebendo que eles invariavelmente o conduziam àquela pequena criatura que era o centro de suas atenções.

Ele não sabe precisar quanto tempo a história dos dois durou. Lembra-se da mãe indo buscá-la na escola. De um diálogo que tiveram no qual sobressaiu por ser educado, segundo a sogra que, claro, não sabia ser ele o queridinho da filha.

E como tudo na vida, o primeiro amor passou. O que era azul ficou sombrio. Veio a ausência e trouxe uma dor incômoda. Lágrimas. Fossa. Tristeza. E quando ela se envolveu com outro, e ainda por cima da mesma sala deles, o mundo ruiu de vez.

Até que descobriu outros sorrisos, trocou olhares, se permitiu a outras descobertas. Novamente se apaixonou e reviveu a magia que imaginava ter se perdido. A vida seguiu apressada como sempre, a adolescência passou e ele se viu homem feito. Descobriu outros prazeres, teve filhos, escreveu histórias, plantou árvores. Até que um dia, depois de muito mar e maresias, relembrou aqueles tempos e pensou que poderiam virar uma crônica e assim escaparem das armadilhas da memória. Pensou em um título: os primeiros. E escreveu sobre o beijo no rosto, o beijo na boca, sobre o primeiro amor. Ao concluir, sorriu. Estava feito. Parte de sua história estava registrada e seria agora dividida com os leitores. Como tinha que ser.

Hamilton Reis é jornalista e advogado

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