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Hamilton Reis: Uma gota nada gostosa

Hoje acordei com o pé esquerdo inchado. Visita inesperada de uma velha conhecida cada vez mais frequente, a gota, essa aborrecida. Pedi a minha amada café e minesulida para começar a lida com a dor. Só quem a sente pode descrever como é penosa, irritante, desgastante.

E se piora não tem outro jeito, precisa apelar ao corticoide e ao anti-inflamatório, dose dupla de injeção. E é melhor não ler a bula, pois para cada cura tem uma contraindicação. Sei que deveria já ter acostumado e a chamado de companheira, pois a dita cuja não tem solução. Me acompanha desde os 34 anos e estará comigo na derradeira noite, lado a lado no velório, praga hereditária que só me deixará quando a alma se separar do corpo. Mas não será motivo de espanto se ainda tentar sobreviver nos ossos.

Até aqui sou eu quem sobrevivo a ela, colecionando receitas, absorvendo comprimidos, experimentando efeitos colaterais. Conhecida como doença dos reis, por estar associada ao consumo de carnes nobres e suas proteínas, em mim ainda traz o trocadilho inevitável. Como se o sobrenome estivesse intimamente associado à causa. Causa da qual gostaria de desertar, abandonar, ignorar.

Mas não tem jeito, na dança da vida ela me escolheu como seu par. Já tive outras dores, claro. No dente quase morri, na sinusite penei. O cálculo renal foi extenuante, constante, uma agonia que só se resolveu com cirurgia. Mas que trouxe com ela a diverticulite, outra chatice que sabia como incomodar. Todas essas se foram, só a gota ficou e fica a me importunar.

E o que fazer quando ela vem me visitar? Resignação, gelo, muita água, calma e medicação. Não adianta reza, terço ou benzeção. Depois de tantos anos já posso dizer que somos íntimos.

Provocada pelo excesso de ácido úrico no sangue, a gota forma cristais nas articulações, inflamando o local. Já a experimentei nos pés, no joelho esquerdo, em ambas as mãos, nos cotovelos e até no esterno, que é um osso que forma a parte anterior do tórax, também conhecido como osso do peito, explica o Google. E, como disse o médico que diagnosticou na época, caso de literatura médica.
Com o passar dos anos e da minha passagem por eles, fui encontrando outros gotosos pelo caminho. Dentre eles, meu irmão caçula, que também herdou a dita cuja. Não sabemos de quem, pois não existem outros casos registrados na família. Não que saibamos. É que antigamente, as pessoas no interior de Minas, e creio que o mesmo valha para outros estados, davam outros nomes para o que sentiam. Podem ter confundido a gota com artrose, artrite e outras que têm efeitos semelhantes. Associando nome e doença acho que fui o pioneiro. Honraria que teria dispensado se pudesse.

E, claro, todo gotoso ou gotosa, tem que ouvir a piada pronta de que é gostoso. Ou gostosa. Além dos conselhos do tipo, faça isso ou faça aquilo, que melhora. A minha prima tinha e fazia um chá que resolvia. Meu pai teve e tomava muito suco de melancia. Passava. Bom mesmo é o de abacaxi, já ouvi. Mas, depois de muita pesquisa e prática, posso afirmar que tomar um limão espremido na água, em jejum, todo os dias, ajuda a prevenir crises. Comigo funciona, mas isso não quer dizer que funciona com outras pessoas. Depende de cada organismo, e como as demais coisas da vida, cada uma precisa mesmo é descobrir a dor e a delícia de ser o que é, como diria Caetano.

Hamilton Reis é jornalista e advogado

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